Hoje combinei um encontro com o meu livro de História. Ele chegou triste e desalentado, sentou-se, pediu um single malte envelhecido. Neat. O bartender agarrou uma garrafa que dizia “50 anos”. Fez sinal de quem me ia servir também, mas recusei com um gesto e pedi um café. Com açúcar. Dois pacotes. Olhei o livro, sem entender a escolha de meio da tarde. Nunca o vira beber uma bebida alcoólica! Disse-me que era caro. Mas que sentia que precisava dele. Que ia pagá-lo, embora fosse caro. E que não o julgasse! Que nem me atrevesse a julgá-lo! Muitas pessoas da tua geração estão a pedir outras coisas envelhecidas há 50 anos, e que também lhes sairão caras depois.
Percebi que era mais fácil não julgar o meu livro do que essas pessoas. Deixei que ele bebesse o seu whiskey. Mas vi como ele erguia o sobrolho ao ver-me virar dois pacotes de açúcar para dentro do líquido castanho e cremoso da minha chávena. Lembrei-o de que julgar é feio. E brinquei: a tua cirrose depois pode fazer companhia à minha diabetes. Ele sorriu. Um sorriso muito apagado. E, depois, fez sinal ao rapaz para que trouxesse mais um copo.
A coragem líquida vertida. O agitar do âmbar no copo largo. Abriu finalmente a capa. Mostrou-me o que o perturbava.
Eu tinha tanto para ensinar...disse-me... e não serviu para nada! Olha, desparecem-me as letras. As folhas, meio apagadas do tempo, amareladas, vazias. Numa delas lia-se ainda, de forma muito esvaída, As lutas feministas. Noutra, apenas a terminação da palavra erdade, onde antes existira uma frase inteira. Noutra ainda, a clássica imagem da revolução francesa virava uma mancha inconsistente e sem sentido. Fechou a capa com força, como quem dá um murro na mesa. Olhou para mim, em lágrimas. Emborcou o resto da segunda bebida. Pediu a terceira, erguendo o copo. Lá fora, começava a chover. Uma chuva fina de primavera. Fria. Parecia fria, embora o bar, vazio e cómodo, fosse um abrigo aconchegado. As pessoas liam. As pessoas liam porque as obrigavam a ler. Mas nunca aprenderam merda nenhuma!
O terceiro copo bateu na mesa com baque seco e eu senti-o dentro, como se o meu coração fosse a mesa. Como se a minha garganta estivesse mais seca ainda do que aquele baque do copo. Ele agarrou o copo na mão. Bebeu a sua bebida, agora em goles lentos.
Não pensei que, agora, tivesse de dizer o óbvio. Ou que me censurassem. Ou que planeassem enviar-me para as prateleiras que ninguém lê ou prensar-me. Riu-se. Como se fosse preciso! Como se não tivessem feito bom trabalho, desensinando as crianças, fazendo com que não se interessem pela leitura. Limpou as próprias lágrimas à toalha. Poderia estar na cabeceira desta gente, que não me pegariam nem para salvar a própria vida!
Levantou-se. Olhou para mim. Disse-me. Tinha saudades tuas. Depois saiu para a chuva, agora mais densa. Transformou-se em pasta de papel. Foi pisado pelos pés da multidão que corria a avenida, à procura de abrigo.
Ergui a mão. Pedi uma bebida para mim. O empregado perguntou-me. Tem a certeza? Já é o quarto e é forte!
Respondi-lhe. Não é forte o suficiente! Não quando toda a gente quer beber o que fermentou sob tirania por 48 anos. Não quando passaram 51... e querem abrir essa garrafa, para beber do amargo que não conheceram, nem recordam...
O bartender ignorou o meu pedido. Trouxe-me mais um café. Com dois pacotes de açúcar. Era quente. Aqueceu-me a alma. Chorei. Paguei a conta.
Ele perguntou se queria um táxi.
Sorri-lhe, em resposta, ainda por entre lágrimas:
Quero um foguetão que me leve deste planeta. É isso que eu quero!
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