terça-feira, 9 de março de 2021

O resumo

 


Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles.

 

 

Era coisa de menina. Cabeça no mundo dos sonhos. Universos de fantasia na cabeça. Lápis e caderno. Um Jardim Secreto. Umas férias grandes. Um trabalho de casa. Se o livro tinha 110 páginas, o meu resumo tinha 20. E a professora lá escrevia, debaixo da resma de papel, ativa representante da floresta que eu tinha acabado de destruir: Falta de espírito de síntese. À qual acrescentaria a jocosa nota. Ao menos já não preciso de ler o livro.

 

Era uma coisa de menina. Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles. Mas também era uma coisa do eu. E que cresceria comigo. E que tomaria o seu lugar nos patamares da minha realidade.

 

Não sou de reduzir nada a uma palavra só. Uma lista de compras – tarefa alegadamente simples – complexifica-se. Em frente ao nome dos artigos, lá se encontra a nota do local onde estão em promoção ou a justificação da necessidade da compra, ou outra nota qualquer, só porque sim. Salmão (está em promoção na superfície comercial X), detergente da roupa (mas só se estiver com um bom preço porque ainda tenho para duas lavagens), uvas (ver se há das brancas e se estão decentes).

 

O mesmo se passa com questões simples. Não há conversa sobre notícia de jornal que não gere conversa sobre o jornalismo, sobre o estado do mundo, sobre os antecedentes históricos que nos trouxeram aqui ou sobre o potencial de mudança. Análises simples sobre o rio que transborda com a chuva transformam-se em cáusticas observações sobre as alterações climáticas, o degelo dos glaciares, a globalização do conhecimento, as lógicas do capitalismo e a forma como – real e metaforicamente – é quem está na “baixa” que se afoga.

 

A minha professora tinha razão. Tenho falta de espírito de síntese. Ou talvez só de síntese, por excesso de espírito.

 

Nunca fui muito boa a resumir numa palavra o que quero dizer. Seja para o ato mais simples do quotidiano ou para o mais complexo. Sempre achei que as palavras deviam vir em conjunto, numa verdadeira celebração discursiva, que as misture e encadeie, em lógicas e semânticas e demagogias. E nunca tive medo delas, pelo que as usei sempre, em abundância, para tudo e nada. Mesmo quando, sozinha, divago apenas com as paredes sobre assuntos diversos, que tanto podem ser sobre Física Quântica como sobre como a melhor estratégia para encaixar as minhas 30 horas de tarefas nas 24 horas do dia e ainda dormir um pouco.

 

Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles.

 

Falei sempre pelos cotovelos. Escrevi sempre até me doerem as mãos. Criei um calo de escrever no dedo que frequentemente me apetece mostrar aos políticos nacionais. Nasci e continuei sempre a ser uma pessoa que prefere pecar pelo excesso do que pela falta.

 

E, depois, penso na Morte. Como não sou sintética, pinto sempre uma história extensa em torno da forma como ela há-de vir até à minha cama, sentar-se ao meu lado e falar comigo, antes de me levar. Também essa conversa é desenvolvida e longa, até porque caraterizo a Morte com muitas palavras, que lhe definem o semblante e a voz e a extensão da mágoa, antes que se inicie o diálogo. Mas, quando o diálogo vem, uma das questões – entre as muitas outras que idealizo – pede-me síntese.

 

Imagino que a Morte - senhora de negro, perpetuamente escrava da sua condição de eternidade e dona de uma empatia muito rara – me pergunta assim: Se tivesses de dizer o que definiu a tua existência, o que te levou pelos anos, o que te deu sentido, para que nasceste e viveste neste mundo, o que dirias?

 

Imagino que a Morte tenha pressa. Imagino que tenha mais onde ir. Mais sopros para cessar. E, claro! Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles. Mas imagino-me a ter!

 

Imagino que, com simplicidade, resumo tudo atabalhoadamente e sem medo. Confiante e firme. Imagino que, erguendo a mão para agarrar a dela e ir, deixo o sopro voar com as asas da eternidade, numa resposta breve.

 

Para amar.


Marina Ferraz






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1 comentário:

  1. Vou ser breve, gostei muito do conceito.
    Vou ser sintético, não há espírito em excesso.
    Vou ser resumido, há complexidade no salmão.
    Vou ser sumário, faz duma estrofe um livro.

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