Góia, góia, góia...
Um sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação. Uma exultação que vem de dentro. Dentro-dentro. Do espaço onde a alma principia, quando o corpo não basta. Um hábito... talvez. Também... mas não só. Um dialeto que não existe. Pessoal. Intrínseco. Intransmissível. Raro. Tão raro!... Cada vez mais raro. Mas nem sempre o foi...
O berço. Três chupetas na mão. O embalo calmo dos meus avós. O aconchegar das mantas sobre o corpo. O entalar das mantas, para que não me destape. Não se quer a menina ao frio. Chupeta número um, na luta contra o sono. Número dois, e fecha os olhos. Número três. O conforto. Mas o conforto supremo. Góia, góia, góia...
Para a minha família Góia era o meu dialeto para chupeta. Como Didia era Marisa e Didio era Ramiro. Sim... eu tinha um vocabulário muito vasto num idioma só meu! Mas, como em qualquer dialeto, quando não o sabemos, as interpretações podem frequentemente equivocar-se. Então, durante muito tempo sorri quando, de bebé ao colo, ouvia a minha irmã perguntar se alguém sabia da Góia. Porque góia não é... nunca foi... uma chucha.
Deito-me nos teus braços. Agarras-me suavemente. Luz muito ténue a vir do corredor. Canto da noite, entrando com o ar sorvido. O calor que te emana. O toque da pele, com travo a rosa e erva-lima. O arrastado do sabor da poesia, ainda a picar na língua, depois de um beijo de boa-noite. A almofada, que é macia e dócil. O colchão, que é aconchegante e convidativo. As memórias do hoje que termina, e foi tão bom. Os planos para amanhã, sem pressa do amanhã. E os muitos ontens que se vão somando. O cansaço do dia, a derreter. A mão, que tenta decorar a textura de outra pele, gravando-a nas impressões digitais. E a Morte, que sempre visita, para me aconchegar as mantas e dizer “hoje ainda não”. E o sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação. Uma exultação que vem de dentro. Dentro-dentro. Do espaço onde a alma principia, quando o corpo não basta.
Góia, góia, góia...
Góia é um lugar. E não o é. É um sentimento, uma sensação, um espaço sem existência física. É aquele – muito raro – momento no qual a sensação de plenitude, de conforto, de bem-estar e de contentamento é tão intenso, que podíamos morrer ali e não queremos morrer de todo. É um espaço que vem sempre na hora do ocaso das gentes, quando se começa a mudar do plano da vida para o do sono. Mas que vem antes de dormir, quando a consciência, amortecida, ainda persevera.
Góia, góia, góia...
Era comum encontrar essa calma, essa
candura, essa perfeição... No tempo em que dormia com três chupetas e
estava cheia de mãe e de avós e de Didios
e Didias a velar-me o sono contente. Mas góia não é... nunca foi... uma chucha.
Deito-me num abraço. A noite canta. O meu corpo liberta-se da tensão. E só cabe alegria no peito. Tanta, que expande e me preenche cada um dos órgãos vitais. Uma felicidade inexplicável... e nenhuma vontade de explicar esse lugar – o meu país das maravilhas – onde aceito sem entender essa coisa da plenitude.
Há um silêncio inerente no canto que a noite entoa.
E vem. À medida que o sono me ganha. Com tudo antes. Sem nada depois. Um sopro. Um sopro que é um murmúrio. Um murmúrio que é uma exultação.
Góia, góia, góia...
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