terça-feira, 28 de setembro de 2021

Epifania

 




Havia uma história. E a história não era verdade. E a história não era ficção. A história vivia entre conceitos, provavelmente entre um e o outro, porque a vida é isso. Descoberta e discussão. Mutável, como a boa ciência. Com direito ao contraditório, como o bom jornalismo. Mas o ser humano habituou-se. Ao estereótipo simplista e redutor. É mais fácil.

 

Ou é verdade ou é mentira. Não há espaço para o que fica de permeio. Não há espaço para a conversa, para o debate, para o assumir da fragilidade humana das verdades mutáveis. Há pouco espaço. Nas mentes das pessoas. Para perceber. Isso. Que as verdades universais são dogma... Que as verdades absolutas não são verdade.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Perceber implica questionar. Aceitar é outra coisa. É um saber que se sabe o que não se sabe, nem se quer saber. Toda a luz nasceu de experimentação e da falha. Do questionamento. Toda a esperança depende do ponto de interrogação no final das frases. E da troca de ideias que se faz. Da conversa. Do debate. Da contradição. Do embate. Da resistência.

 

Mas é mais fácil vergar. Foi sempre mais fácil vergar. Obedecer custa menos do que lutar, assim como o silêncio custa menos do que as palavras. É uma apatia temperada a medo que leva filas e filas de autómatos da vida até à morte, sem viver de facto.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Custa-me olhar. Para os campos, para as trincheiras. Para os dois lados de uma guerra sem causa nem motivo. Para o rasgar da carne e das partilhas. Para a criação de facções, quando todos somos gente. Quando todos somos pessoa. Quando todos estamos a tentar. O mesmo. Sem dúvida. Ser felizes.

 

O inimigo público é o medo. E a aceitação acrítica é a droga. Vejo, pelos cantos e pelas ruas, todos os junkies indolentes, impassíveis, agindo em espelho face aos demais. E penso. Sempre o mesmo.

 

Pede-se uma epifania. Para a mesa do canto. Sirvam em dose dupla, por favor.

 

Avanço. Nas mesmas ruas onde se vendem máscaras e corpos. Procurassem as pessoas a paz como procuram a segurança. Procurassem as pessoas a clareza como procuram o prazer.

 

Pede-se uma epifania.

 

Penso vender a ideia, com uma publicidade apelativa. Assim: Uma epifania é um orgasmo mental. Mas ninguém quer uma epifania. A apatia é mais segura. A obediência é mais consensual.

 

 

Uma epifania é um orgasmo mental. Talvez o problema do mundo seja falta de sexo...


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Quando foste a Paris

 

Fotografia: Ana Leonor Jesus


A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 


A Disney é um mundo. Não é? Fogo-de-artifício e paradas. Montanhas-russas, simuladores, carrosséis. Personagens acenando e entregando-se às fotos. Se o mundo inteiro fosse como a Disney, talvez fossemos todos mais felizes.

 

E Paris? Mon Dieu! Essas ruas de casas retas, com os seus telhados azulados e as suas flores nas varandas. Essa torre magnânima, que cumprimenta a cidade pela noite, piscando-lhe o olho. Esse rio, que corre por entre as luzes, deixando a sede da repetição constante da viagem.

 

Há uma Mona Lisa que sorri levemente, enigmaticamente, no fundo de uma sala de pinturas extraordinárias. Vénus perdeu os braços, mas não o encanto. E cada passo é um sonho de alguém, pendurado na parede, esculpido em pedra.

 

Paris é o mundo dos imortais. Imortaliza-nos, também, deixando-nos pedaços de carne nos vértices das pirâmides do Louvre. E ecoa o silêncio dos nossos pensamentos pelos Champs-Élysées, encontrando-lhes a tónica junto do Sacré Couer ou de Notre Dame. Os sonhos mais loucos têm lugar no Arco do Triunfo, símbolo da conquista do mundo. Os mais devassos ainda dançam cancan no Moulin Rouge.

 

A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 

Paris é manifesto. Palco mundano de milhares de almas descontentes com o destino do mundo. Cenário da discordância para os que entendem a distância que separa os nossos direitos das direitas. As suas ruas são pisadas por gente sã, que defende a liberdade. Liberté, egalité, fraternité. As vozes dos fantasmas ecoam. As dos vivos perpetuam o que é eterno. A frase. A ideia. O desejo. Esse. De Liberdade. A cidade inteira grita, canta, sabe. Tem asco às ditaduras. Se o mundo inteiro fosse como Paris, talvez fossemos todos mais felizes.

 

Nos meus olhos, o futuro é cinzento.

 

Não quero um futuro cinzento. Nem para mim. Nem para ti. Nem para ninguém.

 

Quero a Luz de Paris nas nossas vidas. Com um pouco do glitter e da magia da Disney. Quero a Liberdade. E a Equidade (já que a Igualdade é utópica). E a Fraternidade. E Paz. Todos esses clichés que as aspirantes a Miss Universo proclamam. Mas de coração.

 

A avó quer um Mickey e a minha mãe quer ímanes para o frigorífico.

E tu? O que é que queres?

 

Sorrio. Estás nessa cidade que eu amo. E és essa cidade que eu amo.

 

Quero que aproveites a viagem. E que sejas feliz.


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 14 de setembro de 2021

FilhXs da mãe

 



A minha mãe diz que teve três filhos. Mas não teve. Teve um filho. E duas filhas. Talvez, num primeiro momento, pareça que isto faz pouca diferença. Deveria fazer pouca diferença. Mas não é esse o mundo que temos.

 

 

Da burca à Playboy, passando pelo assédio, pela violação, pelas discussões intermináveis sobre a prostituição, pela objetificação, pela invisibilidade, pelas fontes oficiais, pela aniquilação histórica, pela condescendência, o gaslight, o mansplaining e saltitando, ainda, pelos patamares de “uma menina não faz isso”, que se consubstancia mais tarde no “ela comporta-se como um homem”.

 

Ser mulher é ser peça no jogo onde todas as regras foram feitas por homens e todas as peças são movidas por homens. E importa pouco que existam tantas formas de se ser mulher quanto o número de mulheres no mundo. Porque se reduz facilmente o universo do feminino às púdicas e às putas. Às que são para comer e às que são sapatonas. Às que são dóceis e às que são cabras.

 

É sistémico!

 

Num mundo onde ser homem é ser livre, há mulheres que escolhem ser homens. Nas crónicas, chamam-lhes frequentemente “mulheres de sucesso” ou o “rosto feminino das empresas”. O género refere-se, ressalta-se, salienta-se, sublinha-se... mulher... feminino... E elogia-se a referência. Sem notar. Sem perceber. Sem que se compreenda que, no final da linha, é para cumprir as cotas. Para dizer que se fez. Para que a publicação não possa ser acusada do machismo e misoginia, varrendo-as para debaixo dos tapetes de uma opinião pública mansa. Mas quem é que leu, alguma vez, “o rosto masculino das empresas”?

 

A pouco e pouco, é com estas estratégias que nos fazem acreditar que o mundo está melhor. Mais equitativo. Fazem-nos acreditar que o empoderamento feminino se faz, de leito em leito, de posto de chefia em posto de chefia. Juntamente com os tetos de vidro, varrem-se os cacos que constituem a desigualdade salarial para debaixo de outros tapetes. Aqueles que não são mágicos nem voam, mas que carregam a “magia” dos preconceitos de cada conto de fadas. E escondem-se estatísticas que nos mostram a disparidade nos cargos de chefia nas firmas... para evitar transtornos. E chama-se sempre a “senhora da limpeza” e o “advogado”, ainda que o contínuo seja um homem e o advogado use saias.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos.

 

 

Claro que, do meu irmão – homem – não posso dizer que se cole às lógicas da misoginia. A minha mãe criou-nos a todos para fazermos a cama e cozinharmos. Para limparmos a casa e lutarmos pelos sonhos. Criou três feministas. Mas... na adolescência, isto valeria ao meu irmão uma parede da cidade pintada, acusando-o de ser homossexual... Não é. Não é, porque não calhou ser. Se fosse, a minha mãe ainda o amaria com igual intensidade. Assim como eu. Assim como a minha irmã. Só que – feminista, em essência, – mesmo não sendo, disseram que era. O mundo é assim!

 

Por mais que o meu irmão represente – ou assim acho – algo de bom no mundo, quando a minha mãe diz que teve três filhos, eu penso: Desculpem. Não teve. Teve duas filhas e um filho. Não foi dentro das paredes que isto nos minou liberdades. A rua, no entanto, não é tão branda.

 

Ela teve um filho. E duas filhas.

 

Uma delas sou eu. Alguém que cresceu protegida pelos braços e ideias de uma mãe com valores incríveis. Que criou três feministas. Mas que o fez num mundo essencialmente machista e misógino que dificulta a vida a qualquer um que não integre a norma estreita (e dissimulada) de um status quo que perpetua a hegemonia masculina.

 

No meio de tudo isto, quando me sento com os meus irmãos, compreendo que somos todos filhxs da mãe. Estamos lá uns para os outros, cientes da necessidade de um equilíbrio que não existe... defendendo ideias muito semelhantes sobre o que a equidade deve ser.

 

 

A minha mãe diz que teve três filhos. Não teve. Teve duas filhas. E um filho. ´

 

Apesar de ser uma mãe incrível, que nos ensinou (e ensina todos os dias) a ser mais do que o espelho de um mundo pobre e podre, isso não pode fechar os olhos à realidade que se faz fora do colo e do embalo dos seus braços resilientes. E essa realidade diz-nos: ser mulher ainda faz diferença. E fará diferença enquanto as mulheres tiverem medo de andar sozinhas e de sair à rua durante a noite; enquanto as mulheres tiverem de se esforçar a dobrar para atingir uma posição de poder ou para receber uma remuneração justa; enquanto houver, no mundo, países que não permitem, sequer, que mulher aceda à educação e ao mercado de trabalho, fazendo delas pouco mais do que objetos para uso masculino.

 

Sobre nós? As filhas e o filho da minha mãe? Bem... somos muito diferentes uns dos outros... desenquadrados – e ainda bem!

 

Nenhum de nós nasceu no mundo certo! Não temos raiz, nem lugar onde encaixemos. A sorte que nos resta é que temos sempre – e sabemos que temos – o abraço uns dos outros... e o colo desta mulher que diz, referindo-se à sua maior concretização, que teve três filhos.

 

 

(mas não teve! Teve duas filhas e um filho...)


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 7 de setembro de 2021

39

 

Fotografia: Nuno Sousa


Antes que cruzes a linha. Essa dos inta para os enta. Deixa-me dizer-te.

 

Não me entendas mal, eu sei que os enta não são a morte. E terei, por certo, muito tempo. Para olhar para ti. E te dizer. Vez após vez. Eu sei. Não me entendas mal. Mas quero dizer-to agora.

 

 

Humano, pacifista, senhor de decisões e dúvidas. Crente de todos os deuses e de nenhum. Observador de estrelas tangíveis e inatingíveis. Criador de sonhos no gravador de cassetes natalinas, alimentados no pasto de palavras e de atos.

 

Irreverente e ousado. Às vezes demais, mas ninguém traçou a linha. Descrente das linhas que se tentam traçar e de todos os “demais” que se enunciam, feitos de limites e mentes fechadas.

 

Leitor ávido. Aventureiro nato. Viajante do mundo. Às vezes ao embalo do vento, às vezes ao embalo da literatura. Gamer. Personagem da versão beta da vida. Experimentando tudo. Que é pelo sim, pelo não.

 

Intempestivo. Barulhento. Eternamente menino. Eternamente adolescente. Eternamente preso à saia da mãe que ainda é colo e abrigo. Lágrima engolida no embalo. Dor que sorri ao mundo. Riso que se arranca do peito dolorido dos outros e compreensão em estado puro.

 

Conhecedor das histórias dos pássaros-drone. E mapeador dos limites da estupidez na Terra plana. Mergulhador de documentários e construtor de palácios sagrados em mundo aberto.

 

Dono de palavras sábias. Como a peça do jogo de xadrez que, apesar de todo o conselho e opinião, quem move és tu. Como a farinha Maisena que, por pouca que seja, dá sempre para mais um.

 

Dono do gesto sábio. Como o convite para um café antes da violência. E o abraço, sem palavra, no luto. E o café, de tonalidade verde, servido em chávena fria, a meio da tarde, com o riso pendurado no recanto do carinho e da compreensão.

 

Homem. Além do menino. Além do adolescente. Homem. Aquele para quem olhei, de baixo para cima, como exemplo do que se deve ser neste planeta, onde tanta coisa não é o que deve ser. Aquele que me fez sentir compreendida e protegida, mesmo quando tudo era difícil. Aquele que acreditou plenamente que eu podia ser. Sem complemento. Aquele que foi O.

 

 

Antes que cruzes a linha. Essa dos inta para os enta. Deixa-me dizer-te.

 

Isto?

 

Não. Nada disto. Outra coisa. Uma coisa muito simples, que vem carregada de amor e de coisas que não têm nome para que possam escrever-se.

 

Isto:

 

Obrigada.


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Miami Vice

 

Fotografia: Engin_Akyurt


Duas coisas eu fiz no México: Bebi Miami Vice e olhei para as pessoas.

 

Claro: também apanhei um escaldão. E nadei na piscina. E visitei Chichén Itzá. Enfardei o buffet do hotel. Tomei pequenos-almoços britânicos. Adotei um tigre amarelo feito em balão. Fiz tiro ao alvo. Aeróbica. Uma espécie falhada de arco e flecha. Enfim. Coisas. Mas as duas principais foram estas: Bebi Miami Vice e olhei para as pessoas.

 

O meu Miami Vice e as pessoas do meu hotel eram o mesmo tipo de fraude. O cocktail porque a pulseira verde alertava o bartender de que o meu tudo-incluído era na versão para menores, passando a ser um tudo-incluído-menos-álcool-e-drogas. As pessoas do hotel porque, estando num Resort de 5 estrelas “mais” (coisa que eu nem sabia que existia até lá chegar), pareciam, de alguma forma, muito pobres.

 

Saboreando a bebida granizada, no bar que ficava na piscina – literalmente dentro da piscina – eu ia assistindo a discussões, desentendimentos, ataques, lágrimas no canto do olho, que resultavam em mareados pedidos de bebidas que, certamente, ao contrário da minha, não vão estar no céu à espera dos homem-bomba.

 

Também me apercebi de que a maioria das crianças estava aborrecida. A maioria dos adolescentes estava chateada. A maioria dos adultos tinha mais rotações de íris por dia do que a Terra conta, sobre si mesma, num ano.

 

A bebida era fria e as pessoas também. O riso, raro e de conveniência, vinha por vezes. Poucas vezes casual. Poucas vezes verdadeiro. Enchiam-se copos. Incluindo o meu.

 

No hotel, pela sua extensão, andávamos num comboiozinho turístico. Havia palmeiras e flamingos. Sei lá eu quantas piscinas. Sei lá eu quantos restaurantes. Sei lá eu quantos SPA’s e ginásios. Sei lá eu quantos caminhos, instrutores, funcionários, cozinheiros especializados, massagistas e pessoas-que-estão-lá-para-fazer-cumprimentos-efusivos. Não havia razão para sair da pequena cidade que era o hotel, senão para justificar que não se tinha feito um voo interminável só para ouvir o mesmo idioma que se fala no país vizinho.

 

Saí do hotel. Mesma pulseirinha verde. Fora do hotel, não havia Miami Vice, nem virgem, nem de outro tipo... mas olhei para as pessoas. As pessoas fora do hotel porque, estando fora de um Resort de 5 estrelas “mais” (coisa que eu nem sabia que existia até lá chegar) eram pobres. Muito pobres. Serviriam para ilustrar a palavra “pobreza” no dicionário. Mas, olhando para elas, pareciam, nos meus olhos menores, de alguma forma, muito ricas. Riam alto e com vontade. Dançavam. Alegravam-se. Saboreavam o pouco que tinham com prazer. Davam os ossos aos cães. E partilhavam-se. E queriam partilhar, connosco, essa euforia de copo na mão e música na rádio.

 

Observadora passiva de dois mundos contrastantes, não sei se sabia, ainda, perceber. O lado taciturno da riqueza de salto alto. O lado feliz da pobreza de pé no chão. Mas sei que pedi mais um Miami Vice, quando voltei e sentia o peito pesado.

 

O peso nunca aligeirou. Mesmo com o passar dos anos.

 

Às vezes, passo na rua e vejo-a. A riqueza. A desdenhar.

 

Às vezes, passo na rua e vejo-a. A pobreza. A rir.

 

Esse binómio incompreensível. Entre quem tem tudo e não é feliz, nem tenta ser. E quem não tem nada mas tenta ser feliz com o quase-nada que tem. Será que consegue? Tenho muitas perguntas sem resposta. Essas sobre a riqueza e a pobreza e a desigualdade. Sobre as realidades que se ignoram, num contrato tácito de não-observação.

 

Sobro eu. Observo. E, às vezes, penso que foi isso que vim fazer ao mundo: Beber Miami Vice e olhar para as pessoas.

 

O peito pesa. Agora, o peito já é maior de idade.

 

Peço um Miami Vice. Mas, se o mundo é isto... e ninguém entende... e ninguém se importa... por favor, desta vez, alguém carregue no rum!


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Meu Anjo

 



Para o Paulo Maria


“Meu anjo”, dizias. E eu sei que quase ninguém percebia as tuas palavras. Mas eu sabia. Tinha aprendido. Também se aprende a ouvir. E a perceber. Por isso, quando dizias. “Meu anjo”. Eu sabia que era eu.

 

O anjo era eu. Eu, logo eu. O anjo. Mas, em vez de te responder na mesma letra do que sempre digo a todos que assim me tratam, vociferando impropérios entre as muitas frases que podem compor um “detesto que me chamem anjo”, eu derretia-me com o teu semblante quando eu entrava pela porta escancarada e tu quase saltavas da cadeira, em entusiasmo por me ver.

 

Conheci-te permanentemente com um copo de cerveja à frente. Sei quantas vezes, na mistura dessa poção mágica que te inebriava os sentidos, a minha irmã colocava Martini. Conheci-te permanentemente rodeado de pessoas que sorriam, que riam, que se animavam. Trazias festa contigo. Eras a festa que trazias. Como se a tua presença, de sorriso aberto e alma pura, fosse o foco de luz mais brilhante da sala.

 

Era curioso que fosses luz, porque também eras trevas. Talvez esse teu lado fosse reservado para alguns. Talvez só para os amigos mais próximos, que te sabiam lobo negro. Talvez só para os que liam a tua poesia, sempre gótica e sombria. Sabe-se muito sobre um homem pela sua poesia. E a tua, meu amigo, era uma floresta muito densa, onde vagueavam espetros e se derramava o sangue de todas as mágoas. As tuas. As dos outros. Todas as mágoas que enterravas, no ecrã, com as pontas dos dedos dos pés. Como se quisesses arrumar a dor, aprisioná-la, garantir que ela não te roubava o sorriso do rosto.

 

A vida tinha-te amarrado à cadeira. Literalmente. Mas eras livre. Uma alma livre e sedenta de vida. Um bon-vivant e um bom amigo. Em todos os aspetos, a deficiência em ti era pormenor. E era-o porque os teus pormaiores saltavam à vista. Até que, sedenta de te apagar a luz, essa vida carniceira (tão pior do que a morte e ninguém a teme!) te quis amarrar a uma cama.

 

Recusaste. Imagino, embora não possa ver, esse lobo negro em ti a libertar-se da jaula em que queriam enclausurá-lo. E apetece-me dizer-te. Leva-me as asas e voa.

 

Disseram-me que não voltas.

 

Nunca mais vou ouvir alguém, num entusiasmo louco, dizer “meu anjo”, sem que eu me importe. E nunca mais vou receber o riso animado, quase excitado, nascer do fundo da sala, na leitura dos teus poemas, que o público aplaudia com tanta vivacidade.

 

Disseram-me.

 

Nunca mais me vou rir das histórias dos copos a mais, olhar esse sorriso sem margens, nem receber essa tua luz ao entrar na noite dos espetros.

 

Dizem que a cadeira ficou vazia.

 

Não preciso de me esforçar muito. Consigo imaginar. A cadeira vazia. Mas, digam o que disserem, para mim foi o teu corpo que sarou. E tu pousaste os pés no chão. Levantaste-te. E estás, algures, a beber cerveja e a escrever poesia.

 

À espera que eu chegue. Para sorrires e me cumprimentares dessa maneira que só tu podias.

 

“Meu anjo”


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 17 de agosto de 2021

A Fonte da Juventude

 


Rejubilemos. Creio que chegámos. Vem. Bebe desta água. Compreende. Tu e eu. Ela. Ele. Ou eles. Ou todos nós. Ninguém será velho. Jamais.

 

 

A busca pelo Santo Graal, pela Fonte da Juventude, pelos Rios Olimpianos e pela Pedra Filosofal preenche os canais da caixinha mágica. Servem-me um sumo de laranja. Vem acompanhado de um gráfico explicativo sobre os mais recentes casos e as mais recentes mortes no país. Vertem percentagens à toa. Acompanhadas de rodapés sensacionalistas. De promessas surreais. De premissas. O mundo está a acabar. Não é o que escrevem. Mas é o que impregnam na mensagem. E é o que vem agarrado à laranja algarvia do meu sumo, servido com desinfetante líquido, não seja este copo de vidro repleto de vitaminas realmente um irmão disfarçado do manual de Aristóteles que causava tão penosa morte aos monges de Eco.

 

O gráfico dá lugar ao lip sync de um comentador qualquer, enquanto a rádio toca hits dos anos 90. As legendas continuam. Promessas de coesão na imunidade. Coesão. Mas o grupo não responde à coesão. Responde à coerção. Seja ela feita com bolas de Berlim, festas de open bar em centros de inoculação ou proibições que minam todo o trabalho ancestralmente levado a cabo, com cravos e balas. Talvez com cravos a mais e balas a menos. As flores murcham. Lembro-me sempre disto. As flores murcham.

 

Garantias impossíveis são dadas por entidades oficiais. Ninguém sabe, em concreto, quanto das palavras são ficção científica e quanto delas são verdade. Mas impera repeti-las. Sabemos todos que a verdade não vale menos que a mentira coletiva, contando que o dogma se perpetue.

 

Todas as guerras são dogma perpetuado. Verdade contra verdade. Nunca um soldado defendeu outra coisa além da verdade da sua fação. Dois goles e a narrativa salta para Cabul. O estômago revolve-me na narrativa do futuro que já foi todo ontem. Mas ninguém aprendeu nada. E embatem novas verdades e velhas, com gente que se amontoa nas plataformas da fuga, agarrando rodas de avião como se o próprio Alá comandasse os voos. Dizem que morreram sete pessoas hoje. Esmagadas pela realidade. Algures, na segurança do lar, um presidente assume a responsabilidade essencial e nega a responsabilidade efetiva. Lamenta. Pena que a sua voz se perca nos gritos de quem perde a vida. Pena que a sua voz se perca nos gritos de quem sabe que vai perder a vida. Pena que a sua voz se perca.

 

Apercebo-me de que me dói o estômago. Exatamente quando entra o anúncio do antiácido que patrocina o telejornal. E apercebo-me de que estou a olhar, faz tempo, para a caixinha abominável das atrocidades. Entra o anúncio da cerveja com os heróis do futebol nacional. E apercebo-me de que está a ficar tarde e tenho um pé dormente. Volta a pivô, com a makeup exagerada que tenta esconder a postura masculinizada, contando o número de portugueses no aeroporto afegão. As imagens mostram um mar de gente, tentando escapar ao inevitável. Todos sabemos que este será, em breve, um mar de cadáveres. Mas a legenda impera. Portugueses. Preocupamo-nos. Ainda existe uma mão cheia de almas lusas na confusão desse aeroporto distante. Choramos essas. Todas as outras ficam mais longe.

 

Neste momento, as imagens da caixinha mágica obrigam-me a largar o copo sobre a mesa, ainda meio cheio. Ou já meio vazio. Nem sei. Neste gesto, ouço o burburinho de alguém que, de face escondida, critica que, mesmo de copo na mão, eu não tape também a boca e o nariz. Percebo que não tenho, já, sequer o direito de respirar no meu metro-e-pouco-mais-de-meio de gente. Abandono o espaço que não tenho. Para chegar ao carro e tapar, em vez disso, os olhos. Com as mãos. Para que as lágrimas salgadas me criem novas camadas de muro sobre o rosto envelhecido pelas décadas.

 

É o tempo da morte. Concluo. Quem não morrer da doença, morrerá da coerção, da cura, da guerra ou de desgosto.

 

Entristece-me. Mas creio que chegámos. Vem. Bebe desta mágoa. Compreende. Tu e eu. Ela. Ele. Ou eles. Ou todos nós. Ninguém será velho. Jamais.

 

Talvez morrer cedo seja viver para sempre.

Encontrámos a Fonte da Juventude.

 

Vivemos o tempo da morte.

Ninguém será velho.


Jamais.


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Violeta

 



Olhei para ela, na sua simplicidade verde. E perguntei-lhe. Voltarás a dar flor um dia?

 

Ela não sabe. Como não sabe, não me respondeu. Contentou-se com o facto ser verde e haver luz para beber na manhã. Contentou-se com o toque da água fresca, servida na véspera. E permaneceu. Na sua simplicidade. Colhendo a simplicidade. Sem se importar com as primaveras pouco floridas.

 

Tratei-a pelo nome. Ciosinha. E dei-lhe um pouco mais de carinho. Olhar contemplativo e preocupado. Quase de mãe. Cuidadora informal. Notando as nuances entre folha e folha. Os rebentos mais pequeninos e inesperados. Sorrindo-lhe.

 

Voltarás um dia a dar flor?

 

Ela não sabe. Dar flor. Pouco lhe interessa. Interessa-lhe ser forte e frágil. Ao mesmo tempo... Sei lá porquê.

 

Digo-lhe que não sei cuidar de plantas. Ela diz-me que é como cuidar de idosos. Um pouco de carinho. Um pouco de alimento. Um pouco de água. Um pouco de dedicação. Isso, explica-me, é o essencial para as raízes. Confesso-lhe que, desde que veio para as minhas mãos, há muitos dias em que me falta a força. Como se não tivesse, também eu, a substância base que nutre as minhas raízes. Conto-lhe que as mãos enrugadas que dela tratavam eram também as que me cuidavam a mim. Que as minhas próprias folhas estão débeis e meio secas desde que essas mãos não me regam. Que há dias em que quero adormecer na terra, desenterrar o que sobra dos meus pés no solo. Ser alma e ir. Ir. Ter com ela a todos os jardins celestes onde imagino que passeie, novamente com as tranças da meninice. Estendendo o seu verde corpo ao sol, ela sorri-me. E eu pergunto. Voltarás um dia a dar flor?

 

Ela não sabe. Tal como eu não sei o que me leva pelos dias, sobrevivendo à falta. Mas vou verificando, diariamente. Não lhe falte sol ou água ou carinho. Sol, água e carinho é o essencial. O resto é lucro.

 

Novos rebentos de folha verde nascem no centro. A vida renova-se e sinto saudades das mãos que cuidavam a violeta. A violeta que me deste. Como dizia a voz dessas mãos.

 

Não sei, avó, se a violeta que te dei voltará a dar flor. Pergunto-lhe e ela não me sabe dizer. Também não sei se ela sobreviverá nas minhas mãos, porque não são as tuas. Mas, desde que foste, estou a dar o meu melhor. Há rebentinhos verdes aqui. Vês? E dou-lhe sol, água e carinho. Os essenciais.

 

E, todos os dias, quando penso nas minhas próprias folhas débeis e meio secas, na vontade de adormecer terra e desenterrar o que sobra dos meus pés no solo para ser alma e ir, lembro-me que ainda existe. A violeta que te dei. E acordo mais um dia. Para lhe dar amor. Amor em forma de sol, água e carinho.

 

Porque enquanto ela estiver aqui, na sua simplicidade verde, uma parte de ti também está.

 

E a flor é essa.


Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 3 de agosto de 2021

A filha do retornado

 


As imagens mostram. A História conta. Vemos. Lemos. Sabemos. Voltaram. Eles. Os retornados.

 

Nas imagens, há rostos. Na História, memórias. Homens e mulheres e crianças. Mãos, quase sempre vazias. Rostos, quase sempre saudosos. Não eram as origens mas a saudade que os faziam ser. Portugueses. Como tu e eu. Como tu. Eu, em parte. Porque eu sou. Eu sou eles. Eu sou parte deles. Desses que voltaram. Eles. Os retornados.

 

O meu pai – retornado – não retornava. Para que se retorne é preciso que se tenha estado. Nascera na colónia. Crescera na colónia. Lutara na colónia. A colónia não era colónia. A colónia já não era colónia. Então, retornara. Retornara ao lugar onde nunca estivera. É menos poético do que a ideia de voltar para o lugar de onde nunca se partiu – como lhe fez a mãe, por exemplo – mas muito mais realista, se pensarmos no eufemismo de voltar, puxado nas grilhetas da obrigação encenada e forjada nos abismos.

 

Imaginar-lhe o regresso. Dele. Deles. Dos retornados. Faz-me pensar nos rostos. Masculinos, femininos, infantis. Faz-me pensar que retornar é uma conjugação sempre feita no masculino. Já alguém ouviu falar de retornadas?

 

Fico a pensar se as mulheres não voltaram. E imagino facilmente que não. Retorno é coisa de homem, nos sentidos mais latos e estereotipados. Retorno é coisa de quem foi. As mulheres que foram, ficaram sempre. As que lá nasceram, mesmo voltando, lá permanecem.

 

Do eternizar da condição feminina, presa nos mastros do impensável sempre, fala-se de instabilidade. Mas mulher é raiz. E, mesmo que de pernas cortadas pelos livros do passado, toda a mulher permaneceu sempre no seu lugar, numa estabilidade de árvore na floresta mutável.

 

Mulher dá flor, quando é para dar flor. Fruto quando é para fruto. Folha quando é para dar folha. Sombra, quando é para dar sombra. Aqui. Ali. Além. Estação após estação. Sempre. Mas a raiz está no berço. E nunca vai. E nunca retorna. E, por isso, o retorno é-lhe impossível.

 

A filha do retornado também teve mãe. Mãe que não foi e, por isso, não retornou. E que, se tivesse ido, não teria ido realmente. E que, se tivesse nascido lá, ainda lá estaria, mesmo estando aqui.

 

Cada filho é a terra da qual uma mulher não sai. Cada filho é a colónia onde uma mãe nasce. Talvez por isso se chame de colo ao espaço que permeia o coração e a vulva.

 

As imagens mostram. A História conta. Vemos. Lemos. Sabemos. Voltaram. Eles. Os retornados. Não importa que os rostos sejam de mulher. Retornados. É uma palavra que não se escreve no feminino.

 

Reduzo ao mínimo a ideia e bebo dela. Eu, a filha do retornado.

 

 

Não se escreve no feminino. Não poderia escrever-se no feminino. Nunca uma mulher partiu, para que pudesse retornar.


Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 27 de julho de 2021

O resto da minha vida

 

 Fotografia de Analua Zoé

O resto da minha vida. Penso o resto da minha vida como moeda de troca. Sobra-me pouco. Por isso, o seu valor relativo sofre frequentemente quebras na bolsa. Mas ainda vale de algo para dois ou três investidores de peso e uns quantos sócios minoritários.

 

Se o resto da minha vida é valor, penso no amor como plataforma de gestão. Quanto vale, afinal, a vida? O resto da minha vida?

 

Pensar no resto da vida como valor concretizado faz-me questionar se daria a vida por alguém... e por quem... e por quê. Constato que tenho uma mão cheia de sonhos e outra cheia de pessoas por quem vale a pena pôr-me em frente da bala. Por vezes, penso, até por um abraço, até por um beijo, até pelo enleio nas noites... e penso em ti.

 

Não penses que daria o resto da minha vida por um abraço. Provavelmente não. Mas abdicaria facilmente de algumas semanas para sentir o meu corpo envolto pelos teus braços-muralha. Sem pena de perdê-las e sentindo que o resto da vida, sem essas semanas, valia agora mais.

 

Não. Também não daria o resto da minha vida por um beijo teu. Daria, talvez, um ou dois anos do tempo que me sobra, meia dúzia dos que já vivi, algumas das alegrias que me falta colher. Mas não daria o resto da minha vida por um beijo teu.

 

Daria, facilmente, uma década. Uma década inteirinha, com todos os seus nove anos mais um, para adormecer nos teus braços. Para sentir o calor dos teus dedos debaixo da camisola do pijama, pousados suavemente entre a cintura e a barriga, libertando-me de anseios e embalando-me na noite, com o calor dos frutos amadurecidos ao sol. Por esse momento, daria uma década. Mas não. Não daria, por esse enleio, de sossego isolado e carente, o resto da minha vida.

 

O resto da minha vida? Daria o resto da minha vida para te ouvir dizer – vomitando do âmago as palavras – que me amas. Podia morrer enquanto o dissesses. E valeria mais do que a soma ou a multiplicação dos dias vindouros. Porque ouvir-te dizer que me amas valeria o tempo de duas vidas. Dava o resto da vida e todas as seguintes. Para morrer, em definitivo, no dizer dessas palavras-mel, que me adoçam os sentidos do impossível.

 

É como te digo. Penso o resto da minha vida como moeda de troca. Sobra-me pouco. Por isso, o seu valor relativo sofre frequentemente quebras na bolsa. Do pouco valor que tem, talvez não interesse muito que a desse, com facilidade, em troca dessa declaração de amor. Talvez essa declaração de amor valha mais, por si só, do que o resto da minha vida.

 

Mas o amor é a minha plataforma de gestão. E, precisas de saber. O resto da minha vida e toda a vida que já vivi. As minhas vidas passadas. As minhas vidas futuras. Todos os “eu” que eu fui. Todos os “eu” que eu poderei vir a ser. Todos os que poderia vir a ser e jamais conquistarei. Trocaria tudo isso. Até à última migalha. Não por um abraço. Não por um beijo. Não pelo enleio na noite. Não pela palavra “amo-te”, sentida e cheia de sentidos. Trocaria tudo isso... para tu seres feliz. Pelo resto da tua vida.

 

Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!