terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Jogo de Sorte


Era um jogo de sorte, aquele em que apostei o coração. Pousei-o. Arrastei-o, com as mãos firmes, para o centro da mesa. Levantei o olhar e encarei  todos os outros. Apostei o coração num jogo de sorte. Com ele, sem saber, apostava a vida inteira, com todos os seus anteontens e todos os seus amanhãs. Mas estava tão certa de mim, tão certa da sorte, que o apostei sem o mais leve temor. Apostei-o com a leveza de uma manhã de Verão. E sorri. Sorri, enquanto apostava o coração, abandonando-o, assim, no centro de uma mesa, ao alcance de qualquer pessoa.

O meu sorriso, despropositado e demente, foi encarado com perplexidade. Quem apostaria o coração num jogo de sorte? Quem poderia estar tão certo, a ponto de colocar no centro das apostas, a única coisa que se podia esperar que sobrasse, nos fins dos dias em que tudo se perde ou ganha, por entre escolhas inconsequentes.

Era um jogo de sorte, aquele em que apostei o coração. Podia ganhar ou perder. Com a mesma facilidade. Era um jogo de sorte. Daqueles em que se apostam os botões e as esmolas. Daqueles em que se aposta o anel de diamante e o segredo. Apostei o coração. Arrastei-o, qual bijuteria, para o centro da mesa. E ele batia calmamente, como se não fosse nada. Como se o centro da mesa não fosse um espaço mais indigno do que aquele que ocupava no meu peito. E foi a vê-lo bater assim, naquele quase-alivio de se ver longe de mim, que me perguntei. E se o perder?

Não se perdem corações em jogos de sorte. Nem mesmo quando se perde. O que se arruína nas mesas das apostas não são os corações arrastados para o centro das mesas. Mas perde-se a vida. Perdi a minha. Foi preciso perdê-la para compreender. Apostei o coração. Mas não era um jogo de sorte. Não havia sequer a mais breve nuance de sorte nesse tudo ou nada de loucura em que tinha apostado tanto. Era um jogo de azar.

Foi num jogo de azar que apostei o coração. Sob o olhar perplexo de quem não compreendia que não havia nada a perder. O coração. A vida. Olhavam para mim. Que coração? Que vida? Não olhariam para mim, com os olhos arregalados, se soubessem a resposta. Mas não sabiam. Apostei o coração nesse jogo de azar. E sorri.

Apostei o coração. Perdi tudo. Nunca se perde tudo num jogo de azar. Perde-se apenas o que se aposta. Mas eu perdi tudo, excepto o coração. Esse dei-o. Dei-o a quem não o queria. Dei-o a quem não o sabia cuidar. Não era um jogo de azar. Não era um jogo, sequer. Era azar, somente. O azar de ter, comigo, apenas o coração. O azar de o ter apostado. O azar de não poder arrancá-lo de mim para o arrastar para o centro da mesa.

Não perdi o coração. Guardei-o. Não havia forma de o perder. Fiquei com ele mas ele já não era meu. Foi assim que me perdi de mim. Foi assim que perdi a vida.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

8 comentários:

  1. Que texto lindo.... Maravilhoso mesmo.
    Continuação de bom trabalho

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  2. Bonito :')
    Pasrabéns :)

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  3. Muito bonito... e triste.

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  4. Adorei Parabéns tens muito jeito

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  5. Anónimo16:14

    Adorei o texto, pena ser uma história tão triste, mas não deixa de ser lindo!
    Parabéns pelo bom trabalho

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  6. Adorei. Muito bonito :)

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  7. Para além de ser um texto lindo, na minha opinião, traduz por palavras o sentido que a vida tem e não sabemos expressar.

    Parabéns.
    Adorei!

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