terça-feira, 21 de novembro de 2017

Privilégio



O mesmo corpo que levanto da cama, ela levanta do chão. E avançamos as duas, sonolentas. O mesmo rosto, do qual lavo as remelas amareladas do sono, ela lava para tentar esconder as horas por dormir. E os passos que dou, nas meias quentes que a minha mãe me ofereceu, ela dá descalça, sobre as pedras frias.

Eu não sei a sorte que tenho por ter quentura nos pés.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.

Reclamo da fruta, demasiado madura, que me espera na fruteira. E ela colhe o fruto, agradecendo à terra que lho dá, dividindo-o em dois para que também o filho coma. E vamos as duas, debaixo do mesmo sol.

Envolvem-me os braços do meu amor. Do meu amante. Carinhosos e cheios de promessas, fazendo do meu corpo templo, que se honra com sedução e ternura. O meu corpo branco e esguio. E lançam-na contra o chão, de novo, os braços rudes e violentos dele. Que a massacra e a desonra, violentando-lhe a carne. Entrando-lhe na carne. Exigindo-lhe da carne o fruto que ela não quer e a força que ela não tem. No corpo negro e subnutrido. Fitando o teto, com olhos laços e vazios. Ela entoa uma canção. Calada. Para dentro. E reza pelo que vem depois. Seja o que for.

Eu não sei a sorte que tenho por ter o amor de alguém.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.

Passo nas mãos o unguento aveludado, de aroma a framboesa, para as hidratar. Julgo-as desengraçadas e secas. E sinto o calor da mão que se dá a essa a outra, menos feia. Ela agarra nas enxadas e vai. Tem calos nas mãos que dá ao martírio. E agradece por tê-las. As mãos.

Também agradece por ter pés, enquanto eu calço os sapatos de salto e reclamo por tê-los. E agradece por ter comida, enquanto eu reclamo do número de calorias que me enchem o prato guloso.

Andamos sob o mesmo sol. E sobre a mesma terra. Eu reclamo que não me entendem. Ela não sabe que não a entendem. Na maioria dos dias, ela pouco conhece além do dia que lhe nasce e da noite que a leva até ao dia que vem a seguir.

Eu não sei a sorte que tenho por andar sobre esta terra.
Ela acha que tem sorte porque ainda está viva.

Somos iguais. Gostamos de dizer. Que o somos. Iguais. Podemos perder o nosso tempo a dizê-lo. Porque faz parte do privilégio falar. Para dizer. Que somos. Iguais.

Ela não sabe se somos iguais. E eu só finjo que sei. Tento convencer-me de que o sei. Como se soubesse. Como se fosse verdade. Mas só porque quando traçaram a linha, eu fiquei a norte.




Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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