terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Fachada

 


Tenho notado. Principalmente ao viajar, ainda que tenha a certeza de que também acontece à minha porta. As pessoas cuidam dos muros. Das fachadas. Raspam a tinta. Alisam o cimento. Lixam-no cuidadosamente. Pintam. Vão ao pormenor nos cantos. Desenham listras coloridas. Têm o rosto ausente. Focado. Olhos postos na tarefa. Ocasionalmente limpam a testa com as costas da mão, deixando que, depois, se quede na anca. Observam. Tiram conclusões. Continuam.

 

Por fora, são casas perfeitas. Apetece viver nelas. Mas ninguém sabe. Ninguém pode imaginar. Como estarão por dentro?

 

Gosto de imaginar que estas casas sobejamente cuidadas no exterior têm paredes interiores pintadas e sem rachas. Que não acumulam humidade negra nos cantos das paredes e nos tetos. Que não cheiram a mofo. Que estão sempre limpas e que o ar parece mais puro no seu interior. Gosto de pensar que as famílias que vivem nelas nunca têm discussões, que nunca ninguém é alvo de abuso ou agressão. Que ainda se sentam, à moda antiga, junto da lareira – que, para mim, estas casas têm lareira – e contam histórias sobre a perfeição dentro de portas.

 

Logo vem a voz quente do Francisco José, guardada nos discos poeirentos da minha avó (ou seriam cassetes?!?), dizendo “só nós dois é que sabemos”. E, no caso, só o senhor de lixa na mão, esfregando o muro sabe o que vai dentro da parede que pinta para os outros.

 

Dentro das casas pintadas também se sofre e também morre gente. Também se parte louça. Também se sujam os vidros e o chão. Também se acumula gordura intransigente nos cantos do forno. Também há isolamento mal feito que deixa entrar frio e calor, tornando verões e invernos desconfortáveis.

 

Gosto de pensar que o mesmo senhor que agora lixa a parede, limpa a testa com as costas da mão e as põe na anca observando o trabalho feito, também cuida do que fica dentro de portas… E quero mesmo acreditar nesse pensamento… mas… vocês acreditam?

 

Penso que a vida possa ter cuidado do meu cinismo com a mesma mestria com que o senhor cuida da fachada da casa. Certamente lixou-me. Porque vejo o cuidado com muros e paredes exteriores e penso sempre que é só por fora. Só para exibir. Só para os outros… Como a maioria dos sorrisos. Como a maioria da riqueza. Como a maioria da beleza. Como a maioria dos “bem, e tu?”.

 

Hoje, não vou pôr maquilhagem. Nem vou usar lentes de contacto. Vou pôr os óculos, que nem a graduação certa têm. Uma decisão que sei que não é permanente. Mas hoje. Hoje, vou a um museu. Vou almoçar comida chinesa porque me apetece uma sopa quentinha. Vou experimentar perfumes artesanais. Vou caminhar junto ao mar. Vou subir a montanha para ver o pôr-do-sol. Hoje, vou esquecer a fachada, o que os outros veem. Deixar que vejam a pele mal cuidada e a roupa larga que foi tirada da mala com os olhos fechados, um mais do que o outro. E vou cuidar-me por dentro, pedindo à vida que me deixe ao leme por um dia.

 

Eu sei. A vida mal para para limpar o suor da testa e certamente vai continuar os trabalhos. Mas pode lixar-me amanhã…

 

Hoje vou esquecer a fachada. Cuidar-me. Por dentro.


Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Tudo bem, mas ambos sabemos que a fachada tb faz parte integrante de ti e do teu eu, logo....

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