quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A história do Botânico

 


Para o meu tio-avô Zé 
(pelos seus bonitos 87 anos)


Acreditem ou não. Ninguém pedirá, em momento algum, a vossa opinião. Mas, numa manhã fria de inverno, aproveitei a ausência de chuva e sentei-me num dos bancos do jardim. Cheirava a terra húmida e ouvia-se o silêncio que os bichos fazem quando rastejam por debaixo da folhagem carcomida do outono, há muito caída das nuvens-copa de mil árvores.

O silêncio recortava arestas na memória e correu uma jovem de tranças negras na minha direção, saltando um longo ramo de hera que arrancara algures como se fora uma corda de saltar. Teria, talvez, 13 anos. Quando me viu, retraiu-se e parou, escondeu-a atrás das costas e pediu-me infantilmente:

Não contes à mãezinha.

Ri-me das suas palavras e cruzei os dedos por de sobre os lábios, numa promessa que a fez sorrir de forma aberta e harmoniosa, ao mesmo tempo que lhe enrubesciam as maçãs do rosto. Vestia um vestido gasto de chita, de um verde velho com bolinhas brancas. Sentou-se ao meu lado e perguntou-me o que estava a fazer.

A ver passar a vida. Respondi. Ela não pareceu achar que o passar da vida fosse interessante, porque roubou a conversa, mudando-lhe o tema.

Vim buscar folhinhas de amoreira ao senhor Tomé. Levantei o sobrolho. Não era a amoreira uma árvore de folha caduca? Não estariam essas folhas velhas e gastas, no chão, sendo comidas por minhocas, larvas e cupins...?

E para que as queres? Ela sorriu.

Essa é uma longa história!

Eu tinha tempo...

*

No dia 12 de Fevereiro de 1938, Ciosinha vinha da escola. Vinha cantando os seus 7 anos de vida. Cumprimentando aqui e ali senhoras cujo primeiro nome sempre era Dona e que algures tinham também Maria. E alguém lhe disse: tens um maninho novo lá em casa. Isto é importante: ela não corria. Não corria porque uma menina não devia correr. Já a repreendiam o bastante quando roubava hastes de plantas para saltar à corda na ladeira. Mas correu. Correu porque não tinha notado a gravidez da mãe. Correu porque lhe tinham falado de amor. Porque a frase do amor era aquela: tens um maninho novo lá em casa.

O nome do maninho foi António José. Nascera no dia de santa Eulália. Tinha olhos castanhos. Deixara derreada a mãe, que já não ia para nova. Tomara de primeiro nome o nome do pai, cacheiro viajante, que regozijou o nascimento do segundo menino, depois de um primeiro varão e três moças.

António José ficou conhecido por Zé. Mentiu à mãe uma vez. Só uma. E serviu-lhe de emenda a lição dada com a mão firme. Ainda assim, a irmã vestia uma capa protetora de amor. E, quando as caixinhas de bichinhos da seda começaram a ganhar espaço debaixo da cama, era ela que se escapulia até ao Jardim Botânico e interpelava o jardineiro. Senhor Tomé, não tem por aí umas folhinhas de amoreira?

O Zé jogava futebol. O Zé cresceu. O Zé casou. O Zé divorciou-se. Arranjou trabalho no Porto, largando depois o curso de Direito, que por direito nunca foi o seu e lançando-se na área da Medicina que tanto amava. Vendeu ideias. Apaixonou-se. Foi trabalhar para África. Regressou. E houve sempre amor. Aquele de quando disseram à Ciosinha: tens um maninho novo lá em casa. E ouvi a voz dela completar a história. E ele já tem 87 anos...

*

Olhei para os ramos despidos das árvores acima de mim. E caiu uma gota de água no meu rosto. Pensei dizer à menina que era impossível que o irmão mais novo tivesse 87 anos e que ela se lembrasse daquela história. Mas, quando olhei o banco, ela já não estava.

 

No chão, mantinha-se um ramo recurvado. Sobre ele, folhas verdes e primaveris de amoreira.

 

E o Botânico falou. Usou a voz da menina das tranças e disse-me: agora vai celebrar o maninho que nasceu, porque dele, um dia, trarás o legado. É que a amoreira tem folhas caducas. Mas o amor tem folhas perenes.

 

Hoje estou aqui. A celebrar. Nasceu o maninho da Ciosinha. Esse que, como eu, "é o que é, mas quando deixa de ser o que é nunca mais é o que é".

 

Brindo com um Monte Velho a sua eterna juventude.

 

Venho a sorrir, saltando na corda de hera da memória.

 

O amor tem folhas perenes.


Marina Ferraz




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