terça-feira, 8 de abril de 2025

Sobrevivência

 

Imagem retirada do Pixabay

Há um motivo para que a palavra sobrevivência seja feminina. Desengane-se quem acha que não existe um alvo nas costas de todas as mulheres. Um medo que não é inerente à condição, mas que nasce, muito cedo, em pequeníssimas coisas gigantes.

 

Reconhecemos a que classe pertencemos muito cedo. Começa com coisas tão simples como um “quando fores grande podes ser...”. Tão inocentemente dito. Com tão boa intenção. Sem que mães e pais e cuidadores entendam que beberam do patriarcado. Até esse segundo, nenhuma menina imaginou que não pudesse fazer o que quer que fosse... Ali. Assim. Nasce. A dúvida. O entendimento. Amargo. Há caminhos vedados porque, se estivessem abertos, deles não se falaria.

 

Dessa frase nascem outros desafios. Podes ser o que quiseres. Dizem. Mas, mulher no meio de homens, perceberás que existem lugares onde trabalharás o dobro para receber metade. Perceberás que serás encarada como um pedaço de carne laboral, onde chefes e colegas frequentemente querem meter os dentes, e que chefes e colegas provavelmente verão apenas na condição de mulher. E todo o trabalho mal feito será porque o és. Mulher. E todo o trabalho bem feito será apesar de o seres. Mulher.

 

Esta é uma realidade transversal, para a qual felizmente há exceções. Felizmente existem. Infelizmente são raras. Raras, como o é o acesso a trabalhos que se consideram apenas masculinos ou cargos de poder muito elevados. E dirão. Existem mulheres nesses cargos. Nesses trabalhos. Eu sei. E, mais uma vez, raros são os casos em que o que temos, nesses cargos e trabalhos não sejam, na verdade, mulheres que se vergam ao seu lado mais masculino para pertencer. Lembro-me sempre de uma história que me contou um Técnico de Petróleos sobre uma mulher que, estando na messe, foi questionada sobre o que achava do assédio, tendo respondido um categórico “acho que há pouco”, que levou todos ao riso. É a ânsia de fazer parte, quando se sente que não se faz parte. Quando o mundo não deixa que desapareça a nuvem que chove sempre nas cabeças femininas. A ambição obriga à adaptação. Temos muitos camaleões. E, das suas bocas, frequentemente saem comentários que querem ofender (e por vezes ofendem mesmo) as mulheres livres, que se recusaram a vergar.

 

Podes ser o que quiseres. Mas não livre. Porque tens de ter cuidado com o que vestes. Com a hora a que vens para casa. Com a forma como falas. Sorrir? É insinuação! Chorar? Estás com o período! Brincar? Flirt! Um ar sisudo? Falta de sexo! Fora de casa - se não for também dentro – uma mulher não pode ser tudo o que quiser. Pode ser tudo o que o patriarcado deixa. E, frequentemente, o que a mulher pode ser é vítima de violência doméstica, psicológica, laboral, sexual...

 

Sobrevivência não é uma palavra feminina por acaso. E não, este texto não tem piada nenhuma, porque não consigo encontrar forma de me rir. Talvez esteja com o período, talvez seja falta de sexo, talvez seja a maldição de ter olhos na cara e neurónios funcionais...

 

A minha mãe também me disse que eu podia ser o que quisesse, quando era pequenina. Mas disse-me já mais de vinte vezes, depois disso, que eu não posso mudar o mundo. Acho que até ela sabe que isto é antagónico.

 

Gostava de ser bomba. Mas sem violência. Explodir compaixão e entendimento. Filosofias válidas e noções de empatia. Não podendo ser o que quiser, sou o que me permite o código legal. É proibido por bombas dessas, não vá a ordem mundial reorganizar-se e mandar abaixo um sistema que serve tantos! Sem poder ser o que quiser, sou hoje uma pessoa a escrever este texto, que provavelmente não será lido por muita gente.

 

Sabem que mais? Se fizer a diferença para uma pessoa... nem que seja para que não se sinta só na sobrevivência... já fico feliz. Mas, Deuses, não devia ser preciso este texto. Nem lutar assim. Nem sobreviver. Devia ser só viver. Devia.


Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. José Oliveira16:45

    Sim, Marina querida, tens montanhas de razão. Estamos, para o bem e para o mal, inseridos neste estrato da sociedade. Lutamos para sobreviver, para nos adaptarmos e para não sermos cilindrados na voragem da opressão. É uma luta que nunca pára. Mas lembro que, por exemplo em Israel hoje, é prática comum a violação ritual em grupo, com alegados pretextos pseudo-religiosos. Sucede em sinagogas, estabelecimentos de ensino e até em casa. Toda a sociedade é complacente, polícia, tribunais, famílias. Nunca há testemunhas além das vítimas, claro, pois todos têm algo a esconder. Sim, minha querida, o inferno existe mesmo aqui e agora. Sobreviver é a palavra de ordem.
    Beijo grande. Zé

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