terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A pessoa que me salvou a vida

 


Ela não era nada de especial. Ou, na verdade, talvez fosse. Diziam que era. Mas de forma condescendente. Especial nunca significava especial. Especial significava muitas coisas. Difícil, diferente, estranha. Especial era a palavra condescendentemente colocada na frase, por aqueles - tão poucos - que se preocupavam com a ideia de não a ferir.

 

Aos meus olhos, ela não era nada de especial. Baixinha, gorducha, de cabelos desgrenhados. Sempre agarrada a cadernos cujas capas rasgavam do uso excessivo. Sempre agarrada a canetas cuja tinta durava dois dias. Com os fones nos ouvidos e baladas fora de moda aos berros. Atenta às letras e desatenta das pessoas. Com medo de abrir a boca em público, nem que fosse apenas para pedir um hambúrguer ou uma colher para comer o pastel de nata como as crianças.

 

Ela não era nada de especial. Se não sabiam dela, o mais provável era que estivesse na biblioteca. A apaixonar-se pelos livros e o xadrez e os rapazes que também se escondiam entre aquelas prateleiras literárias. De forma leve e fugaz, nem sequer sabia o que era o amor... mas construía, sobre ele, narrativas épicas que tomavam contornos muito mais maduros do que os seus anos de idade.

 

Não sendo especial, ela era excessiva. Arrastava muitas histórias sobre os ombros. Tantas que eram mais do que as que tinha vivido. O horizonte das pedras do chão era-lhe familiar como o mar é familiar ao sol que se queda no fim da tarde. Mas cada pedra tinha uma história só sua. E, se não tinha, ela inventava-a. Acreditava que todas as coisas deviam ter um nome, uma narrativa, uma vida. Até as suas cicatrizes tinham nome e história. Algumas - que amava – trazia da infância. Outras - que apagaria com facilidade, caso tal chance lhe fosse dada – eram já fruto de uma juventude onde a sanidade se tornava discutível. Gostasse delas ou não, dava-lhes nomes, história e razão; deixando-se riscar por elas com a mesma facilidade com a qual tatuava cadernos com palavras.

 

Essa menina não gostava do reflexo do espelho. Mesmo assim, ainda o preferia ao reflexo da sociedade. Temia que o mundo estivesse a seguir os passos da decadência e que, um dia, viesse uma guerra ou - pior - uma ditadura. Preocupada com essas questões, chamaram-lhe várias vezes desequilibrada e louca. Ou especial. Mas nunca no bom sentido.

 

Dizia que não se importava com as críticas. Era mentira. Ela importava-se. Mas não se importava – nunca se importou - o suficiente para mudar. E, com uma força inexplicável, foi uma muralha firme face a todos os ventos e marés, face a todas as adversidades.

 

Não mudar e não querer mudar é, aos meus olhos, o que a tornou especial. Não na medida da condescendência mas na da comparação efetiva com o que é normativo, regular, medíocre e banal. Os meus olhos, que a fixavam a partir da superfície espelhada do vidro, passaram de ver a menina gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado, para ver uma imagem de força intemporal. Assistir ao embate que a colocava só contra o mundo, as pessoas e os outros, fossem eles quem fossem, foi limpando a imagem pouco clara que dela eu tinha e fazendo dela uma espécie de heroína só minha, sem banda desenhada que a apresentasse ao mundo.

 

Pego na fotografia. O corpo que pega na fotografia é magro e tem o cabelo esticado. Usa saltos altos, às vezes, e maquilha-se com frequência. Esse corpo pega na fotografia. É quando ele lhe pega que eu a vejo. Gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado. Os meus olhos maquilhados brilham um bocadinho a olhar para ela e mostram-na a alguém, que me pergunta se tenho vergonha.

 

Encolho os ombros. Não. Não há vergonha que possa ter-se da pessoa cujas pernas trilharam o meu caminho. Nem vergonha que possa nascer das mãos que se deformaram para me fazer cumprir o sonho. Nem vergonha que possa existir sobre quem, com uma fé maior do que a divina, decidiu acreditar no amor e na sua própria essência, mesmo quando a vida, na sua crueldade, punha falésias à frente dos pés, no caminho dos espinhos secos. Esta pessoa, concluo, foi quem me fez quem sou. Esta pessoa salvou-me a vida.

 

Devo-lhe tudo o que sou. A essa menina gordinha e baixa, de cabelo desgrenhado. Penso que, de alguma forma, se ela não tem algo de especial, ninguém tem.


Marina Ferraz



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