terça-feira, 25 de junho de 2024

Adoro...!

 

Imagem retirada da web | Pexels

Eu adoro ouvir as pessoas que defendem o indefensável. Há algo de absolutamente tranquilizante no imenso vazio que preenche as suas mentes, onde o cérebro, se existiu, desertou. Resta um espaço oco e de ecos. Como uma sala abandonada de uma fábrica de fertilizantes orgânicos, com a luz entrando pela janela dos olhos e mostrando as manchas nas paredes, qual gravuras rupestres pintadas a dedo por bebés tristes a quem não mudaram a fralda. 

O vazio entre as paredes soa pacífico. Isto, embora imagine que a proliferação bacteriana provocada pelos resíduos de adubo e lixo, bem como a rega frequente da Tirania justifique o cheiro nauseabundo das palavras que lhes saem pela boca, enquanto mastigam pastilhas elásticas com sabor a Os-Media-Disseram. Seja como for, adoro ouvir as barbaridades que dizem. Deixo notas, em forma de lembrete frequente, a mim mesma, dizendo que é importante querer o bem de toda a gente. E, por isso, mesmo detestando as mensagens, eu adoro ouvi-las na voz das pessoas ocas.

 

“Eu não acredito que há fome em Portugal...”, “eu acho que as imagens da guerra são criadas por IA”, “eles dormem na rua porque querem”, “mesmo que seja uma criança que tenha sido violada, ela deve levar a gravidez até ao fim”, “não dou para a Cruz Vermelha, nem para o Banco Alimentar porque os armazéns estão cheios de produtos estragados e os beneficiários deitam os produtos fora”, “eutanásia é matar velhinhos”, “os estrangeiros e os pretos deviam ir para a sua terra...”.

 

Adoro. Fico feliz, na verdade. Ainda bem! Que bom!

 

Porque quem o diz, não passa fome. Porque quem o diz, não está a fugir da guerra. Porque quem o diz não dorme em cima de cartão, nem nas tendas dos jardins. Porque quem o diz não foi violado na infância, nem engravidou do violador, nem tem dificuldades que o impeçam de criar um filho. Porque quem o diz nunca soube o que é precisar de pedir ajuda para ter o que comer, o que vestir. Porque quem o diz não está com uma doença terminal e a sofrer de forma indizível a cada respiração. Porque quem o diz não teve se emigrar para se proteger ou encontrar uma oportunidade de trabalho, ou de enfrentar a vida com dificuldades maiores só por questões relacionadas com a melanina.

 

Adoro que haja quem o diga. O indizível. Quem o defenda. O indefensável. Por entre o nauseabundo de palavras que não consigo subscrever, escolho o amor em vez do ódio. Ainda bem! Quem bom! E, quando o digo, ofendem-se.

 

O eco da bondade no vazio entre as paredes da sala abandonada da fábrica de fertilizantes orgânicos que têm dentro traz a memória do pensamento que deveria povoá-lo. De repente, por um momento, a tranquilidade é abalada. E nenhum tirano sabe fazer mais do que deixar que as ideias injustificadas, injustificáveis, sejam mais do que verborreia. Quem não tem argumentos, fala muito para não dizer nada. Discorrem longamente sobre as teorias, como quem tenta explicar as razões pelas quais a Terra é plana. Porque sabem que também eu não passo fome ou vivo na rua. Que também eu não enfrento a guerra, o racismo, a xenofobia, a doença indizível ou a gravidez indesejada. E que, mesmo assim, escolho estar do lado da História onde se colocam os que defendem a equidade, a justiça e a paz.

 

Dentro da minha própria cabeça, sinto o pensamento doer. É para isso, também, que servem os cérebros. Para nos dizer, um dia, que tiremos da boca a pastilha elástica com sabor a Os-Media-Disseram e a colemos debaixo da carteira. E é então que abrimos o livro. Um atrás do outro. E descobrimos que tudo é um ciclo. De onde vimos. Para onde vamos. É absolutamente assustador! E, de algum modo, encontro paz quando encontro esse vazio, todo cheio de uma placitude que eu não conheço... com paredes pintadas a gravuras rupestres – agrestes e rudimentares - pintadas a dedo por bebés tristes a quem não mudaram a fralda.

 

Eu adoro ouvir as pessoas que defendem o indefensável. Há algo de absolutamente tranquilizante no imenso vazio que preenche as suas mentes.


 Marina Ferraz


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terça-feira, 18 de junho de 2024

Se eu estiver certa

 


Em memória de 
Maria Graciosa Cunha de Almeida Ramiro Júlio Matias

Se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades. É isto que eu sei. Quando abri os olhos, foi o meu primeiro pensamento. Um pensamento solto. Livre. Ondeou em meu redor e pousou no meu ombro. Disse-me “bom dia”. E eu percebi como sou feliz. Com a saudade.

 

 

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

Todos os dias penso em quem, por sobre a terra caminhando, largou o apego ao corpo, que se fez terra também, para voar livre para paragens desconhecidas.

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

E todos os dias eu vivo com um toquezinho muito ténue de alento, que vem justamente da falta, porque a não vejo como falta, mas como uma presença-presente até ao limite do que o verbo estar comporta.

 

Quando penso – saudosamente - em vocês, que não estão, penso nessa presença permanente que as muitas presenças deixaram. Penso no quanto é preciso que a presença importe, marque, prevaleça, para que sintamos saudades de alguém.

 

Sou um ser de solitude. Talvez porque preciso de silêncio e paz para vos ouvir nesse sussurro muito sussurrado, a darem-me as respostas que o mundo não cede. Ou cede. Mas com ruído e violência e desamor. Com guerra e servidão. Não. Não quero aprender com o mundo. Quero aprender nesses pequenos vazios cheios-de-vós, cheios-de-voz, cheios-de-avós, nos quais eu sinto que me é dado, de bandeja, um conhecimento puro e leve, capaz de entranhar no tutano do osso vergado que abraça o coração. Um conhecimento que é amor e não amargor. Leve. Desapegado.

 

Cada dia que passa. Cada mês. Cada ano. Passos. Passos para chegar à plenitude. Ao reencontro?

 

Todos os dias penso em ti, avó.

Todos os dias penso em ti, avô.

Dizem-me que pensar-vos é trazer mágoa à vida. Mas quem o diz não sabe nada sobre a vocês. Ou sobre a mágoa. Ou sobre a vida. Sabe só que é mais fácil encher os dias de muitos nadas, que cubram e enterrem os sentidos, para que o cansaço ganhe e a alma feche os olhos.

 

Não acho que gostasse de vos falar do mundo, hoje. E vocês sabem como eu sou. Como gosto de acusar os autores pestilentos e péssimos destas narrativas de miséria e conflito, onde o único mandamento que prevalece é “ide e fazei fortuna à conta da desgraça alheia”. Mas não. Hoje não. Quando abri os olhos, tive um meu primeiro pensamento. Um pensamento solto. Livre. Se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades.

 

Então, hoje, em vez de vos falar do mundo, vou falar ao mundo sobre vocês. Não vou contar pormenores, nem detalhes. Não me vou demorar na forma como se arrastavam horas em histórias pequeninas e jogos de palavras e dedos-meninos. Não me vou demorar no som do dominó a bater na mesa, ou no cigarro apagado no cinzeiro, que era prólogo do acender de um outro. Não me vou demorar a dizer como olhos eram cascata virgem na vibração orgulhosa do meu nome. Não me vou demorar no conselho tatuado na minha pele, dito de voz idónea e escrito por mão tremente. Vou falar ao mundo sobre vocês, dizendo simplesmente que, se eu estiver certa, vou ter saudades das saudades.

 

E isso terá de bastar.

 

Porque todos os dias penso em ti, avó.

Porque todos os dias penso em ti, avô.

 

E acredito, do fundo desse coração abraçado por ossos que beberam da vossa presença, que isso me deu uma vida que valeu a pena. Quer eu esteja certa. Ou não.

 

 Marina Ferraz


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terça-feira, 11 de junho de 2024

Teoria da Regressão da Espécie

 

Imagem retirada da web | iStock

Na escada da evolução, creio que o pé da sociedade algures resvalou. Falhou o degrau seguinte, deu com os dentes na trave. Magoou-se.

 

Os primatas apontaram dedos e riram, com guinchos, como qualquer humano também teria feito, se não doesse. Mas doeu. Doeu muito. Apetece chorar. Talvez Freud explique. Darwin, certamente, não conseguiu.

 

Quer dizer, Darwin poderia explicar. Quando nos fala da Teoria da Evolução, ele aponta o ambiente como gerador de processos de uma seleção natural, capaz de dar primazia a quem melhor se adapta. Para alguns, estou certa, isto poderia fazer sentido com o que se está a passar, já que parece que a nova moda é achar que os “escolhidos de Deus” e os “defensores da raça” são os mais adaptados e os únicos que têm razão neste globo (que muitos dos referidos escolhidos e raça-pura dizem que é plano). Também poderia fazer sentido se considerarmos que, feito primatas, muitos apontam esta gente a guinchar e a rir. Pior. A votar.

 

Em todo o caso, eu não encontro sentido nisto. Sinto que a “Teoria da Regressão da Espécie” seria mais precisa, num momento em que se assiste à aniquilação dos processos evolutivos que visavam – sei lá! – construir um mundo mais equitativo e justo.

 

Monta-se mais uma tenda na rua, em Lisboa. Coloca-se mais uma caixa de cartão a servir de colchão. Veda-se a fronteira, como se ela não fosse feita de ar. Envia-se apoio para a guerra, mas não alimento ou medicação: arma! Pobres de espírito falam dos pobres com asco. Herdeiros do colonialismo mandam pessoas “para a sua terra”. Senhores que se acham donos do mundo destroem o mundo, a míssil ou com políticas de desmatamento. O 1% que tem 99% da riqueza continua a roubar os 99% que vivem com o 1%, e as igrejas sugerem ao segundo grupo que ajude os pobres. Os pobres ajudam os pobres. Os ricos enchem a pança com a pobreza. Alimenta-se a dívida, aquela que já concluímos que a Terra tem para com o retrógrado do Mercúrio...

 

Por entre toda a destruição de alicerces básicos. Por entre o esbater dos direitos humanos. Perante o retorno ao lado mais negro dos tempos idos, as multidões erguem-se para o descontentamento. Porquinhos com as suas casas de palha, a votar nos lobos que já nem sopram... mandam soprar. Porquinhos a soprar as palhas de outros porquinhos. Todos desalojados e livres de direitos, em vez de livres por direito.

 

Dou por mim a chamar pela minha mãe e pelo meu pai, para que me acordem do terror noturno, que também é diurno. - Talvez Freud explique. - Mas não estou a dormir. Estou acordada e a perguntar como é que Darwin explicaria esta “evolução” regressiva.

 

Li um dia, algures, uma frase atribuída a Emir Sader: “Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros macacos morressem de fome, os cientistas estudariam aquele macaco para descobrir o que raio estaria a acontecer com ele. Quando os humanos fazem isso, nós pomo-los na capa da Forbes”.


Penso que tudo está ao contrário. Até a ciência. Até Darwin. Talvez porque não são tempos de “dar” nem de “ganhar” (win). Talvez porque são tempos de roubar e perder. Quero uma teoria nova. Sobre esta doença estranha. E uma cura que não passe pelas grandes farmacêuticas... ou não poderíamos pagá-la.

 

Marina Ferraz


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terça-feira, 4 de junho de 2024

Pede um desejo

 

Imagem de utilização gratuita | Pexels

Trabalho. Saúde. Sorte. Amor. Felicidade.

 

Se perguntarem à maioria das pessoas, estes são os pontos fortes sobre os quais gostariam de se debruçar. Uma cartomante iria dizer-vos que as perguntas mais comuns se relacionam com uma destas cinco temáticas. A leitura intrusiva dos diários pessoais diria o mesmo. As orações ditas para dentro também. As pessoas não pedem muito. Mas pedem tudo. Porque pedir trabalho, saúde, sorte, amor e felicidade é pedir plenitude.

 

Brevemente farei 35 anos. Soprarei velas. Irei mordê-las. E alguém dirá: pede um desejo. Direi que sim. Sorrirei. Mas não sei o que pedir.

 

Trabalho

Acontece que eu tinha 6 anos quando decidi que queria ser escritora. Fui uma criança muito estranha. Tão estranha que disse que queria ser escritora sem saber escrever. Escrevia poemas durante as aulas. Lia a gramática nos intervalos. Inventava histórias que seriam grandes romances. Passo a passo, dei a segunda vida às folhas que fizeram com as árvores mortas. Passo a passo. Uma parceria com um jornal. O lançamento de um livro. A ida ao Festival da Canção. As canções sem festival. A palavra dita atrás do micro. O segundo livro. O palco. As empresas que me encontraram e quiseram os meus textos. As dificuldades. A luta. O dinheiro no fim do mês. Eu tenho trabalho. O meu trabalho nem sempre me permite uma vida fácil. É mais bruto do que líquido. Mas, do que líquido fica, mata-me a sede ao desejo de cumprir, todos os dias, a promessa que fiz àquela menina de 6 anos.

 

Saúde

Não sou uma pessoa de escolhas saudáveis. Uso a dieta-da-vida do meu avô. Homem que sempre comeu, bebeu e fez o que lhe dava na telha. Mas, por entre os hábitos pouco sadios, o facto é que, em 15 anos, só fiquei doente 2 vezes. Ambas psicossomáticas e depressa resolvidas com cortes estratégicos diretamente na fonte do problema. Nem a Covid me quis...

 

Sorte

Todos os dias há crianças a morrer de fome. Meninas a quem é feita a excisão. Meninas casadas precocemente. Meninas e mulheres traficadas e tratadas como gado. Meninas e mulheres forçadas a prostituírem-se, a taparem-se, a escravizarem-se. Meninas e mulheres apedrejadas. Meninas e mulheres a fugir de guerras e violência. Mulheres a terem os filhos arrancados dos braços. Mulheres que passam por atrocidades tão diversas que, aqui e agora, eu não me lembro de todas.

Tive sorte. Sorte de nascer a norte de uma linha. Branca, europeia, de classe média, no abraço de todas as vantagens e abébias. Sorte de poder queixar-me, ainda assim, das coisas que acho erradas. Sorte de receber olhos que veem e alma que não ignora o mundo. Olhos e alma que me fazem saber que já tenho toda a sorte de que preciso.

 

Amor

Não bastou a sorte de nascer aqui. Nasci aqui-aqui. No seio de uma família onde nunca faltou amor. Amor foi a minha primeira refeição e todas as que se seguiram. A minha mãe ensinando-me a ser gente. O meu pai trazendo para a mesa alimento e oportunidade. Os meus irmãos dando-me a honra de ter amigos e companheiros de brincadeiras e confidentes. Os meus avós ensinando-me a bondade. Conheço o amor pelo primeiro nome. Trato-o por tu. E ele continua a bater-me à porta. E ele continua presente em cada respiração. Então, para quê, pergunto, pedir o que se tem de sobra?

 

Felicidade

Sou tão feliz que tenho a felicidade de saber que ser feliz é uma escolha. E faço essa escolha todos os dias. Mesmo naqueles em que estou triste. Talvez as gramáticas que li na primária me tenham feito bem. Talvez perceber a diferença fundamental entre estar e ser seja exatamente o que falta a quem se diz infeliz. Tenho trabalho, saúde, sorte e amor. Tenho tudo para ser feliz. Então sou.

 

 

É uma equação simples. Eu tenho tudo o que as pessoas pedem. E um problema. Vou soprar as velas. Morder as velas. E alguém dirá: pede um desejo.

 

Gente, eu acho que esta vida foi o cumprir de um desejo que eu fiz na vida passada. Só eu sei como queria que toda a gente pudesse dizer o mesmo.

 

Ah... esqueçam... afinal acho que sei o que pedir...


Marina Ferraz


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