terça-feira, 15 de outubro de 2024

Universidade pública

 

Imagem gerada por I.A.

Lisboa, Setembro de 2030

 

A Faculdade Pública de Comunicação, única em funcionamento no país desde a privatização das demais instituições de ensino superior, vem por este meio dar conhecimento da abertura de 200 vagas para a Licenciatura em Jornalismo Manso. As candidaturas deverão ser enviadas apenas por alunos de sobrenome Carneiro, que residam na cidade ou que provenham de outras regiões do país, contando que tenham capacidade financeira para suportar a renda de mil euros por quarto, sendo que esta é a avença mais reduzida que atualmente vigora na capital. Alunos cujo IRS familiar não comprove a sua capacidade financeira para suportar a sua estadia não serão considerados para as vagas.

 

O programa deste curso tem uma componente teórica e uma componente prática, com o objetivo de promover a higienização mental e fornecer capacidades efetivas, em campo, sem recurso a instrumentos de apoio nocivos, como auriculares. Lecionadas por comandantes das mui nobres forças armadas portuguesas e fundamentais figuras do clérigo, as aulas iniciar-se-ão com um momento de oração, no qual se promoverá o conceito de família tradicional, garantindo que os alunos não estão sujeitos à pressão para enviesar a sua moral para atividades divergentes e moralmente incorretas.

 

Além das aulas de frequência obrigatória como “A História do Jornalismo Manso”, “Fontes Oficiais e Pesquisa Breve” ou “Media ao Serviço da Economia Política”, que visam a manutenção do status quo e da ordem natural da vida nacional na construção de textos e criação de conteúdos audiovisuais, haverá também uma seleção de unidades curriculares opcionais, de entre as quais o estudante deverá escolher 2, e que são: “Escrita para Imprensa Mansa”, “Técnicas Passivas de Jornalismo”, “Psicologia da Apatia Social Induzida”, “Comunicação de Ciência Irrefutável”, “Técnicas para Silenciar Debates” e “Media e Serviço ao Governo”.

 

Ao longo do ano serão ainda promovidos vários workshops, lecionados por figuras incontornáveis do Estado, que darão a conhecer as principais razões pelas quais um jornalismo pacato e baseado apenas nas fontes oficiais de informação é importante, destacando ainda a importância de não buscar o contraditório para qualquer notícia relacionada com a ação governamental.

 

É objetivo que, através de um regime de Bolonha, agora atualizado para apenas 2 anos de estudos, os alunos consigam atingir um nível de excelência no jornalismo manso, que permita aos mui nobres regentes desta nação democrática atuar de forma a potenciar a eficiência administrativa do Estado, para benefício das camadas sociais com maior poder aquisitivo.

 

Para os alunos que cumpram os requisitos, haverá a possibilidade de estágio numa das cadeias de televisão e rádio privadas, com as quais o Estado mantém estreita parceria.

 

P.S: Devem ser pagas à cabeça 3 mensalidades de propina e duas de caução, apresentando ainda um fiador no momento da inscrição.

 

Enviem as vossas candidaturas para: nãoserevoltemnão@depoisqueixem-se.pt


Marina Ferraz




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terça-feira, 8 de outubro de 2024

A mistura

 

Imagem gerada por I.A.

Quando eu era pequena, a minha mãe preparava-me uma taça de Cerelac ou Nestum de Chocolate para o pequeno-almoço. (Não, este texto não é patrocinado pela Nestlé.) Havia semanas que recebia um, semanas em que recebia outro... e dias raros nos quais tinha, de presente, esperando por mim na cozinha, uma taça de mistura. Nesses dias, a taça tinha um aspeto de Stracciatella e, para melhorar a sensação que me trazia, o Cerelac formava ainda, como acontecia nos dias em que vinha a solo, pequenos grumos deliciosos por entre a cremosidade do resto da mistura.

 

Isto fazia-me feliz. Os grumos eram a parte do Cerelac que deixava para o fim, deliciando-me com a textura e o sabor dos novelinhos granulados. O dia da mistura era diferente e especial.

 

Nos meus olhos de criança, a minha mãe tinha o cuidado de preparar a papa como eu gostava e a atenção de me premiar, de tempos a tempos, com uma delícia nova, de sabor lácteo ponteado a chocolate. E eu, que a amava por mil outras razões, amava-a também por isso. Porque era a cuidadora carinhosa que me deixava, a cada manhã, aquele presente sobre a mesa, para que eu começasse o dia a sorrir.

 

Demorei muito tempo a saber que a mistura era o aproveitamento do resto do pacote, que não chegava para uma refeição, com o novo, para que se poupasse. Demorei muito a saber que os grumos eram a corrida sem tempo de uma mulher que tinha mais dois filhos para cuidar e que tinha de deixar todos na escola e cuidar das tarefas.

 

Hoje, o meu pequeno-almoço é um café afogado em (demasiado) açúcar com canela em pó. Mas ainda faço as papas às vezes, para o lanche ou um almoço ocasional. Como o meu Cerelac com grumos e gosto particularmente quando tenho um pacote no fim e outro a começar, para fazer a mistura. Estranho, ainda assim, que não tenham o mesmo sabor de que me recordo nas manhãs da infância. E, de todas as vezes, percebo que a memória doce não é a do pequeno-almoço, mas a da minha mãe, que mo servia, fazendo-me acreditar, sem dizer nada, que tudo aquilo era por e para mim.

 

A minha mãe nunca me disse que deixava os grumos por minha causa. Também nunca me disse que fazia a mistura porque eu gostava. Eu assumi isso. Porque tudo o que ela fazia era por mim, e eu não achei que as caraterísticas do meu pequeno-almoço tivessem qualquer diferença. Espantei-me, por isso, quando ela me disse que só fazia a mistura para aproveitar e que deixava os grumos porque não tinha tempo.

 

É uma coisa engraçada. Eu não me lembro de ela não ter tempo. Eu não me lembro de ela cortar em algo para poupar. O que eu me lembro é que ela me fazia o pequeno-almoço. E no simples gesto de o fazer, me fazia sentir a menina mais especial do mundo.

 

Quando me deixava na escola, dizendo adeus através do vidro do carro, eu queria a hora em que me viesse buscar... e às vezes, porque ela estava cansada, jantávamos piza. E sim... eu também achava que era só por eu gostar e não porque o dia a desgastara até ao limite!

 

O mundo cabia no amor. E nem que o mundo real estivesse todo a explodir lá fora, ela transformava essa realidade para criar uma bolha só nossa, protegendo a minha inocência a todo o custo.

 

Tudo isto para dizer o seguinte... Atrás dos gestos de amor, houve empenho e esforço, corrida e cansaço. Houve o mundo a desabar. Houve desespero e descontentamento e dificuldade. Tentarei não me esquecer disto. Mesmo hoje, quando o mundo real está todo a explodir e eu estou cansada. Porque é exatamente assim que quero dar-me aos outros. Porque é exatamente assim que quero viver a vida. Com um pouco de amor em cada gesto, como se os gestos fossem perfeitos... e não se fizessem acompanhar de tudo o que vai menos bem em mim...

 

Possa esta bolha servir para proteger a inocência das crianças.

 

Possa este texto abrir os olhos dos adultos.

 

Possa o futuro ser como o dia da mistura. Feliz-feliz.


Marina Ferraz




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terça-feira, 1 de outubro de 2024

Português suave

 


O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Normalmente tinha a navalha no bolso, o sorriso no rosto e um cigarro na mão, quer o fumasse ou o usasse para ver o mundo através do fumo, senhor desse ponteiro aceso. Era um português suave a fumar Português Suave.

 

O cigarro do meu avô não era só um vício de nicotina. Era um gesto vicioso mais amplo. Uma rotina alicerçada no prazer. Um espaço de partilha. Fazia-se acompanhar da frase, que repetia à minha mãe, feito bênção, quando ela começava a levantar a mesa do almoço. Deixa lá isso e senta-te aí, fuma comigo.

 

Ela sentava-se e fumava com ele. Nessas alturas, ao lado do cinzeiro, o líquido âmbar, sorvido de forma lenta e eficaz, fazia do copo largo o amante improvável das beatas. E eu brincava. E eu corria. E eu olhava, imitando os gestos com os meus cigarros de chocolate, que na altura não eram proibidos nem anti didáticos, e que acabaram por nem me transformar numa fumadora real, nem me trazer diabetes...

 

O meu avô tinha o sorriso doce. Ia dormir a sesta. Acordava com energia suficiente para que víssemos filmes de domingo à tarde e jogássemos dominó... tudo ao mesmo tempo. Tinha livros policiais sempre pousados na mesa. E também esses livros eram amantes inveterados do cinzeiro, onde ia apagando sucessivos cigarros, que sorvia com paixão, com a trama na mente.

 

Era um homem do campo, com a quarta classe. Um homem que trazia os traços boémios da juventude, vincados em cada ruga de expressão. A Liberdade, da qual talvez desdenhasse um pouco, era a mesma evocava em gestos. Nunca se negou nada. Fumou cada cigarro com ânsia e sorveu com igual paixão alimentos, bebidas, amores e desejos.

 

O meu avô foi imortal até tocar o telefone. Mas uma noite, o telefone tocou. O toque do telefone é horrível. Feio. Ecoa pela noite como uma promessa estridente de silêncio.

 

Hoje, a minha mãe não fuma e ninguém a impede de arrumar a mesa depois do almoço.

 

O quiosque onde o meu avô ia fechou algum tempo depois de ele morrer... e eu acho que foi por isso. Que o negócio do tabaco só sobrevive quando se fuma. Vive da morte dos outros, mas só até os matar.

 

Já não se vendem cigarros de chocolate. E eu já não sei se consigo jogar dominó e ver televisão ao mesmo tempo... porque raramente jogo dominó e não tenho televisão.

 

Sei que inalei muito fumo e muito amor junto desse português suave, que não era tabaco, mas gente...

 

E, porque não quero que o toque do telefone tenha sido o carrasco da imortalidade do meu avô, aqui estou. A falar sobre ele, outra vez, na data da sua morte. Para que a memória não seja como aquelas beatas no cigarro, que o copo de whiskey e os romances da Agatha Christie namoravam.

 

 

O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Eu carrego sempre comigo a memória suave, num maço de histórias para contar. E um pouco do mau feitio. E um sorriso doce, às vezes. Não há herança mais bonita.

Marina Ferraz




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