terça-feira, 1 de outubro de 2024

Português suave

 


O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Normalmente tinha a navalha no bolso, o sorriso no rosto e um cigarro na mão, quer o fumasse ou o usasse para ver o mundo através do fumo, senhor desse ponteiro aceso. Era um português suave a fumar Português Suave.

 

O cigarro do meu avô não era só um vício de nicotina. Era um gesto vicioso mais amplo. Uma rotina alicerçada no prazer. Um espaço de partilha. Fazia-se acompanhar da frase, que repetia à minha mãe, feito bênção, quando ela começava a levantar a mesa do almoço. Deixa lá isso e senta-te aí, fuma comigo.

 

Ela sentava-se e fumava com ele. Nessas alturas, ao lado do cinzeiro, o líquido âmbar, sorvido de forma lenta e eficaz, fazia do copo largo o amante improvável das beatas. E eu brincava. E eu corria. E eu olhava, imitando os gestos com os meus cigarros de chocolate, que na altura não eram proibidos nem anti didáticos, e que acabaram por nem me transformar numa fumadora real, nem me trazer diabetes...

 

O meu avô tinha o sorriso doce. Ia dormir a sesta. Acordava com energia suficiente para que víssemos filmes de domingo à tarde e jogássemos dominó... tudo ao mesmo tempo. Tinha livros policiais sempre pousados na mesa. E também esses livros eram amantes inveterados do cinzeiro, onde ia apagando sucessivos cigarros, que sorvia com paixão, com a trama na mente.

 

Era um homem do campo, com a quarta classe. Um homem que trazia os traços boémios da juventude, vincados em cada ruga de expressão. A Liberdade, da qual talvez desdenhasse um pouco, era a mesma evocava em gestos. Nunca se negou nada. Fumou cada cigarro com ânsia e sorveu com igual paixão alimentos, bebidas, amores e desejos.

 

O meu avô foi imortal até tocar o telefone. Mas uma noite, o telefone tocou. O toque do telefone é horrível. Feio. Ecoa pela noite como uma promessa estridente de silêncio.

 

Hoje, a minha mãe não fuma e ninguém a impede de arrumar a mesa depois do almoço.

 

O quiosque onde o meu avô ia fechou algum tempo depois de ele morrer... e eu acho que foi por isso. Que o negócio do tabaco só sobrevive quando se fuma. Vive da morte dos outros, mas só até os matar.

 

Já não se vendem cigarros de chocolate. E eu já não sei se consigo jogar dominó e ver televisão ao mesmo tempo... porque raramente jogo dominó e não tenho televisão.

 

Sei que inalei muito fumo e muito amor junto desse português suave, que não era tabaco, mas gente...

 

E, porque não quero que o toque do telefone tenha sido o carrasco da imortalidade do meu avô, aqui estou. A falar sobre ele, outra vez, na data da sua morte. Para que a memória não seja como aquelas beatas no cigarro, que o copo de whiskey e os romances da Agatha Christie namoravam.

 

 

O meu avô carregava sempre com ele uma navalha, o mau feitio, um sorriso doce para os netos e um maço de tabaco. Eu carrego sempre comigo a memória suave, num maço de histórias para contar. E um pouco do mau feitio. E um sorriso doce, às vezes. Não há herança mais bonita.

Marina Ferraz




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