terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Apólice

 

Imagem gerada por I.A.

O senhor olhou para mim. O senhor explicou-me os termos do seguro. O senhor fez-me perguntas sobre as fechaduras e a área e o tipo de janelas e perguntou se a porta era blindada. Ergueu o sobrolho quando lhe disse que não a esta última e continuou, categoricamente, a inserir dados no computador.

 

Explicou-me tudo o que um seguro de casa – esse que é obrigatório por lei – teria de conter e tudo o que podia acrescentar, sob a forma de extra, para estar mais protegida. Danos de água, responsabilidade civil, risco de incêndio, ocorrências sísmicas (e aqui aproveita-se os eventos recentes para criar um duplo sentido de necessidade) e ainda quebras de vidros, danos em bens, serviços de emergência, danos em jardins, mais um sem fim de coisas, nunca esquecendo os temíveis – literalmente houve um ar compungido e repleto de todos os tons negros da angústia nos seus olhos azuis - atos de vandalismo ou roubo de bens.

 

Atentamente, ouvi a descrição. Senti-me engolir em seco, pensando na minha casa como a câmara dos horrores e obrigando-me a voltar a mim, para me recordar que a única razão real de eu estar alapada numa sucursal do banco era porque precisava – legalmente – de ter o papelinho da apólice para entregar ao condomínio. Aceitei o pacote mais básico, onde – não se apoquentem! - já se incluía a proteção sísmica, os danos por água, incêndio e a responsabilidade civil.

 

O senhor perguntou-me três vezes se queria assegurar os bens para o caso de furto. Três vezes. Eu devia ter percebido que havia algo inerente à sua pergunta! Mas quis mesmo o pacote básico, cujo valor era mais reduzido.

 

Nisto, por débito direto, eis que o valor anual do seguro é sugado por uma palhinha – de plástico e tudo, porque agora o Trump deixa.

 

Engoli em seco novamente. Pensei para comigo que devia ter feito o seguro com a proteção antifurto... porque foi ali, à luz do dia, em pleno balcão bancário, que aconteceu. Fui roubada! Legalmente roubada! Consta que serei roubada todos os anos, com esta finalidade, pelo menos uma vez.

 

Em perspetiva, os outros bens não precisam mesmo de estar assegurados!

 

Vou ter de os vender – e a um rim – para pagar mais esta despesa...


 

(Há algum seguro em caso de capitalismo exacerbado? Estou a perguntar para um amigo!)


Marina Ferraz




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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A história do Botânico

 


Para o meu tio-avô Zé 
(pelos seus bonitos 87 anos)


Acreditem ou não. Ninguém pedirá, em momento algum, a vossa opinião. Mas, numa manhã fria de inverno, aproveitei a ausência de chuva e sentei-me num dos bancos do jardim. Cheirava a terra húmida e ouvia-se o silêncio que os bichos fazem quando rastejam por debaixo da folhagem carcomida do outono, há muito caída das nuvens-copa de mil árvores.

O silêncio recortava arestas na memória e correu uma jovem de tranças negras na minha direção, saltando um longo ramo de hera que arrancara algures como se fora uma corda de saltar. Teria, talvez, 13 anos. Quando me viu, retraiu-se e parou, escondeu-a atrás das costas e pediu-me infantilmente:

Não contes à mãezinha.

Ri-me das suas palavras e cruzei os dedos por de sobre os lábios, numa promessa que a fez sorrir de forma aberta e harmoniosa, ao mesmo tempo que lhe enrubesciam as maçãs do rosto. Vestia um vestido gasto de chita, de um verde velho com bolinhas brancas. Sentou-se ao meu lado e perguntou-me o que estava a fazer.

A ver passar a vida. Respondi. Ela não pareceu achar que o passar da vida fosse interessante, porque roubou a conversa, mudando-lhe o tema.

Vim buscar folhinhas de amoreira ao senhor Tomé. Levantei o sobrolho. Não era a amoreira uma árvore de folha caduca? Não estariam essas folhas velhas e gastas, no chão, sendo comidas por minhocas, larvas e cupins...?

E para que as queres? Ela sorriu.

Essa é uma longa história!

Eu tinha tempo...

*

No dia 12 de Fevereiro de 1938, Ciosinha vinha da escola. Vinha cantando os seus 7 anos de vida. Cumprimentando aqui e ali senhoras cujo primeiro nome sempre era Dona e que algures tinham também Maria. E alguém lhe disse: tens um maninho novo lá em casa. Isto é importante: ela não corria. Não corria porque uma menina não devia correr. Já a repreendiam o bastante quando roubava hastes de plantas para saltar à corda na ladeira. Mas correu. Correu porque não tinha notado a gravidez da mãe. Correu porque lhe tinham falado de amor. Porque a frase do amor era aquela: tens um maninho novo lá em casa.

O nome do maninho foi António José. Nascera no dia de santa Eulália. Tinha olhos castanhos. Deixara derreada a mãe, que já não ia para nova. Tomara de primeiro nome o nome do pai, cacheiro viajante, que regozijou o nascimento do segundo menino, depois de um primeiro varão e três moças.

António José ficou conhecido por Zé. Mentiu à mãe uma vez. Só uma. E serviu-lhe de emenda a lição dada com a mão firme. Ainda assim, a irmã vestia uma capa protetora de amor. E, quando as caixinhas de bichinhos da seda começaram a ganhar espaço debaixo da cama, era ela que se escapulia até ao Jardim Botânico e interpelava o jardineiro. Senhor Tomé, não tem por aí umas folhinhas de amoreira?

O Zé jogava futebol. O Zé cresceu. O Zé casou. O Zé divorciou-se. Arranjou trabalho no Porto, largando depois o curso de Direito, que por direito nunca foi o seu e lançando-se na área da Medicina que tanto amava. Vendeu ideias. Apaixonou-se. Foi trabalhar para África. Regressou. E houve sempre amor. Aquele de quando disseram à Ciosinha: tens um maninho novo lá em casa. E ouvi a voz dela completar a história. E ele já tem 87 anos...

*

Olhei para os ramos despidos das árvores acima de mim. E caiu uma gota de água no meu rosto. Pensei dizer à menina que era impossível que o irmão mais novo tivesse 87 anos e que ela se lembrasse daquela história. Mas, quando olhei o banco, ela já não estava.

 

No chão, mantinha-se um ramo recurvado. Sobre ele, folhas verdes e primaveris de amoreira.

 

E o Botânico falou. Usou a voz da menina das tranças e disse-me: agora vai celebrar o maninho que nasceu, porque dele, um dia, trarás o legado. É que a amoreira tem folhas caducas. Mas o amor tem folhas perenes.

 

Hoje estou aqui. A celebrar. Nasceu o maninho da Ciosinha. Esse que, como eu, "é o que é, mas quando deixa de ser o que é nunca mais é o que é".

 

Brindo com um Monte Velho a sua eterna juventude.

 

Venho a sorrir, saltando na corda de hera da memória.

 

O amor tem folhas perenes.


Marina Ferraz




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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

A última mensagem

 

Imagem retirada de Renascença 

Para o Renato Júnior


Ligo-te para a semana. Disseste.

 

Eu era, sempre fui, esse espetro que não entendias bem. Descrevias-me como “dark” e insistias, com um sorriso que te fazia rir os olhos: letras menos negras, Marina... querias o mundano, o simples, aquilo que faz as pessoas parar, globalmente, com uma identificação direta. E eu sempre fui de escavar as emoções para ir onde dói. De dizer o que as pessoas não querem ouvir. De falar sobre a morte.

 

Insististe comigo várias vezes. Dizendo-me que as pessoas não querem ouvir falar da morte. E eu insistia em encaixá-la nos versos. E tu sorrias aos versos com os olhos, sem entender. Guardando-os na mesma pasta, esperando que os dedos se envolvessem no piano para que nascesse algo tão denso quanto as minhas palavras. Mas não encontravas canção para a morte. Ou não encontraste até ao dia em que te enviei o “Quando morre o amor”, canção que escreveste de um fôlego e que entregaste à Kátia, para que ganhasse vida. Deste vida à minha morte. À morte do meu amor. E eu não sei se te agradeci o suficiente por todas as canções que criaste com palavras que deixei cair no papel.

 

Lançaste-me um sem fim de desafios. Escrever para teatro. Escrever para álbuns temáticos. Escrever para televisão. Alguns concretizámos... mas também deixámos muitos projetos a meio. E, permeados de silêncio, eu acompanhava as tuas múltiplas vitórias e tu as minhas. E ia-te pedindo, a cada evento, “guarda-me um bilhete”. E íamos dizendo, meio de fugida, a cada encontro “depois ligo-te”.

 

Ligo-te para a semana. Disseste. Na última mensagem. Isto foi há um mês. Sorrio porque, de algum modo, eras tu a ser tu... com tudo o que tinha de bom e mau, com tudo o que tinha de humano...

 

Sei que lançaste um álbum inteiro com a ideia de que “uma mulher não chora”. Mas também nunca fui de fazer o que me dizias! E hoje choro, desculpa. Porque, se tivesses ligado, talvez me tivesse esquecido de dizer que tenho saudades tuas. Mesmo tendo. E, hoje, tenho mais.

 

Digo-to agora. E volto a agradecer-te cada oportunidade e conversa.

 

Sabes que mais, hoje sou eu que não quero falar de morte.

 

Cantaremos novamente lá no outro plano. Guarda-me um bilhete!


Marina Ferraz


"Quando morre o amor"
Música: Renato Júnior | Letra: Marina Ferraz | Voz: Kátia Guerreiro




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