quarta-feira, 26 de março de 2025

A mancha

 

Imagem gerada por I.A.

A minha casa antiga era fria e húmida. Por vezes, nos dias mais chuvosos, a humidade parecia entranhar nos ossos. O calor do ar condicionado que acabei por instalar – e que me custou um rim – dissipava depressa. Por consequência, já se adivinha... a conta da eletricidade subia astronomicamente no inverno.

 

Mudei-me.

 

A minha casa nova não é tão fria. Também é menos húmida. Fica num oitavo andar e tem vistas magníficas para a serra. Mas há uma parede que tem uma mancha. E essa mancha, a pouco e pouco, embora não me pareça que esteja a alastrar, foi-se tornando o meu novo bicho-de-sete-cabeças. Ou, pelo menos, um quebra-cabeças. A mancha não vem do teto. Não passam canos nessa parede. Não encontro nenhuma justificação minimamente válida para que ela tenha surgido. O que chamar? Um empreiteiro? Um canalizador? Um detetive privado? Não saber é o que me vai matando, enquanto espero que a vida me dê o tempo (e o dinheiro) de que preciso para resolver o problema.

 

Entretanto, existem dias nos quais a mancha me é quase indiferente, e outros nos quais me ofende. Dias nos quais passo por ela, alheada, e outros nos quais é a fonte de um começo de depressão. Há dias em que me apetece sair para não a ver. Dias em que me apetece arranjar um cavalo e lutar contra ela, num cenário apropriado de Marina de La Mancha. O que teria Cervantes a dizer sobre isto?

 

Nos piores dias, sinto que gostava de pôr uma bomba ali. Se não houver parede, não há mancha. Digo. Noutros, desespero e acrescento: devia ter ficado onde estava!

 

O certo é que, nesta azáfama de dias em que a mancha não importa e de dias nos quais a mancha é a minha inimiga fidalgal, os meus dias vão ficando também manchados, mas o meu entendimento fica mais claro...

 

Quando dou por mim a dizer que talvez devesse ter ficado na casa antiga, porque ao menos já lhe conhecia as mazelas, há algo em mim que me explica o pensamento de quem continua a votar em quem mancha o país e as vidas de tantas pessoas.

 

Neste pensamento, é engraçado... a mancha da parede da minha casa nova deixa de importar. País vira mundo, como se a cabeça corresse, uma a uma, todas as notícias conhecidas, demorando-se nas entrelinhas e em tudo o que sabe que não foi (não é!) dito.

 

O mundo em que vivo está manchado. Constato. O que tenho na parede não é uma mancha. É uma metáfora. Porra... agora não sei se chamo um empreiteiro, um canalizador, um linguista ou alguém que faça um exorcismo...


 Marina Ferraz




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terça-feira, 18 de março de 2025

Ficheiro

 

Imagem gerada por I.A.

Ouço falar de um Portugal retrógrado, atrasado, a viver de um passado de glória. Mas temos assistido, cada vez mais, a um cenário diferente. Avançado. Que tem todos os sintomas das novas tecnologias.

 

Vivemos entre zeros e uns. Um código binário. Partidário. Em que as conjugações ilegíveis são processadas de forma inteligível para a maior parte das pessoas e invisível, dentro dos possíveis. Tudo corre e se decide de forma mais ou menos encapotada, atrás de um protetor de ecrã conhecido como Canal Parlamento.

 

Os ficheiros vão sendo criados. Um atrás do outro. E há quem os apague. Quem lhes mude o nome. Quem vá buscá-los à Reciclagem. De repente, as verdades sabem-se. Descobrem-se os ficheiros ocultos, mesmo quando protegidos com sei-lá-eu-quantas palavras-passe. Mas... quando são para abrir.... erro!

 

Erro atrás de erro. Dois cliques no ficheiro. O ficheiro não abre. Avisos vários saltam para o centro do ecrã. Desesperam. Vemos os partidos a tentar perceber o que deu errado. Mais fácil seria encontrar o que deu certo. Fazem de tudo. Culpam os outros. Porque criaram o ficheiro, renomearam o ficheiro, apagaram o ficheiro, recuperaram o ficheiro. Agora não. Não fazem nada com o ficheiro. Nada funciona. O erro persiste. No protetor de ecrã que é o parlamento, saltam janelas que são manchete de jornal. O ficheiro, descobrimos todos, é o governo. E nós somos os idiotas a observar, enquanto um grupo de utilizadores com muitas opiniões mas poucos conhecimentos informáticos, continuam clicar em tudo o que é botão, na tentativa de fazer funcionar o que, obviamente, não tem resolução.

 

Há sempre uma última tentativa. Tentam abrir o ficheiro em modo de segurança. Modo de moção. Mas reaparece o aviso: o ficheiro está corrompido. Sobra a alternativa de sempre: desligar e voltar a ligar. Arrancar da tomada. Cortar a corrente. Recomeçar.

 

Dia 18 de Maio, instalaremos novamente o software e serão criados novos ficheiros. Tomara que não tragam vírus... pensamos... mas é improvável!

 

É que eu ouço falar de um Portugal retrógrado, atrasado, a viver de um passado de glória. Mas temos assistido, cada vez mais, a um cenário diferente. Avançado. Avançado e problemático por isso mesmo. É Portugal a ser o computador com ficheiros corrompidos. Infelizmente operado por uma Velha Senhora que não entende muito das novas tecnologias, mas sabe exatamente como manter a atenção no ecrã, quando é a caixa que está a avariar... e fazer com que todos os outros façam o mesmo...

 

Os ficheiros estão corrompidos. Antes estivessem encravados... como as espingardas de 74.

 

 

Enquanto escrevia este texto o computador abriu uma janelinha negra a perguntar se o Windows podia aceder à minha localização. Tenho de parar de escrever estas coisas antes que enviem a Pide ou um equivalente de nome fofinho (como alguns partidos andam a pedir ao Pai Natal há tanto tempo) para me bater à porta...


Marina Ferraz




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quarta-feira, 12 de março de 2025

Moção de Loucura

Imagem gerada por I.A.


Venho por este meio apresentar uma Moção de Loucura.

 

Reconheço, oficialmente, que a Sanidade foi uma das jovens promissoras que emigrou para o estrangeiro à procura de uma vida melhor e sem intenção de retorno. Na sua partida, deixou dentro de fronteiras apenas o já conhecido desespero, a corrupção e alguns laivos de demência, que atingem também (mas não só) a classe política portuguesa.

 

Consciente de que conversas e discursos inflamados já pouco adiantam face à situação atual, e cansada da desordem nacional – tão comum e tradicional como Pastel de Belém e o café com cheirinho – declaro, com a mesma indignação com que o fariam os doutos comentadores políticos dos tascos e cafés, que é hora de rirmos para não chorar.

 

Ressaltando que, de cada vez que o governo cai, quem se aleija é Portugal, espero que esta moção possa ser apoiada pelos que, como eu, estão a ficar roucos de gritar verdades tão ignoradas como os sucessivos líderes governamentais têm ignorado os cidadãos.

 

Mais asseguro que compreendo a inércia dos portugueses no momento de votar e de lutar pelos seus direitos, sabendo que é mais fácil pôr as mãos nos bolsos e assobiar para o lado. Na verdade, até recomendo que sigam de mãos nos bolsos, já que, se não o fizerem, é expectável que alguém tire de lá a pastilha elástica que tem sobrado depois de pagas as contas e acumuladas as dívidas.

 

Aproveito este momento para abordar também uma questão pertinente sobre a queda a pique e os danos provocados ao país, lembrando que antes que sejam curadas as feridas será necessário aguardar, já que as urgências apenas podem ser acedidas após contacto telefónico com o SNS24. Mediante triagem e depois de alguns dias, meses, anos, a desfalecer, talvez o país tenha finalmente consulta de especialidade para iniciar um tratamento que, com sorte, não irá funcionar por erro de diagnóstico. Claro que podemos sempre desejar que o próximo primeiro-ministro tenha menos avenças de casinos e mais avenças de serviços privados de saúde... e que isso, de algum modo, sirva o enfermo país no leito de morte da sua dignidade...

 

 Proponho a presente Moção de Loucura com a intenção de reafirmar a importância do voto e pedir aos portugueses que abracem a essência louca do espírito cívico e cometam a insanidade de levar o cérebro juntamente com o cartão de cidadão, quando forem às urnas.

 

Sem mais,

A pessoa que está aqui a pensar “eu avisei”, mas que não vai dizer isso para não ferir susceptibilidades.


Marina Ferraz




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terça-feira, 4 de março de 2025

Cordão umbilical

Imagem retirada da web | Pixabay


Hoje estou vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar...

 

A voz da minha mãe interrompeu o sinal de chamada poucos segundos depois de ter clicado no ícone verde do ecrã. Foi casualmente que me cumprimentou. Casualmente, porque a rotina é essa. Porque falamos todos os dias. Porque o cordão umbilical foi mal cortado, e nenhuma das duas quis confessá-lo ao médico. Deixámos que ficasse assim. Ligando-nos, invisivelmente, de uma forma tão profunda que, ainda que tentássemos explicar, não seria entendida. Mas também não queremos explicar... Na nossa fala de meias palavras entendemo-nos plenamente. Um trejeito é uma resposta de três páginas. E a conversa avança depressa, por isso, para coisas menos importantes, já que o importante fica dito no que nem é dito.

 

“Então o Carnaval?”, pergunta-me.

“Um dia igual aos outros...”, respondo. Ouço-a sorrir e não espanto que não se espante.

“Eu também não ligo, mas há pessoas que ligam mesmo muito.” – Breve silêncio. – “Acabo de ouvir numa reportagem pessoas que dizem que é o único dia em que se podem sentir elas próprias...”

 

Sou acometida por um profundo sentimento de tristeza. Há pessoas que dizem que o Carnaval é o único dia em que podem ser quem são, quem sentem que são. Engulo em seco. Sem saber se quero apontar dedos ao mundo que subjuga as pessoas ou às pessoas que se deixam subjugar pelo mundo.

 

“É muito triste...”, digo. Ela concorda.

“É mesmo”.

 

Despedimo-nos. Iguais a nós mesmas. Ela, mulher que já largou a menina que se deixava vergar, mas nunca a convenção aprendida. Eu, mulher que apimentou a menina que já não se deixava vergar, e que se está a cagar para a convenção. Mas, no fim da chamada, eu que raramente me costumo mascarar pelo Carnaval, estava vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar para o ser...

 


Tenho a sorte. A honra. (A ousadia?) Essa. De ser eu. De ser quem sinto que sou. Tanto, que não tenho a certeza se o meu eu amanhã será o eu de hoje. Habituei-me a não me negar. Faço sentido para poucos. Sou a miúda dos textos, que às vezes não escreve. A mulher que anda de fato de treino ou de saltos altos. A fadinha. O monstro. A pessoa que treina todos os dias. A sedentária. A pessoa que come saudável. A pessoa que enfarda fritos. Sou, a cada momento, precisamente o que me apetece. (E o médico já me avisou que, provavelmente, vou morrer disso. Altura em que fui a pessoa que o informou que é bom saber, porque toda a gente sabe que morre e poucos sabem de quê...)

 

Por entre o meu eu a ser eu acho que me desabituei da ideia do ajuste. E, de algum modo, foi como se a constatação do óbvio fosse uma novidade muito amarga, que trinquei a seco. As pessoas não sentem que podem ser quem são.

 

É Carnaval. Vestida de tristeza, mergulho em mim para escrever este texto. Nele, crio agora um universo de utopia, onde as pessoas pudessem, todos os dias, ser homem, ou mulher, ou cowboy, ou coelhinha da playboy, ou figura de ação. Principalmente figura de ação, agindo contra o socialmente correto e o politicamente aceitável que lhes rouba a vida.

 

“As pessoas têm medo.” Dizem-me.

 

Eu também tenho. Não do mesmo, obviamente... porque tenho muito medo de só poder ser eu mesma um dia por ano...

 

Sei que não há nada que diga que faça alguém entender.

 

Exceto à minha mãe. A quem não preciso de dizer nada. Porque entende...

 

Calha bem não ter de dizer nada... porque hoje é Carnaval. Estou vestida de tristeza.


Marina Ferraz




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