terça-feira, 23 de setembro de 2025

Paracetamol: uma solução

 

Imagem retirada do Pixabay

Diretamente da América para os meus ouvidos. A solução. A resposta. O milagre. Queridos colegas, amigos, conhecidos e desconhecidos neurodivergentes... não procurem mais! Estamos salvos. Curados. No futuro seremos tão neurotípicos que, se o eu de hoje olhasse para o eu de amanhã, o acharia profundamente chato e ridiculamente padronizado.

 

É só... aguardem: deixar de tomar ben-u-ron!

 

Elementar, meu caro Watson. Se aumenta a venda de paracetamol e aumenta o número de crianças diagnosticadas com autismo... o paracetamol causa o autismo. Estudos para quê?

 

Escutemos com assombro e resignação, admirando as maravilhas do endeusado conhecimento-novo da ciência da falácia. Celebremos. É a maravilha do pensamento lógico: No inverno vendem-se mais mantas. No inverno chove mais. Logo a venda de mantas provoca tempestades!

 

No envolvente abraço de uma exaustão difícil de explicar – estive com pessoas – enquanto repito, ao jantar, todos os outros jantares da semana – e estranho qualquer textura que não seja concordante com a habitual – e vou sentindo – com todos os excessos – o bom e o mau do dia, repetindo todos os diálogos que tive no último mês para ter a certeza de que percebi bem tudo o que se está a passar na confusão atípica da minha vida, apercebo-me de que não é apenas um oceano de água que me separa desta notícia, mas um oceano de lucidez.

 

Lembro as palavras de Beauvoir: Ninguém nasce mulher, torna-se mulher. E eu, que mulher me tornei, autista já era... e, mesmo assim, só soube que era autista depois de me saber mulher. Tenho vivido na luta para aprender a viver com sê-lo. Autista e mulher. Num mundo que é preconceituoso e agreste para ambas as categorias e as obriga a viver atrás de uma máscara socialmente conveniente para não incomodar os outros.

 

E, afinal, era só evitar o ben-u-ron. Era só a minha mãe ter evitado o ben-u-ron. Era só...

 

Aprendi a neurotípica ironia. E uso-a com a minha máscara de fora. E com os meus dedos solitários, que embatem no teclado com a força que gostariam de imprimir, de palma estendida, no rosto de alguns génios-de-esgoto. Esses, que apresentam o teofânico potencial de um solução para o autismo, livre e liberta de quaisquer estudos científicos que a comprovem.

 

Responsavelmente baseando-se em nada, o presidente americano trouxe assim a boa-nova. A solução que ninguém procurava. A resposta à pergunta que ninguém fez. O milagre da transformação de falácia em conclusão. Era mais fã do tempo em que transformavam água em vinho (mesmo que isso não seja grande milagre, se considerarmos que 85% a 90% do vinho é água). Este é um milagre da lavra da América que é grande outra vez. Grandemente imbecil. E os ofendidos podem agora dizer que um homem não é uma nação. Não é... mas quem é que o pôs lá?...

 

Seja como for, já sabemos. Futuramente, menos paracetamol se quisermos uma geração com uma organização cerebral normativa... só temos de ir perguntar à mãe do senhor-do-pódio o que é que a mãe dele tomou. Para que não seja uma geração à sua imagem. De gente sem cérebro...

 

É que o cérebro do autista é diferente... mas, pelos menos, temos um!


Marina Ferraz



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terça-feira, 16 de setembro de 2025

A ministra

Imagem gerada por IA

 

Inteligência artificial. Eis um tema no qual a minha opinião – valha-me, pelo menos, a santa consistência – nunca mudou. Parece-me uma péssima ideia, baseada no otimismo tosco de quem dormiu nas aulas de História. Acho que o risco que traz é maior do que os benefícios... ainda que os benefícios – já o sabemos de cor – possam ser todos muito válidos e relevantes.

 

Atrás das invenções e avanços, entendam, está a figura imperfeita do homem. Esse ser incorrigível que já subverteu demasiados “milagres” para os transformar em novos níveis de inferno. Lembremos que a energia nuclear visava a energia limpa e não a militarização. O mesmo dizemos dos drones, do GPS, dos fertilizantes químicos, ou da tecnologia espacial, hoje tão profícua no lançamento de mísseis balísticos intercontinentais... Isto, claro, para não falar na esperança médica na engenharia genética, na biotecnologia, na impressão 3D... tantos exemplos que enumerá-los daria, por si, um artigo vasto.

 

O ser humano tem a capacidade e o dom de perverter tudo o que podia representar progresso, de o transformar numa arma capaz de destronar até as poucas alegrias que ainda sobram. O homem atrás da máquina não é feito da esperança que a criou. O homem é, por vezes, naturalmente inteligente, a ponto de esconder o quão artificial é nos seus intentos.

 

Tenho observado os efeitos dantescos da normalização do uso da inteligência artificial. Talvez um pouco mais por senti-los na pele. De um momento para o outro – que devagarinho não foi! – reduziu o fluxo de trabalho e o quanto os clientes se dispõem a pagar por ele. Acusações do uso indevido das novas tecnologias surgem do nada. Desconfiança de responsáveis e clientes aumenta. Fala-se de que a inteligência artificial é, agora, artista. Escreve, compõe, pinta... Escapa a quem o diz que a arte é processo e não produto. Quanto se perderá – pergunto – se a arte perder a alma? Se o artista deixar de existir para colocar nela o pó dourado das suas lágrimas e dos seus esforços e do seu olhar sobre o mundo?

 

A minha opinião nunca mudou. Acho que, num mundo cada vez menos humano, caminhamos – irreversivelmente – para a nossa própria destruição. A minha opinião nunca mudou. Mas, há cerca de uma semana, tremeu... Tremeu por isto: A Albânia nomeou recentemente Diella, uma ministra gerada por inteligência artificial. Esta falsa ministra – não confundir com as ministras falsas – faz parte do novo executivo nacional albanês e pretende-se, com a sua integração, garantir que os contratos públicos estão livres de corrupção. Ora. Primeira reação. Pensei que era fake news, essa outra praga do nosso quotidiano, através da qual, de repente, imaginamos o Presidente da República a provar um cheeseburger numa visita oficial ao estrangeiro ou temos imigrantes a receber subsídios milionários... Depois, encontrando a mesma informação em incontáveis sites noticiosos de alegado prestígio e seriedade – foco no alegado – resignei-me com a veracidade da notícia. E sorri...

 

Depois de sei lá quantas notícias de estudantes que usaram esta tecnologia para não aprender nada. Depois de sei lá quantos artistas a queixarem-se de como se sentem roubados na sua arte. Depois de sei lá quantos dias a desesperar porque o trabalho não chega e nos estamos a descobrir substituíveis... Finalmente uma área de integração da inteligência artificial que pode oferecer alguma utilidade efetiva ao mundo. Na política, qualquer forma de inteligência é bem-vinda. Na política, julgo... pior do que está, não fica.


Marina Ferraz




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terça-feira, 9 de setembro de 2025

Apostasia


Imagem do Pixabay


Há 36 anos alguém me regou. A água que me regava dizia-me para crescer em Deus. Nesse dia, sem que dissesse palavra, afirmaram com convicção que eu seria sua filha, que estaria nas suas mãos. Mais tarde descobriria que Deus me fez. Que Deus tudo podia. Que Deus está em toda a parte e tudo sabe.

 

As afirmações sem espaço de discussão calaram – quantas vezes à pressa – as perguntas que eu tinha. Que mãos moldaram e cozeram o meu barro? E, se foram as de Deus, porque era eu um ser imperfeito e diferente, andando pelos corredores da vida com medo da próxima agressão? Se Deus tudo sabe, para quê as confissões? Se Deus está em toda a parte e tudo pode... porque não trava o sofrimento, a guerra, a fome...?

 

A Igreja – e nunca Deus – estendeu mil vezes as mãos pedintes aos pobres, exibindo o ouro das suas ostentações enquanto sorvia o seu pouco. A Igreja – e nunca Deus – ofereceu-me a sentença, dizendo que, faça o que fizer, sou pecadora... Talvez, olhando agora, tenham sido mais honestos do que aqueles que me maltratavam sem que eu soubesse porquê. Engoli a primeira hóstia depois de engolir muitas homilias. Mas não foi nas palavras de párocos e beatos que encontrei fé... encontrei-a nas ruas, nas florestas, nos livros. No mar, que falava comigo. Na voz da minha avó – reflexo de bondade – mas ainda assim condenada, como eu, ao rótulo pecador.

 

Com passinhos pequeninos, fui apresentando as perguntas. Com rugidos gigantes, foram tentando calar-me. E a alma, que sabia onde tinha a sua fé, foi-me levando aos bocadinhos até aos santuários feitos de pinheiros vivos, de rios, de correntes, de brisa, de sol e lua. Pagã nos olhos de Deus e dos Deuses, deixei assim a pecadora que fui na infância e rumei a destinos sem pecado.


Numa tarde de verão – deste verão, que agora dá um último respiro – sentei-me durante uma hora na paróquia onde, faz hoje precisamente 36 anos, me regaram. Entreguei a carta que me divorcia da decisão dos outros. Agradeci os ensinamentos bonitos – também os houve – que ficaram entre os rótulos e as penitências. Falei sobre a diferença entre a religião e a fé de forma clara e indiscutível. Falei dos crimes cometidos pelos homens em nome de Deus e do desacordo face à expiação. Das passagens bíblicas que condenam o incondenável. Dos perigos de se dar a outra face... mais agora, num mundo que não cansa de atacar. Nem por uma vez tentaram desafiar a minha decisão. Entrei pecadora sem crer no pecado e católica sem crer em Deus. Saí pagã, como já era, crendo na Natureza. Saí apóstata e infiel nos olhos de alguém.

 

Atravessando a igreja, à saída – a mesma em que entrei para que me regassem – vi Cristo, seminu e crucificado, como sempre. Desejei-lhe uma Natureza viva, lá por onde andar, agradeci novamente, porque a sua filosofia de bondade tem valor. Depois, disse baixinho: Perdoai-lhes, que sabem exatamente o que fazem.

 

Lá fora, o sol brilhava. O dia estava quente. Tinham-me regado. E eu cresci. As minhas raízes estão firmes no solo. Sou filha de Mãe e Pai, de Avó e Avô, do Sol e da Lua, da Água e do Fogo, da Terra e do Ar. Há um mundo inteiro à espera de ser melhor. E eu tenho fé...

Marina Ferraz



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terça-feira, 2 de setembro de 2025

Mau tempo

 


Hoje está mau tempo. Foi assim que ela começou a conversa. É assim que se começam as conversas quando não há assunto. É assim que se faz um alinhavo no silêncio, com um fio muito lasso de préstimo, para que não pareça que o espaço entre nós e o outro é um rasgão. E eu, que podia ter cordialmente seguido os ensinamentos arcaicos do politicamente correto. Eu, que podia ter olhado pela janela para me resignar com as nuvens densas que povoavam o céu. Eu, que podia ter-me limitado a dizer algo breve e concordante – de facto, está – ou até acrescentado algo que permitisse o decurso da conversa – penso que acabou o Verão... – olhei-a, em vez disso, com os olhos muito cansados, sem me importar com a meteorologia. E disse: já não é de agora.

 

Está tempo de guerra. Está tempo de preconceito. Está tempo de se temer a rua. Está tempo de se temer o futuro. Está tempo de se temer. Metade do nevoeiro é smog. A escuridão do céu tem fumos e desesperos. A chuva é lágrima. Cai e não rega senão as desilusões. Apontam as temperaturas no mapa do país, para que possamos prever os desabamentos de terra e as outras desgraças que virão de arrasto no rescaldo do incêndio que o dinheiro ateou. Está tempo de dar mais a quem tem demais. Está tempo de tirar a quem não tem para que esses tenham. Está tempo de olhar o abismo com desejo. Está tempo de saltar sem dúvidas. Está tempo de embater no solo para constatar que doía mais antes do salto. Está tempo de quebrarmos os ossos e de dilacerarmos a carne, antes que alguém o faça por nós. Está tempo de se roerem as gentes até ao tutano da sua sanidade. Está tempo de condenar a arte que pinta com sangue as verdades do tempo. Não me importa muito se é o tempo da toalha estendida na areia ou o tempo da gabardine. Está mau tempo. E já não me lembro da última vez em que o tempo estava bom.

 

Claramente, a senhora que não gostava de nuvens também não gostou da resposta. Talvez por descobrir que trago uma nuvem sobre a cabeça, de onde chovem ocasionais verdades. Talvez porque tenha conseguido escudar-se da ruindade dos tempos até hoje.

 

Uma nuvem afasta-se para que um raio de sol rasgue o manto cinzento e alumie a rua. Talvez o tempo melhore. Ouço-a dizer a alguém. Ainda bem que não mo disse a mim. Honestamente -  teria eu respondido – duvido!


Marina Ferraz



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