terça-feira, 9 de setembro de 2025

Apostasia


Imagem do Pixabay


Há 36 anos alguém me regou. A água que me regava dizia-me para crescer em Deus. Nesse dia, sem que dissesse palavra, afirmaram com convicção que eu seria sua filha, que estaria nas suas mãos. Mais tarde descobriria que Deus me fez. Que Deus tudo podia. Que Deus está em toda a parte e tudo sabe.

 

As afirmações sem espaço de discussão calaram – quantas vezes à pressa – as perguntas que eu tinha. Que mãos moldaram e cozeram o meu barro? E, se foram as de Deus, porque era eu um ser imperfeito e diferente, andando pelos corredores da vida com medo da próxima agressão? Se Deus tudo sabe, para quê as confissões? Se Deus está em toda a parte e tudo pode... porque não trava o sofrimento, a guerra, a fome...?

 

A Igreja – e nunca Deus – estendeu mil vezes as mãos pedintes aos pobres, exibindo o ouro das suas ostentações enquanto sorvia o seu pouco. A Igreja – e nunca Deus – ofereceu-me a sentença, dizendo que, faça o que fizer, sou pecadora... Talvez, olhando agora, tenham sido mais honestos do que aqueles que me maltratavam sem que eu soubesse porquê. Engoli a primeira hóstia depois de engolir muitas homilias. Mas não foi nas palavras de párocos e beatos que encontrei fé... encontrei-a nas ruas, nas florestas, nos livros. No mar, que falava comigo. Na voz da minha avó – reflexo de bondade – mas ainda assim condenada, como eu, ao rótulo pecador.

 

Com passinhos pequeninos, fui apresentando as perguntas. Com rugidos gigantes, foram tentando calar-me. E a alma, que sabia onde tinha a sua fé, foi-me levando aos bocadinhos até aos santuários feitos de pinheiros vivos, de rios, de correntes, de brisa, de sol e lua. Pagã nos olhos de Deus e dos Deuses, deixei assim a pecadora que fui na infância e rumei a destinos sem pecado.


Numa tarde de verão – deste verão, que agora dá um último respiro – sentei-me durante uma hora na paróquia onde, faz hoje precisamente 36 anos, me regaram. Entreguei a carta que me divorcia da decisão dos outros. Agradeci os ensinamentos bonitos – também os houve – que ficaram entre os rótulos e as penitências. Falei sobre a diferença entre a religião e a fé de forma clara e indiscutível. Falei dos crimes cometidos pelos homens em nome de Deus e do desacordo face à expiação. Das passagens bíblicas que condenam o incondenável. Dos perigos de se dar a outra face... mais agora, num mundo que não cansa de atacar. Nem por uma vez tentaram desafiar a minha decisão. Entrei pecadora sem crer no pecado e católica sem crer em Deus. Saí pagã, como já era, crendo na Natureza. Saí apóstata e infiel nos olhos de alguém.

 

Atravessando a igreja, à saída – a mesma em que entrei para que me regassem – vi Cristo, seminu e crucificado, como sempre. Desejei-lhe uma Natureza viva, lá por onde andar, agradeci novamente, porque a sua filosofia de bondade tem valor. Depois, disse baixinho: Perdoai-lhes, que sabem exatamente o que fazem.

 

Lá fora, o sol brilhava. O dia estava quente. Tinham-me regado. E eu cresci. As minhas raízes estão firmes no solo. Sou filha de Mãe e Pai, de Avó e Avô, do Sol e da Lua, da Água e do Fogo, da Terra e do Ar. Há um mundo inteiro à espera de ser melhor. E eu tenho fé...

Marina Ferraz



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