terça-feira, 24 de junho de 2025

Livros usados

Imagem gerada por I.A.

Gosto de ler livros usados. Principalmente livros usados que já foram lidos. Que trazem alguns traços de manuseamento. Páginas amarelecidas do tempo. Lombadas com pequenos riscos verticais, acusando abertura e que nos permitem saber que a espinha vertebral da obra, ali colando ou cosendo o miolo, sofre já os males da idade. Como entendo esses livros! Já lá vai o tempo em que a minha não tinha dano...

 

Um livro usado é um livro que já fez companhia a alguém. Que já se deu a alguém. Que, possivelmente, já dormiu na cama de alguém. Que, provavelmente, andou de mãos dadas com o absurdo da paragem, permitindo que o cansaço mergulhasse na história, na aventura da página seguinte.

 

Um livro usado já transformou pessoas apáticas em super pessoas. Já lhes deu alento. Já lhes segurou a solidão, agitando-a até que fosse apenas solitude. E já beijou na boca o tempo, já se estendeu pela imortalidade da mente humana e enraizou ideias, como quem rega a planta do canteiro.

 

Alguns livros usados não foram usados. Chegam-me às mãos, ansiosos e desconfiados dos meus intentos. Como se tivessem medo de que a capa lhes seja aberta pela primeira vez. Será que dói? Perguntam-me isto. Tento ser gentil com os livros usados que ninguém quis ler. Prometo-lhes que não os vou magoar, à medida que folheio uma página e outra. Carícia suave e terna, que eles acabam por amar, silenciando as perguntas e rendendo-se, enquanto descobrem que as mãos são mais suaves do que as prateleiras, e aprendem a respirar com os pulmões todos, sem a compressão dos irmãos-livro renegados que os apertavam.

 

Alguns livros antigos são arrancados das mãos de donos negligentes. Muitas vezes nem foram lidos, mas apenas maltratados. Estes são os mais difíceis de domar. São livros que não sabem aceitar um carinho, porque nunca viram carinho. Que têm medo de entrar na carteira, porque foram fechados e arrastados em mochilas, batendo contra todo o tipo de material, sem cuidado. Trazem capas e folhas amassadas. Encolhem-se, quando tentamos pegar neles. São desconfiados, difíceis de conquistar. Demoram a aquietar-se. As páginas vêm muitas vezes sublinhadas e riscadas, pendurando aqui e ali um homem-traço enforcado. Às vezes, quando perdem a vergonha, contam-me que foram à escola, mas não ensinaram nada a ninguém. Dizem isto com mágoa. Não era o que esperavam quando os tiraram da prateleira, na livraria. Tiveram os sonhos vilipendiados. Apetece-me beijar estes livros. A pouco e pouco, vendo-me o cuidado, eles aquietam-se. Quando o fazem, tornam-se os livros mais fiéis e dóceis. São livros que se lembram, depois de esquecer, o tamanho do verbo amar.

 

Quando arrumo estes livros nas prateleiras, depois de lidos, eles esperam que eu saia e falam uns com os outros. Contam que fiz chamadas apenas para ler frases soltas a outras pessoas. Que, sozinha, fiz comentários em voz alta, enquanto os lia. Que lhes disse “boa noite” sempre que me deitei depois de ler algumas páginas ou capítulos. Que, por vezes, me veem a levantar a custo porque me deitei três capítulos mais tarde do que o previsto. Ouço-os a rir, nas prateleiras. Soam todos gentis e felizes. Calam-se quando eu entro, evidentemente... só me falam para me contar as histórias que trazem dentro. Mas o que dizem uns aos outros, é muito mais...

 

Na caixa ao lado da prateleira, estão os livros que ainda não li. Ouvem estas conversas e aguardam pela sua vez. E, lançando as mãos ao próximo, eu amenizo-lhes a ansiedade. Calma, já aí vou! Irei. Enquanto puder.

 

Um dia, a capa da minha própria vida será definitivamente fechada. Encerrará o seu último capítulo. Espero que alguém cuide dos meus livros. Que alguém diga: foi a sua única pena, morrer antes de os ler a todos. Que alguém seja bondoso ao manuseá-los. Que alguém saiba que eles foram – são – o motivo pelo qual nunca fui e não sou só.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de junho de 2025

Receita do dia: Pedigree à Portuguesa

Imagem gerada por I.A.


Hoje apresentamos uma receita de dificuldade média, ideal para servir em dias frios, amenos ou quentes, e que serve cerca de 9,03 milhões de pessoas. Daria para os 10,2 milhões, não me entendam mal! Mas sabemos que aproximadamente 1,17 milhões são intolerantes e não engolirão o preparado, nem acompanhado de um bom vinho. O tempo de preparação varia, mas a receita tem sido aprimorada desde há mais de 5 mil anos. Os ingredientes? São variados! Ideais para uma dieta rica e completa.

 

Se quiserem preparar uma comida bem portuguesa, limitem-se a utilizar produto adquirido em território português. Vão precisar de Iberos, Celtas, Celtiberos, Lusitanos, Galaicos, Túrdulos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Suevos, Visigodos, Árabes, Berberes... opcionalmente podem também adicionar Espanhóis, apesar de eu continuar a insistir que isso é juntar um bocadinho da própria massa que estamos a criar (como quem faz caril com pó caril de compra... em vez de fazer efetivamente caril). Se não fizerem questão de ter um prato 100% luso, podem também acrescentar alguns produtos importados de países como o Brasil, a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Macau ou Timor. Juntem tudo ao molho no liquidificador e voilá: um português com pedigree!

 

Era isto que queríamos: a mistura mais ousada de todos os tempos, feita do cruzamento meio louco entre gente e gente, e criando massa de humano. Com osso e carne, com sangue. Crenças dissolvidas e integradas, costumes que vêm do tempo em que o sol era Deus e outros que se criaram com a queda da chuva, com a queda das rosas, com o orgulhoso arco-íris que nasce e se põe nas ruas, com baldes e baldes de brilho dourado, purpurina e esperança.

 

O sabor desta receita é doce, porque a mistura se fez aos poucos. A massa foi descansando. Os travos mais inusuais e os mais típicos foram encontrando um equilíbrio. E a gente se fez gente, como a gente sempre se faz: um por cima e um por baixo, num encaixe perfeito, no momento em que só importa o agora.

 

O pedigree português é ser vira lata. E, por isso, se aclamava a cultura aberta, os braços abertos, a mesa da casa portuguesa onde fica bem pão, vinho e hospitalidade. O abanar da cauda aos outros, o dar uma história, uma família e uma merendazinha para o caminho de quem vem por bem.

 

Mas há quem não se alimente destes conceitos. Porque algumas pessoas foram criteriosas na abertura dos livros de História, fazendo esta receita apenas com uma porção de terra – possivelmente de Guimarães – uma laranjinha do Algarve, dois robalos da costa nacional e umas gotinhas de Atlântico. Quem cozinha com este leque limitado acha que o português, como o Mondego, nasce e desagua dentro da limitada linha da fronteira. E, no medo da falta, quer a fronteira fechada, para que não nos falte a matéria para cozinhar futuros amargos. Criam o seu prato simplista e feito de ignorância. Espalham a notícia de que fazem a receita original. O verdadeiro português com pedigree. O português de bem. Aquele que é de raça pura! O segredo da receita é Deus, Pátria e Família. Na cozinha, a velha senhora vai mexendo o tacho. Rega-se tudo isto com o sangue de inocentes. Vão os alienados comer, com ou sem reserva, ao Tacho do Facho. Comida semipronta e que evita os alérgenos que incomodam aqueles sensíveis 1,17 milhões de intolerantes.

 

Proponho uma entrada de bondade, antes de se servir o português com pedigree, aquele que é de mistura e faz tradição da diversidade. Proponho que se sirva uma sobremesa bem doce a seguir, que se prepare com especiarias internacionais e tenha sabores de cana e de café e de canela. Sirvamos isto tudo numa mesa ornamentada de cravos vermelhos e rebeldia. E para beber, uma sugestão, antes que alguém me considere traidora à pátria: um tinto encorpado da Adega Belém!


 Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de junho de 2025

Pescoço

 

Imagem gerada por I.A.


O problema é o pescoço. Que o digam as pessoas com dívidas até ao pescoço, que vivem de corda ao pescoço, sofrendo o mal de uma economia que constantemente lhes põe os pés ao pescoço. Penduram ao pescoço o letreiro que diz "Persona non Grata". Se não produz, não serve. Adeus. As pessoas culpam-se umas às outras. Atiram-se ao pescoço uma das outras. A culpa mais culpada é do pobre mais pobre do que o pobre que se queixa. Vêm as forças policiais com meios insuficientes, e os jornalistas com o estúdio inteiro atrás. Pagam-se uns trocos pela narrativa que interessa. Corta-se o mal pelo pescoço. Que é como quem diz raiz. Mas a fala popular tem destas coisas, porque não saber pescoço é apanágio da educação moderna. Nas notícias, descobrimos que o Portugal futebolista volta para casa de taça na mão e medalha ao pescoço. Mais nenhum pescoço interessa. E seguimos, de pescoço sobre os ombros.


Inquilina das águas furtadas do pescoço, a garganta às vezes seca de calar. Causa desconforto. Não é um torcicolo, nem laringite. Não é refluxo, descansemos! É uma secura extrema, promovida pela enchente de palavras que inundou o peito, e condicionada pela dificuldade de organização coerente, que permitiria vociferar insulto digno de verbalização ou informação com real tempo de antena. Ocasionalmente, lá está: um pescoço que se ergue. Uma mensagem que importa. Um Presidente da República que lança mãos a pescoços alheios, em vãs tentativas de lhes manter seca a garganta. O silêncio é de ouro, dizia-lhe a mãezinha, essa outra senhora. Outra porque não é a minha. Outra porque é outra. E entenda cada um como quiser. Se puder. Fica a dever-se um pedido de desculpas e uma condecoração. Que mais uma, menos uma, também já não faz muita diferença... e há que ornamentar os pescoços agredidos, para que contribuam para movimentos mais anuentes de cabeça.

 

Abanamos a cabeça. Assistindo a isto. Precisamos do pescoço para o fazer. Damos graças pela brevidade da mudança no mais elevado quadro político. E depois recordamos. Há quem, de candidato, traga ainda o arrasto das palavras ditas sobre a tentação política. Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar. O problema, aqui, não é o pescoço, mas a falta de patriotismo, que Portugal sempre foi conhecido pela sua hospitalidade e pronta anuência... e, por despeito à pátria e seus bons costumes, parece que ninguém fez ainda a gentileza de ceder a corda ao homem!

 

Nas ruas, gente de pescoço caído faz da calçada portuguesa, mal cuidada em chão que o turista rico não pisa, o horizonte. Escavam o chão com os olhos. A sepultura já não parece mau destino. Ninguém faz nada. Enterram cabeça e pescoço na terra, como avestruzes. A garganta seca-me enquanto tenta pescar estruturas frásicas lógicas no meio do milhar de milhão de palavras que queria cuspir. Obrigo-me a endireitar o pescoço e a ver tanta opressão, tanta miséria, tanta aceitação.

 

É o filme mais triste de todos. O deste país, no qual o problema é o pescoço. E a falta da coluna vertebral. E da cabeça que perdeu...


 Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de junho de 2025

A cozinha da casa-corpo

 

Imagem gerada por I.A.

O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Apercebo-me disto enquanto faço mais um auto-de-fé à casa, libertando-me de quase tudo o que é mundano. Desapego-me de bibelôs, essa espécie de apêndice. Atiro roupas para dentro de sacos, libertando espaço pulmonar para novas respirações. Desapego-me até de livros. Livros! Para que as sinapses aconteçam de forma mais leve e livre. Deles, percebo, basta-me o conhecimento que ficou.

 

Vou libertando as divisões de quase tudo. Dividindo o que é de quem. Oferecendo as coleções que tanto amei aos meus sobrinhos. Dando a mão ao tempo do desapego, dizendo: não levo nada para o caixão.

 

E a cozinha ali fica. Com todos os seus tachos e todos os seus pratos. Como se eu precisasse de todos. E sei que não. Sei que só tenho duas mãos e uma boca. Detergente da louça e esponja. Até o luxo de uma máquina de lavar. Mas fica difícil arrumar as coisas. Há uma sensação agarrada às coisas, quase tão entranhada como a gordura que fica depois de fritar rissóis... a sensação de que preciso de ter tudo aquilo à mão. De que preciso de ter tudo aquilo ao pé.

 

Não me entendam mal! Quase tudo o que mora nos armários da minha cozinha é desnecessário. São amores antigos. E crónicas de uma vida que já foi. Chávenas rachadas que contam a história bonita de um tempo que já está reciclado. Talheres que foram roubados de restaurantes. Formas de bolo que não podem ser usadas... mas que fizeram aquele bolo, naquele dia... aquele, que ficou partido num canto, justamente porque a forma já estava a precisar de reforma!

 

A casa leva uma razia e a cozinha ali fica, impávida e serena, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que as outras divisões. O corpo leva uma razia e o coração ali fica, impávido e sereno, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que os outros órgãos.

 

Sim! O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Talvez venha a esvaziar a cozinha antes de esvaziar o coração. E talvez, um dia, cansada, decida limpar igualmente esse espaço confinado do meu peito. Mas eu sei... quando o fizer, ainda que desapareçam talheres e pratos e chávenas rachadas, formas de bolo e esperança... ficará nele um nome... entranhado em todas as frestas e recantos, como a gordura persistente depois de se fritar rissóis.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 27 de maio de 2025

Desculpa, Saramago...

 

Imagem gerada por I.A.


Há alguns dias, cruzei-me com esta frase de José Saramago: “A harmonia é compatível com a indignação e a luta; a felicidade não, a felicidade é egoísta”. Algo estranho aconteceu. Discordei.

 

Não é comum, entendam, que eu discorde do “nosso” Prémio Nobel da Literatura – como é engraçado que algo se torne “nosso” apenas e só porque nos traz o sucesso que, enquanto povo, não temos. Como se nos arrastasse da pequenez e nos aproximasse dos feitos de outrora, lembrados em hipérbole heroica, como se a crueldade não fosse a única imensidão da história. Sempre achei que Saramago tinha uma aura de iluminação, daquelas que cabem aos vanguardistas e aos visionários. Sempre achei que a veia (assumidamente comunista e de esquerda) continha uma sabedoria rara. Sempre achei que as críticas que tantas vezes ouvimos são constructo de pessoas que nunca se deram ao real trabalho de abrir uma das obras para a ler. Prova disso, se me perguntarem, é o facto de continuarem a dizer que Saramago escreve sem pontuação... e ainda espero encontrar esse livro sem pontos e vírgulas, que tanto criticam... o que tenho encontrado são livros com pontuação não convencional, que seguem o ritmo e a lógica do pensamento... e talvez por isso causem estranheza e incómodo a quem não pensa.

 

Tendendo a concordar com Saramago e, ainda que seja capaz de acompanhar a ideia e de entender por que o diz, esta frase deixou-me desconfortável. Deixou-me desconfortável, talvez, porque a minha noção de felicidade não existe desligada do outro, mas ancorada nele. Não é egoísta, está longe de ser incompatível com a luta, com a indignação, com Abril.

 

Nascida na Jangada de Pedra que anda por aí à deriva, sinto-me já afastada até dos espanhóis, que pertencem à Península, mas não à náusea cívica que veio substituir as noções de cidadania. As circunstâncias remetem-me para outras narrativas, mais dantescas e miseráveis. Lá fora, o ódio cospe-se em horário nobre e gente dorme na rua. A caixinha mágica mostra-nos gente que morre. Crianças que morrem. Bebés que morrem. Fome. Miséria. Guerra. Genocídio. A indignação e a luta dissipam-se na inexistência. Assim como a harmonia e a felicidade. Mas recuso-me a pensar que a felicidade é egoísta.

 

Recordo a frase da série After Life, de Ricky Gervais. Esse pedaço – talvez mainstream – de existencialismo episódico traz consigo pérolas de sabedoria. È Anne, uma viúva que encontramos num banco de cemitério, que nos leva à vida, dizendo “A felicidade é incrível, tão incrível que não importa se é nossa ou não. É algo maravilhoso. Uma sociedade cresce bem quando um homem velho planta uma árvore à sombra da qual sabe que nunca se sentará. Boas pessoas fazem coisas para outras pessoas. É apenas isso. Fim.”.

 

Gosto desta perspetiva de felicidade. Esta que não é egoísta, nem incompatível com a luta. Esta que pode exigir que se pense no outro. Que se lute. É assim que quero ser feliz... e sabem os deuses que não espero o sobejar de harmonia nesse caminho.

 

Talvez seja isso. Talvez importasse pensar a felicidade como um produto simbiótico. Algo que só posso ter, dando-me. Algo que só posso querer para mim, se quiser para todos os outros. Faz falta que se alimente a felicidade. Pela manhã, como quem põe ração ao gato. Pelo dia, como quem concede esmola ao sem abrigo. Pela noite, como quem beija os filhos na testa e lhes ajeita as mantas, depois de uma história de encantar.

 

Saramago também disse "Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo." Com isto, eu concordo. Mas recuso-me a acreditar que tenha de ser assim.

 

Peço que me perdoem. Tanto de bom já foi dito, antes que eu aprendesse a juntar as letras para formar palavras, que hoje sinto mais falta das palavras dos outros. Salto da literatura para o palco. Despeço-me nas palavras de Raul Solnado: “Façam o favor de serem felizes”.

 

Mas acrescento, do meu coração.

Para os outros, pelos outros... e lutando para que todos encontremos uma felicidade igual.”

 

Todos. Mesmo aquela pessoa de quem não gostam. Mesmo os palestinianos e os israelitas. Mesmo quem foi votar e deixou o cérebro em casa. Se toda a gente for feliz, para quê a guerra? Se toda a gente for feliz, para quê a maldade? Se toda a gente for feliz, o mundo será melhor. Desculpa, Saramago... Não há pensamento menos egoísta!


 Marina Ferraz




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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Egoísmo

 

Imagem gerada por I.A.

Já me disseram muitas vezes que sou egoísta. Recordo particularmente o dia em que mo disseram porque afirmei não querer ter filhos – posição que mantenho, apesar de tantas vezes me terem dito “isso muda com a idade”. Nesse dia – que era um dia de sol – havia crianças a chapinhar na piscina e o semblante seco e altivo de quem me dizia que era egoísta. Descobri, pela voz de outrem, que eu não queria filhos porque isso implicaria ter de olhar para além do meu umbigo... e dar-me a outros... e ser por outros... pelos outros...

 

Este é o contexto. Mas o contexto tem pouca pertinência para o que te quero dizer. É que hoje... hoje, é para ti que escrevo. Para ti, filho nunca gerado e que, por isso, não nasceste, tal como longamente previsto. Escrevo-te para te pedir que não ouças as palavras cruéis que me disseram naquele dia de verão, porque não são verdade... embora talvez eu seja egoísta em muitas coisas... e ande longe da retidão santificada que vai retomando o seu lugar nas narrativas do que é ser-se “uma boa mulher”. A tua inexistência, no entanto, não é fruto de egoísmo, mas de amor... e posso prová-lo!

 

 

Eis o ente que nasce da luz. Assim sagraria o teu corpo pequenino. Havia de conhecer-te os pormenores do corpo. De contar cada um dos vinte dedos. De aguardar pelos olhos abertos. Pelo sorriso primeiro. Por todos os que se seguissem. De beber-te as lágrimas, como quem sorve a tua dor. De embalar-te. De palmilhar os quilómetros da Terra na minha sala de estar, até que a agitação se transformassem em acalmia e dormisses. De proteger o teu sono. Os teus sonhos... os teus sonhos... os teus sonhos. O mundo gosta de os roubar, então teria de protegê-los assim. Como quem obsessivo-compulsivamente quer roer a desumanidade e envolver-te na manta etérea da utopia. A tua avó diria que é utopia, como diz quando eu falo do mundo que quero e de como é para ele que tento caminhar, esbarrando em barreira, após barreira, após barreira...

 

Quando nascesses, havia de te erguer à janela e dizer: Natureza, eis o meu filho. Filho, esta é a tua Mãe Maior. E ela havia de lançar sobre ti o pólen protetor, que ao tocar a pele seria armadura.

 

Quanta beleza!

 

Mas cortaram as árvores que te seriam madrinhas para abrir a autoestrada. E entraram tanques de guerra e bombas. E 48 horas bastam para que 14 mil bebés sucumbam à miséria da fome, enquanto fogo chove e a terra treme. A luz apaga-se. Toda a luz se apaga. Governos caem e homens comuns votam como se fossem deuses. Ditam as pragas egípcias ao mundo, até quando o mundo é no fim do mundo, na ponta mais ocidental de uma europa diluída, onde só à palavra Euro se diz Amén. Depois, água vira sangue, gafanhotos, rãs, piolhos e moscas infestam o espaço, o gado sucumbe, úlceras comem a gente, o céu vai cuspindo rocha, primogénitos morrem... tu morres. Ou, se não morreres, não viverás.

 

Quererás amar, e não podes. Quererás escolher, e não podes. Quererás ser, e não podes. Odiar-te-ão. Porque és mulher, porque és homossexual, porque és autista. Porque tens uma trisavó indiana. Porque tens um avô retornado. Porque tens uma mãe artista, mulher, autista... Porque trazes nas veias Abril. Porque queres ser livre. Não te quererão para que sejas soldado, mas para que sejas bala. Arma de arremesso. Assim, morres mais depressa e não ocupas espaço, não gastas recursos. A tua morte serve a economia.

 

Então, dizem-me para te ter. Porque, se estiveres vivo, podem garantir que vais morrendo. Sonho a sonho. Ideia a ideia. Liberdade a liberdade. Mente, alma, corpo... até que vires o pó branco que alinham com cartões e inalam, entre copos de gin, rindo nos seus palácios, erguidos sobre a vala comum do povo.

A tua inexistência não é fruto de egoísmo, mas de amor...

 

Em tom mais brando, perguntaram-me uma vez: “Porque não queres ter filhos? Acho-te tão maternal!”. Respondi: “Eu não tenho dúvidas de que teria criança para dar ao mundo... mas não tenho mundo para dar à criança.”

 

Hoje, acrescento: a ti, que não nasceste, deixo a herança. Um voto dobrado em quatro, que não vence a maioria, mas fala sobre o mundo que queria dar-te, se existisses. Uma lágrima nos resultados que, como a tua avó, chamam utopia a esse mundo. Um pensamento simples, sobre a falta que me fazes e como, ainda assim, não te quero aqui. E a liberdade. Deixo-te a liberdade toda. Porque a terei até ao fim. Mesmo que seja o meu fim. (E desconfio que será!)

 

Um dia, tu que não nasceste, e eu, que morrerei a lutar, havemos de nos encontrar nesse universo utópico. Egoistamente, vou agarrar-te contra o peito e contar-te, de viva voz, esta história.

 

 Num dia de sol, com crianças a chapinhar na piscina, alguém de semblante seco e altivo me disse que era egoísta, que não queria filhos porque isso implicaria ter de olhar para além do meu umbigo... e dar-me a outros... e ser por outros... pelos outros... E, então, eu, que não tive filhos, dobrei o meu voto em quatro... e fiz da humanidade a filha que não tive, tentando dar-lhe o presente mais bonito de todos. Ela recusou. Gritantemente. E eu vivi. E eu morri. Sem ti. Por ti. Para ti. Num mundo que – honestamente – não merecia nenhum de nós dois.

 Marina Ferraz




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terça-feira, 13 de maio de 2025

O livro

 

Imagem gerada por I.A.

Hoje combinei um encontro com o meu livro de História. Ele chegou triste e desalentado, sentou-se, pediu um single malte envelhecido. Neat. O bartender agarrou uma garrafa que dizia “50 anos”. Fez sinal de quem me ia servir também, mas recusei com um gesto e pedi um café. Com açúcar. Dois pacotes. Olhei o livro, sem entender a escolha de meio da tarde. Nunca o vira beber uma bebida alcoólica! Disse-me que era caro. Mas que sentia que precisava dele. Que ia pagá-lo, embora fosse caro. E que não o julgasse! Que nem me atrevesse a julgá-lo! Muitas pessoas da tua geração estão a pedir outras coisas envelhecidas há 50 anos, e que também lhes sairão caras depois.

Percebi que era mais fácil não julgar o meu livro do que essas pessoas. Deixei que ele bebesse o seu whiskey. Mas vi como ele erguia o sobrolho ao ver-me virar dois pacotes de açúcar para dentro do líquido castanho e cremoso da minha chávena. Lembrei-o de que julgar é feio. E brinquei: a tua cirrose depois pode fazer companhia à minha diabetes. Ele sorriu. Um sorriso muito apagado. E, depois, fez sinal ao rapaz para que trouxesse mais um copo.

 

A coragem líquida vertida. O agitar do âmbar no copo largo. Abriu finalmente a capa. Mostrou-me o que o perturbava.

 

Eu tinha tanto para ensinar...disse-me... e não serviu para nada! Olha, desparecem-me as letras. As folhas, meio apagadas do tempo, amareladas, vazias. Numa delas lia-se ainda, de forma muito esvaída,  As lutas feministas. Noutra, apenas a terminação da palavra erdade, onde antes existira uma frase inteira. Noutra ainda, a clássica imagem da revolução francesa virava uma mancha inconsistente e sem sentido. Fechou a capa com força, como quem dá um murro na mesa. Olhou para mim, em lágrimas. Emborcou o resto da segunda bebida. Pediu a terceira, erguendo o copo. Lá fora, começava a chover. Uma chuva fina de primavera. Fria. Parecia fria, embora o bar, vazio e cómodo, fosse um abrigo aconchegado. As pessoas liam. As pessoas liam porque as obrigavam a ler. Mas nunca aprenderam merda nenhuma!

 

O terceiro copo bateu na mesa com baque seco e eu senti-o dentro, como se o meu coração fosse a mesa. Como se a minha garganta estivesse mais seca ainda do que aquele baque do copo. Ele agarrou o copo na mão. Bebeu a sua bebida, agora em goles lentos.

 

Não pensei que, agora, tivesse de dizer o óbvio. Ou que me censurassem. Ou que planeassem enviar-me para as prateleiras que ninguém lê ou prensar-me. Riu-se. Como se fosse preciso! Como se não tivessem feito bom trabalho, desensinando as crianças, fazendo com que não se interessem pela leitura. Limpou as próprias lágrimas à toalha. Poderia estar na cabeceira desta gente, que não me pegariam nem para salvar a própria vida!

 

Levantou-se. Olhou para mim. Disse-me. Tinha saudades tuas. Depois saiu para a chuva, agora mais densa. Transformou-se em pasta de papel. Foi pisado pelos pés da multidão que corria a avenida, à procura de abrigo.

 

Ergui a mão. Pedi uma bebida para mim. O empregado perguntou-me. Tem a certeza? Já é o quarto e é forte!

 

Respondi-lhe. Não é forte o suficiente! Não quando toda a gente quer beber o que fermentou sob tirania por 48 anos. Não quando passaram 51... e querem abrir essa garrafa, para beber do amargo que não conheceram, nem recordam...

 

O bartender ignorou o meu pedido. Trouxe-me mais um café. Com dois pacotes de açúcar. Era quente. Aqueceu-me a alma. Chorei. Paguei a conta.

 

Ele perguntou se queria um táxi.

 

Sorri-lhe, em resposta, ainda por entre lágrimas:

 

Quero um foguetão que me leve deste planeta. É isso que eu quero!


Marina Ferraz




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terça-feira, 6 de maio de 2025

Debate à portuguesa

 

Imagem gerada por I.A.

Talvez a dimensão dos problemas de um país se veja pelas discussões mais comuns nas pessoas do seu povo.

Frequentemente, em narrativas de livros e filmes estrangeiros, nos cruzamos com as expressões de debate “a minha universidade é melhor do que a tua” ou “o meu trabalho é mais exigente do que o teu”, ou ainda “viajo mais do que tu”. O mesmo se faz com o exercício físico, o número de seguidores nas redes sociais ou o salário auferido: as pessoas olham as outras de cima, dizendo-lhes, com alguma malícia que perpetua os traços infanto-juvenis da troça, que fazem mais, que têm melhor...

Portugal tem muitos defeitos. Este, não é um deles.

 

Para que se consiga um debate sério, digno da World Universities Debating Championship é necessário que se fale de outros temas.

O primeiro – e talvez mais relevante e similar aos anteriormente mencionados – envolve sempre algures a palavra “Benfica”. Saltemos esse, porque não demonstra o que quero dizer. Quero falar dos outros debates. Aqueles que mostram bem a maravilha que é o nosso sistema de saúde, a qualidade da nossa habitação e o estado da nossa saúde mental.

 

Então vejamos:

Inicia-se a conversa. Como vai a vida? E logo salta uma resposta de três metros e muitos minutos sobre a doença não diagnosticada, que será avaliada por um profissional no dia de são nunca à tarde, porque as consultas no hospital estão a ser marcadas para daqui a dois anos. E pensar-se-ia que a resposta empática daria retorno. Só que não... em vez disso, saem mais duas doses de queixume do segundo interlocutor que, afinal, não tem uma, mas duas doenças de especialidades diferentes, e só vai ser visto no dia de são nunca à noite.

 

O mesmo acontece com as casas:

Então, casa nova?

É verdade.

E estás satisfeita?

Até estou, mas vou ter de trocar os vidros, porque entra água e há umas manchas esquisitas na parede, estou com medo que seja humidade interior.

Ah, provavelmente não é nada! Tu é que estás bem! Olha, eu tenho os tetos todos negros, entra água pelas janelas todas e até já os sofás estão a ficar podres. A canalização do prédio já rebentou na casa de uns três vizinhos, não tarda calha-me a mim! E a luz falta todas as semanas.

 

E continua para a saúde mental:

Já não te vejo há tanto tempo! Como estás?

Cá vou andando, um bocadinho cansada emocionalmente...

Mas então porquê?

Oh, provavelmente porque o trabalho anda mais escasso e as coisas lá em casa estão tremidas.

Ah! Isso não é nada! No último mês tive certamente menos trabalho do que tu, estou a divorciar-me e ele quer a guarda das miúdas. Faleceu o meu pai há dois meses e agora a semana passada foi o meu periquito.

 

Os debates em Portugal são o enaltecimento puro da degradação. Imagino o diabo com pipocas acabadas de fritar no fogo do inferno a assistir às nossas conversas como quem vê o Big Brother.

Falar do que vivemos e sentimos é quase sempre uma competição sobre quem está pior na vida. E culminam sempre com frases que indicam que outros, mesmo assim, estão mais aptos a ganhar a competição.

 

A minha casa é uma merda, mas ao menos tenho casa.

Custa, é verdade, mas vamos andando, que ao menos ainda estamos de pé.

Ainda estamos melhor do que Maria Constança. O filho dela teve um acidente na IC19, ouviste dizer?

 

E, de repente, não há um problema no mundo. Está tudo tranquilo. Estamos todos na maior...

 

Vamos beber uma imperial e comer uns caracolitos para a tasca, que hoje há jogo. E comprar uma raspadinha sem prémio, para nos queixarmos ao senhor Manuel que nunca ganhamos nada.

 

Discutiremos mais quando a outra equipa marcar.

Com a mesma tranquilidade com a qual nos queixamos da vida, sem ouvir o outro. Com a mesma apatia que nos leva ao queixume sem culpar nosso o sistema de saúde (paz à sua alma), a miséria da nossa habitação e a nossa inexistente saúde mental.

Isso. Discutiremos quando a outra equipa marcar.

Concordaremos aí, se formos da mesma equipa.

 

É outra coisa que nunca é boa em Portugal. Raios. Talvez o próximo orçamento de estado devesse dar algum dinheiro aos clubes para poderem fazer como antigamente... E comprar árbitros que sejam nossos amigos!

 

O senhor Manuel concorda, enquanto limpa dois copos. Votaríamos nele!


Marina Ferraz




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terça-feira, 29 de abril de 2025

Rescaldo

 


Ontem foi Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho e dia de apagão. Hoje é Dia Mundial da Dança e de rescaldo nas redes sociais. Há dias para tudo!...

 

Mas hoje... hoje é um dia especial. E é um dia especial porque ontem foi um dia especialíssimo. Se a luz ao fundo do túnel já se tinha apagado (ou pelo menos esmorecido até ao ponto em que se torna impercetível a olho humano), a decisão súbita de toda a outra luz fazer o mesmo pareceu despertar algo há muito adormecido nas pessoas. Então, hoje é um dia especial. Hoje, nas redes sociais, é dia de rescaldo, de reflexão, de explorar o apogeu da auto-sabedoria. Dia de verbalizar literariamente o fruto da sua meditação. Dia de dizer, no fundo, qual a lição dada pela emergência mestre da véspera.

 

Quero fazer diferente e vou dizer o que não aprendi. Eu não aprendi que a luz é fundamental. Eu não aprendi que a água é fundamental (sim, também fiquei sem água!). Eu não aprendi que estar dependente de terceiros é limitador. Eu não aprendi que ter um fogão a gás é melhor do que ter uma placa elétrica. Eu não aprendi que faz falta podermos contactar quem amamos. Eu não aprendi nada disto ontem. Aprendi isto mais ou menos pela altura em que me levantava às sete da manhã porque queria ver os bonecos animados e em que a minha noção de sucesso para o futuro seria tornar-me a Power Ranger Amarela.

 

Ontem, quando muito, comprovei os limites da minha própria preguiça. Tinha garrafas de água para encher, que permaneciam vazias na bancada... porque tive preguiça de as encher quando havia água nos canos. Aproveitei que não havia eletricidade e descongelei o gelo para ter água... porque tive preguiça de ir comprá-la. Fiquei por casa porque, honestamente... é um oitavo andar e, como devem imaginar, o elevador não funciona durante um apagão.

 

Ontem, pensei nos hospitais, em pessoas que pudessem estar presas em elevadores ou no metro, nas atarefadas funcionárias que provavelmente fizeram o trabalho mensal de bíceps a passar aos vinte garrafões de 5L de água de cada vez, açambarcados por imbecis que não entendem que os recursos devem ser para todos e não para seu uso pessoal, único e exclusivo. Pensei na minha família e decidi – nada novo, também aqui... é uma decisão que já tomei noutras alturas, incluindo durante a pandemia – que se isto continuasse iria ter com eles, porque detesto não saber como estão. E pensei nos povos em guerra, nos sem abrigo, nas pessoas que vivem em condições deploráveis, em países de terceiro mundo, de segundo mundo, de falso primeiro mundo. Pensei como nos achariam ridículos por nos queixarmos tanto, por tão pouco.

 

Estou muito longe de ser o espelho da moralidade... e também não quero sê-lo. Honestamente, ontem estive entretida a trabalhar enquanto o computador teve bateria, continuei a ler O Adeus às Armas que estou quase a acabar, bebi vinho tinto numa caneca do Star Wars (porque, vocês sabem... há que poupar a água... o gelo não era muito...), fiquei a ver as luzes acender ao longe e as estrelas na minha marquise...

 

Depois a luz voltou também ao meu bairro. As pessoas celebraram na rua, com gritos, palmas e assobios, como se fosse um novo ano que começava. E, hoje, transportaram a emoção do momento para o registo do aprendizado numa longa e detalhada lista digital, que só puderam publicar porque há luz...

 

Eu sou a mesma pessoa que eu era há dois dias. Se calhar, durante um tempo, vou combater a preguiça e encher as garrafas com água. Se calhar, vou comprar uma lanterna. Mas fundamentalmente não mudei, não me tornei melhor, não descobri a importância de nada novo...

 

As pessoas querem sempre que tudo seja um momento de epifania. Bom para elas! Talvez sejam, na verdade, mais felizes que eu... melhores do que eu...

 

Mas fica a pergunta... foi a rede elétrica que caiu. Já alguém lhe perguntou se se magoou?


Marina Ferraz




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terça-feira, 22 de abril de 2025

Terra (Olha para mim)

Vídeo de ADN Agência de Notícias

Documentário: @Paulo Oliveira | Texto e interpretação: @Marina Ferraz | Drone: @David Duarte



Olha para mim.

 

Não. Não olhes como olha quem tem olhos e não vê.

 

Olha para mim.

 

Olha-me quando sou semente, quando sou sol, quando sou vento. Olha-me e vê-me no correr do rio. No estalar da argila. No dançar das canas. Olha-me e vê-me na espuma que fica depois da onda, na onda que vem, e vai, e volta... para partir novamente.

 

Não vás. Não vás pelos caminhos de estrada e betão.

 

Segue-me até ao trilho de montanha. Desce comigo ao vale. Encara o nascimento e morte dos dias.

 

Olha-me. Olha-me na noite. Olha-me os ornamentos cintilantes das estrelas. A luz reflexa do luar. Aprende a amar o que fica longe demais para tocar. Aprende a amar o que tem fases. O que mingua e desaparece, para aumentar e ser farol noutro dia.

 

Olha para mim.

 

Olha para os seres que correm entre as ervas. Olha para os pássaros que voam. Observa como planam e cantam. Aprende, com eles, a arte de migrar. Tudo é viagem...

 

Olha para mim. Conhece a arte da serenidade. Descobre que o ciclo, o círculo, é vida. Mesmo quando culmina num último sopro.

 

 

Escuta-me.

 

Não! Não escutes como quem apenas ouve.

 

Escuta o som das minhas entranhas. Quando falo. Quando canto. Quando grito. Quando expludo. O vulcão. O grilo. O restolhar das folhas. O eco do trovão. O canto das ondas, essas sereias de tempo imemorial e sonho. Ouve o borbulhar das águas vulcânicas. O ceder da pedra na encosta. O pássaro. A cigarra. O roer inconstante da madeira velha pelos bichos-gente que a povoam. Ouve o clamor leve das estações que passam. O ranger dos troncos. O correr da ribeira. O adormecer do sol no oceano. O som que os dedos da via láctea arrancam das teclas negras da noite.

 

 

Toca-me.

 

Não! Não me toques breve, inutilmente, com essas mãos que não sentem.

 

Toca-me num mergulho inteiro. Mãos enterradas na areia e acariciando os troncos. Corpo dado à maré-cheia. Enlace de dedo com folha. De dedo com flor. De dedo com pelo. Toca-me como quem ama. Sente o veludo e a rugosidade da minha pele sem corpo. Crava o toque nas entranhas viscosas das minhas vísceras. Toca-me. E sente-me.

 

Descobre que sou tecida de texturas dispares. Que sou camada sobre camada sobre camada de muitas sensações que não são para quem fica à superfície. Madeira e água. Pedra e terra e corpo. Corpo-escama. Corpo- pena. Corpo-pelo. Carapaça e nudez anfíbia, fria e furtiva.

 

 

Prova-me.

 

Não. Não me proves. Saboreia-me.

 

Lambe o tecido férreo dos meus minerais. Entende a subtileza dos frutos sadios que crescem na orla das montanhas. Trinca a maçã verde e a amora silvestre e a laranja de inverno.

 

Sente o sabor da chuva e do trovão a picar nas línguas atentas. E o sal que fica na pele depois do mergulho. E a sensação doce e fresca da água colhida nas nascentes.

 

Saboreia-me em pratos de respeito. Honrando a morte de cada vegetal e fruto, assim como a de cada ser que te alimenta. E conhece-me o acidulado, o dulçor, a mistura inebriantemente agridoce do meu âmago.

 

 

Cheira-me.

 

Não! Não como quem busca o perfume encapsulado e constrito. Não me conhecerás em qualquer perfumaria. Mas vem...

 

Vem cheirar o começo do verão. A neve. A floresta cerrada, encerrada, onde as folhas fazem cama que será alimento. Os jardins floridos. Os pomares. O pelo molhado dos animais. A erva pisada, cortada, crescida. O vento do sul. O vento do norte. A areia beijada de mar. A salina. O fogo. A terra sulfurosa das ilhas. O ar marinho pela madrugada. O ar.

 

Vem sentir o aroma do outono, diferente na queda de cada folha. E sente o cheiro da poesia, que emana. Sempre. Se escolheres cheirar como quem vive.

 

 

 

E, depois, entende.

 

Não entendas como os doutos eruditos das academias, mas como os despretensiosos sábios do burgo...

 

Quando me olhares. Quando me escutares. Quando me tocares. Quando me provares e cheirares. Terás então marcado encontro contigo mesmo.

 

 

Descobrirás quem és: Espelho e pertença... A raiz do átomo e do universo.

 

Tu és eu e eu sou tu.

 

Natureza.

 

 

Pena que não olhes. Pena que não escutes. Nem toques ou proves ou inales essa essência de ti.

 

Porque sou tua Mãe.

 

E, doce humano, por mais cruel que sejas, por pior que faças... quando te olho, escuto, toco, provo e cheiro... vejo essa raiz de matéria sonho.

 

Então dou-te abrigo e embalo-te.

 

Até que acordes os sentidos.


Marina Ferraz




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