terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Grande amor

 

Imagem retirada do Pixabay

Perguntaram-me. O grande amor da tua vida é ele, não é? E a minha vontade foi dizer que não. Que o grande amor da minha vida sou eu. Mas mordi a língua. Porque sei, no meu âmago, o quanto já me odiei. Porque sei que faço escolhas – ainda! – que não são grandes provas de amor para comigo mesma. Porque sei que as faço, muitas vezes, por amor... então respondi apenas “não”.

 

Todas as manhãs me levanto. Por ela. Todos os dias enfrento dificuldades que poderia evitar. Por ela. Todas as noites me deito e agradeço. Por ela. É o nome dela que trago sempre nas pontas dos dedos e na ponta da língua. É ela que tenho, qual órgão vital, determinando-me os passos. Sei eu, sabe ela, sabem eventuais deuses... já perdi tanto por ela, para me dar apenas a ela...


Se ela me diz: muda-te... eu mudo-me. Se ela me diz: abandona... eu abandono. Se ela me diz: perde... eu perco. Tenho-a na minha vida como uma ditatorial forma de estar. Foi com ela que ergui todos os muros. Foi com ela que derrubei todos os muros. Andei com ela por estradas e trilhos cheios de silvas... e só eu sangrei, porque a levei dentro, para a proteger.

 

Vivo por ela, morreria por ela. Recuso-me a usar a palavra amor como fazem os pobres de espírito. Mas amo-a. E sinto que ela me ama. E sinto que ela é a forma mais pura de amar o mundo e as pessoas do mundo, nascidas, vivas, mortas ou ainda por nascer. O seu nome soa-me ao mesmo que o amor. E define o amor. E é amor.

 

 

Então, a vontade da mentira passa. Não me apetece dizer que eu sou o grande amor da minha vida. Porque eu só me amo na medida em que a amo. E porque a tenho em mim. E porque vivo com ela até na solidão dos dias.

 

Perguntaram-me. O grande amor da tua vida é ele, não é? Respondi apenas “não”.

 

Porque ela me disse: não precisas de dizer mais. Mas foi também ela que me permitiu escrever este texto. Que me sussurrou. Diz o que quiseres, sem reservas e sem medos. Fala-lhes de mim, outra vez... e nem te importes que venham dizer que te estás a repetir, porque tens esse direito.

 

Aqui estou. Eu e este amor. O grande amor da minha vida é a Liberdade. Porque é só amando a Liberdade que consigo amar-me. Porque é só amando a Liberdade que consigo amar os outros. Não falo de amor facilmente, mas é fácil dizer que a amo e que, sem ela, não quereria sequer estar viva.

 

Por isso não. O grande amor da minha vida não é ele. O grande amor da minha vida é ela. E estou grata. Porque há quem escolha amá-la comigo. Porque há quem escolha amá-la em mim... Porque ela me ensinou a amar... no âmago do amor, além do amor, apesar do amor...


Marina Ferraz




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terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Do 80 ao 8: uma tese sobre comprar casa em Lisboa

 

Imagem gerada por I.A.

Realidade da compra de uma casa na região da grande Lisboa.


Tens um sonho. Queres um pequeno T2, como o que o João Só fala na canção, mas para morares sozinha com a tua gata. Também conta como “onde podemos morar os dois”. No caso, as duas. Idealizas o prédio cuidado, com um andar alto e elevador. Um espacinho – que se tiver 80 m2 já chega e sobra – bem dividido, sem precisar de obras estruturais e nem te importas que tenha acabamentos que não sejam a teu gosto, desde que não sejam a festa do azulejo. Preferes um quarto que seja suite com closet e uma casa que tenha marquise. Gostas de cozinhas com fogão e esquentador a gás. Gostavas que a cozinha tivesse dispensa, porque já viveste sem uma e sabes que é difícil quando o único buraco para enfiar o aspirador é um orifício no teu corpo, onde ele não cabe...


Ao fim de veres 10 apartamentos e respetivos preços, percebes que talvez nem faça mal não ter dispensa. Na verdade, resignas-te com casas sem instalação de gás, mesmo odiando cozinhar sem fogo e tomar banhos com água quente que acaba ao fim de 3 minutos. Começas a tolerar os azulejos. Alguns, pensas para ti, não são assim tão feios. De repente, 50 m2 já não te parecem criar um espaço encafuado... mas acolhedor e saudável. E, se não tiver elevador, sobes as escadas. Na verdade, podem ser rés-do-chão e caves e subcaves, que assim nem precisas de elevador... Alguns estão em mau estado. Mas, raios, se precisar de obras, com o tempo podes ir tratando disso... e um T1 começa a parecer melhor ideia. Ou um T0. Ou um anexo, mesmo que não tenha licença de habitação. E se não tiver janelas, ao menos não entram mosquitos...


Pedes alguns orçamentos de obras. Quando dás por ti, fechaste o Idealista e estás no site da Decathlon a ver tendas da Quechua e a ver quais os jardins com melhores condições de preço por metro quadrado.


E é quando vês que algumas tendas custam 1500 euros... e que não abate nas mais valias que vais ter de pagar ao Estado, que fazes o único telefonema que faz sentido: ligas aos teus pais e perguntas se ainda têm o teu quarto disponível...


Marina Ferraz




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terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A última colherada

 

Imagem gerada por I.A.

2024 está a acabar e parece-se um bocadinho com aqueles cereais de marca branca que comprámos para experimentar, odiámos... mas que não deitámos fora, porque sabemos que há muitas pessoas a passar fome no mundo... Este último dia do ano sabe-me como esses cereais terríveis, que mais parecem cartão prensado e ficam moles em 2 segundos. Então, entusiasmo-me com a ideia de que a próxima caixa de cereais possa ser como as da infância, que me faziam feliz da primeira colherada ao beber do leite achocolatado que ficava no fundo da taça.

 

Tenho por hábito e tradição de 31 de Dezembro abrir o caderno do ano anterior para ler os meus 12 desejos. Avaliar quantos se realizaram e quantos ficaram por realizar. Escrever uma lista das melhores e das piores coisas do ano que acaba. Formular novos desejos para o ano que chega. Não o farei este ano. Para começar, no meio dos caixotes que povoam a minha sala, já não sei onde anda o caderno do ano passado. Depois, tenho quase a certeza de que ler os desejos me deprimiria. E sobre escrever sobre as coisas más deste ano... bem... não tenho a certeza de que as folhas do caderno chegassem!

 

É que 2024 não só teve o condão de ser um ano de merda, como teve um dia extra para o ser. Já dizia a minha avó que não gostava de anos bissextos... e ela lá sabia...

 

Este ano poderia ter sido o ano de desistir. Este ano poderia ter sido o ano de deixar morrer todo e cada sonho. Este ano poderia ter sido o ano de pousar canetas e armas e ideias e cravos... e afundar com o navio-mundo e tudo o que ele trouxe ao meu porto. Hoje, olhando criteriosamente o bom (também o houve) e o mau... mesmo sem o escrever... entendo que a vitória deste ano é estar viva, de pé... com um bocado de dores nas costas, mas é a vida.

 

Este ano, devo um sentido agradecimento ao mundo. Porque, à medida que a areia movediça dos dias me engolia, e mesmo sem que ninguém tivesse a perceção plena do que eu estava a passar, houve mãos que se agarraram à minha. Mãos que são família. Alguma de sangue. Alguma de alma. Mãos que são compaixão. Mãos que são amizade pura. Talvez eu conte essas pessoas pelos dedos das mãos. Lembrando-as nas horas junto de meninos e idosos. Lembrando-as no riso sobre almoços. Lembrando-as no arroz doce em frasquinhos de gelado. Lembrando-as rindo atrás do balcão. Lembrando-as, pintando-me – literalmente – pássaros que me dessem asas outras vez. Lembrando-as, indo atrás do microfone, mesmo com medo, para honrar o trabalho feito em conjunto. Lembrando-as, andando comigo, de um lado para o outro, à procura do futuro. Não importa realmente que sejam poucas, porque são reais. E agradeço-lhes, do fundo do coração, por não desistirem de mim, quando eu própria estive tão perto de o fazer.

 

Este ano acaba como o caos que me foi. Estou de trouxa às costas, prestes a mudar. Com o futuro todo – seja muito ou pouco – à minha espera.

 

E não quero avançar para 2025 sem recordar 2024 e agradecer, também, à pessoa mais importante da minha vida, que sou eu. Porque eu me levantei em todas as 366 manhãs deste ano. E as vivi de cabeça erguida, olhando nos olhos a vida, mesmo quando me roubava, torturava e mutilava cada sonho. Porque me abracei na maioria das noites. Porque pus álcool nas minhas próprias feridas. Porque caminhei nas brasas. Porque desci ao inferno. Porque escavei esse fosso com as mãos nuas, até sangrar dos dedos. Mas abri frestas. Respirei do ar rarefeito. Desfiz-me em duas. Passei pelos espaços e já vejo um bocadinho de luz. Portanto, estou grata por mim mesma. E orgulhosa. Porque se a intenção deste ano era derrubar-me... foi bem sucedido na tarefa. Mas se a intenção era destruir-me... falhou. Caí. Levantei-me. Estou preparada para cair e para me levantar outra vez. Não tenho muita vontade de o fazer, mas sei que posso contar comigo e com (poucos mas) bons amigos no processo.

 

Despeço-me de 2024. Como quem come aquela última colherada de maus cereais e sorri. O melhor deste ano é que, como tudo o resto, não é eterno. Para 2025, não tenho desejos. A vida que traga as oportunidades... eu trato do resto.

 

Vou começar por comprar os cereais que eu gosto. Porque mereço ser feliz da primeira colherada ao beber do leite achocolatado que fica no fundo da taça.


Marina Ferraz




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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A rusga

 

Imagem: DN/Lusa

Era dia de operação policial e mandava a rusga que se visse cada esquina, cada espaço, cada pessoa...

 

Os agentes da orgulhosa nação travaram a Liberdade, que passava. Disseram-lhe que se virasse e encostasse as mãos à parede. Era preciso revistá-la, ter a certeza que não andava por aí, com bens contrafeitos ou armas.

 

Não a pararam por acaso! A Liberdade, julgaram logo, tinha um aspeto exótico. Seria certamente estrangeira, tal como os Direitos Humanos, a Justiça e o Bom Senso, encostados à mesma parede, de olhos postos no chão. A Liberdade trazia traços próprios, inadequados e fora da caixa, vinha despida de politicamente corretos e cortesias desnecessárias. Quando a mandaram olhar as pedras da calçada, respondeu com dois impropérios secos e fitou quem, como ela, ali permanecia, segurando a parede, que bem pudera ser o muro que ela mesma tinha destruído em Berlim, há tantos anos...

 

Levaram-lhe as mãos aos bolsos. Deles, tiraram cravos contrafeitos, que certamente serviam de bala. Contentes, violentamente lhe colocaram os braços, antes estendidos, atrás das costas, agrilhoando-os com algemas de aço e insanidade. Levaram-na, no mesmo carro que o Bom Senso, a Justiça e os Direitos Humanos.


Ao chegarem ao posto, descreveram o acontecimento. Esta senhora... - assim se referiram a ela – é uma ameaça e faltou ao respeito às autoridades. E o agente foi fazendo perguntas aos colegas, para preencher o auto. O que lhe encontraram nos bolsos? – perguntou primeiro. Tinha cravos-bala contrafeitos nos bolsos. E o agente continuou: E ao verificarem os bolsos, encontraram Portugal? – os colegas abanaram veemente a cabeça. Não, Portugal não encontrámos...


E o Bom Senso riu-se. E a Justiça riu-se. E os Direitos Humanos riram-se. E a Liberdade riu também, porque era livre, ainda que a prendessem. E os agentes olharam para eles, questionando-os quanto ao riso. Porque se riem? Atiraram, secamente. A Liberdade sorriu abertamente, mas não disse nada. Mas o Bom Senso levantou os olhos do chão, fitou-os, fixando -os nos olhos e disse: É só porque, neste ponto, será ainda mais difícil encontrarem Liberdade se procurarem nos bolsos de Portugal...



Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Milagre

 

Imagem gerada por I.A.

Parei. É o que acontece quando não temos uma televisão. Paramos. Assim que existe uma dessas caixinhas mágicas ligadas. Imagens em movimento cativam os olhos desabituados, que não usam o ecrã apenas como fuga e companhia permanente. Dava o telejornal. E eu sentei-me. E eu levantei-me. E eu servi-me de um copo de amêndoa amarga. E eu voltei. E eu digo-vos. Não dá para aguentar isto sóbria!

 

Um carro a parar para uma senhora idosa atravessar a estrada com calma. Um cantor que tira a tarde para ir ao centro de dia alegrar os idosos. Um pai que acende a luz de presença ao filho em vez de o criticar por ter medo do escuro. A senhora que leva a refeição aos sem-abrigo todas as semanas. Os voluntários que se sentam por horas, a ouvir as histórias de utentes paliativos. A menina que adota o animal abandonado. O professor que não cobra pelas horas de apoio extra. O amigo que manda mensagem só para saber se estás bem. Os trabalhadores apressados que deixam um “café pendente”. Os clientes que deixam uma avaliação positiva e um comentário bonito de agradecimento, ou que agraciam generosamente os funcionários com gorjetas. O estranho que dá um abraço de empatia. O idoso que planta uma árvore para que o neto, ainda por nascer, se lembre dele. Os amantes da Natureza, que tiram dias para limparem as praias e as florestas. As crianças que beijam as bochechas das avós. O senhor que corre atrás de alguém para devolver a carteira que deixou cair. O colega que defende a vítima de bullying, sem se importar com as consequências.

 

Há muitos milagres no século XXI. O telejornal não fala sobre eles. Diz-nos que aumentou novamente o número de gente sem teto. Fala-nos da guerra na Ucrânia. Destaca os desajustados preços da habitação. Diz quantas pessoas morreram por atraso na resposta do SNS. Divulga as 30 greves e manifestações que houve na semana. Mostra partes incoerentes do discurso de autarcas, deputados e chefes de estado. Atira-nos à cara os votos sobre o novo orçamento. Revela os lucros obscenos das grandes empresas. Segue essa informação com dados sobre a inflação gigante e o pequeno aumento dos salários. E, depois, numa nota de esperança, fala do Natal... ah, esqueçam, foi para dizer que o bacalhau já ultrapassou os 20 euros por quilo e pode chegar aos 40, já em 2025.

 

Observo tudo isto com um copo cada vez mais vazio. E, por tristemente o achar vazio demais, encho-o de novo. Não dá para aguentar isto sóbria!

 

A pouco e pouco, vou desligando do ecrã e pensando nos milagres. Dizendo a mim mesma que ainda existem pessoas boas. Pedindo aos meus avós que, lá do outro plano, me ajudem a ser uma delas.

 

De repente, ensinamentos de outro tempo que mais parece outra vida, levam-me às milagrosas histórias de uma rainha boa. E imagino-a hoje, caminhando calmamente, com as vozes agrestes perguntando: o que levas aí no regaço?

 

E imagino-a a dizer: São cravos, senhor.

E imagino as vozes: Cravos em Dezembro?

E imagino que cravos vermelhos lhe caem do manto.

 

Talvez toda a bondade seja um cravo. Talvez toda a bondade seja um gesto de rebeldia. Talvez haja esperança. Ou talvez eu devesse beber menos...


Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Vinte e quatro

 

Fotografia de Ana Leonor Jesus

 A minha sobrinha encontrou uma gatinha. Na verdade, uma gatinha encontrou a minha sobrinha. Aperceberam-se uma da outra. Na sua pequenez de gato de rua. Na sua pequenez de menina que não chegou ao metro e sessenta. Entreolharam-se.

 

Quando se cruzaram, a minha sobrinha estava a alimentar os gatos de rua. A gata percebeu o gesto compassivo e apaixonou-se por ela. Escolheu-a. E, mesmo sem autorização para abrigar animais dentro das paredes da casa, a minha sobrinha agarrou nela, escondeu-a dentro do casaco, e tirou-a do frio que se sentia na rua, sem hesitação.

 

Conta a minha sobrinha que não foi fácil. Diz que a gatinha estava assustada... sem nunca referir que ela própria o estava, já que o apego é rápido e a separação magoa. Mas quis a vida que pessoa e gato encontrassem aceitação. Que as paredes da casa se tornassem abrigo tolerado. Que se começasse a escrever uma história de gato – gata – com nome. Chanel. Uma história entre uma gata e uma humana que estabeleciam o vínculo: a partir de agora, tu és minha e eu sou tua.

 

Na casa da minha sobrinha são caminhas e brinquedos, aquecedor, comida de gato, água fresca, riso, carinho e brincadeiras – sendo a principal a de destruir a árvore de Natal. Entendam. Isto não é uma conjetura! Sei isto! Eu e a família inteira! Sabemos disto porque a adoção de uma gatinha transformou o grupo de whatsapp da família numa espécie de guerra interna, onde o bombardeamento é de fotos felinas.

 

A minha sobrinha arranjou uma gatinha. Por entre os mil e quinhentos vídeos do grupo, todos dizem é linda e fofinha. É. Mas eu confesso que me senti incapaz de responder. Porque também acho que é linda. Linda, diria eu, além dos olhos claros e dos cabelos louros. Linda de compaixão. Linda de carinho. Linda de amor. Com o tipo de beleza que só tem quem cuida. Então, ao vê-la cuidar assim daquela gatinha de rua – agora de casa – eu não fui capaz de dizer nada.

 

Mas digo hoje. E digo hoje porque, há precisamente vinte e quatro anos, houve uma noite em que chorou uma bebé recém-nascida. Porque ao olhá-la eu agarrei nela e a escondi dentro do coração, carregando-a para a vida, sem hesitação.

 

Do laço de amor criado, nesse primeiro dia, trago uma memória que também é riso e felicidade. Uma história entre uma criança e uma bebé que estabeleciam o vínculo: a partir de agora, tu és minha e eu sou tua.

 

Olhando para os vídeos de uma gata, eu vejo o ser humano, hoje mulher, que alimenta os animais de rua e os acolhe na própria vida. E, quando leio “é tão linda”, eu concordo...

 

Só que não estou a falar da gata!


 Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Nome de rua

 


Provavelmente nunca darei nome a uma rua. Mas nunca pensei ter medo de que viesse a surgir uma rua em minha homenagem. Até hoje...


Em Mem Martins existe uma rua. Com o nome de uma escritora. Consagrada. Amada. A Menina do Mar da nossa praia. A Fada Oriana do nosso imaginário. O Cavaleiro da Dinamarca da nossa peregrinação. O Rapaz de Bronze dos jardins da nossa mente. “Porque os outros se mascaram, mas tu não...”. Falo, claro, de Sophia de Mello Breyner.  

 

Provavelmente, se abrirem o vosso GPS e digitarem o nome, buscando a localização da rua, não vão encontrá-la... mas ela está lá! Provavelmente, se abrirem o Google Maps e a procurarem, não vão encontrá-la... mas ela está  lá! E continua a estar, numa homenagem que foi perdendo uma letra aqui, um conector ali... exibindo a placa onde se lê Sofia de Melo Breyner.

 

São dois erros, num nome só... um “ph” que vira “f”, um “l” que se perdeu no caminho, um nome que não é o mesmo, embora o seja... dois erros em três palavras (se descartarmos a preposição) e, mesmo se não a descartarmos, metade do nome está errado!

 

Imaginei, por momentos, que a decisão do nome das ruas fosse muito informal, e que por entre copos de cerveja e larachas com os amigos num tasco qualquer, o responsável tenha olhado e pensado que o absinto o iluminara com uma Oriana verde, anotando o nome num guardanapo e registando-o assim.

 

Bem.... eu não sabia, confesso, onde se registavam os nomes das ruas. Fez-me sentido, perante a situação, que fosse no contexto mais ébrio e informal. Mas fui pesquisar. Parece que, afinal, a decisão é ponderada pela câmara municipal de cada concelho que, muitas vezes em parceria com as juntas de freguesia, delibera o nome em reunião oficial, consultando e buscando o parecer de entidades históricas e culturais antes de proceder aos registos oficiais de toponímia e à respetiva comunicação em cartórios, havendo depois a afixação do nome e a sua publicação em edital. Nem que apenas uma pessoa fosse parte de cada uma das fases do processo, estaríamos, portanto, a falar de cinco pessoas que não viram nenhum dos erros num dos nomes mais emblemáticos da nossa literatura!

 

Provavelmente nunca uma rua terá o meu nome. Mas, até hoje, se me perguntassem, não me importaria que a vida desse uma volta que gerasse essa homenagem. Seria giro ter uma rua, num tempo em que para se ter casa já é preciso, quase, entrar pelos mundos do meretrício... Só que, subitamente, todos os meus traumas regressaram. Se eu não consigo que nem os profissionais do telemarketing me liguem sem me chamar o nome errado... imagine-se!

 

Então, antes que venha o dia de haver uma rua “Mariana” Ferraz, e sendo que sei o país em que vivo... por favor, peço encarecidamente, não deem o meu nome a uma rua!


Marina Ferraz




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terça-feira, 26 de novembro de 2024

A maior distância

 

Imagem gerada por I.A.

Eu não penso em vocês quando escrevo!

 

Peço desde já desculpa pela falta de formalidade e cerimónia, totalmente proveniente de um forte sentido de desatenção à norma e ao politicamente correto.

 

Sim, eu gosto que me leiam. Muito. E valorizo imenso cada crítica que me faz crescer. E cada elogio que me faz sorrir. E cada comentário, cada reação, cada partilha! Mas eu não penso em vocês quando escrevo.

 

Sabem?! Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. É a maior distância, quero eu dizer, que eu, sendo eu, posso criar entre dois pontos. Não!... Não me estou a explicar bem! O que eu quero dizer é que, apesar de toda a pequenez e ausência de utilidade prática de um texto meu e da minha própria insignificância, o texto que escrevo reforça e por vezes aumenta a distância entre dois pontos e são pontos que estão a uma distância infinita. Suspiro. É impossível dizê-lo! Posso dizê-lo, claro. Mas não consigo explicar de forma a que entendam. Mesmo isto, ao ser lido, passa automaticamente pelo processo de criação de desentendimentos. Entendam: o que eu queria dizer quando o disse e o que vocês leram agora não é a mesma coisa!

 

Há um texto. Um texto que fui eu que escrevi. O uso do possessivo significa isso. Que o escrevi. Digo que é o meu texto. Quando o público lê, o texto perde o possessivo que tem e ganha outro. Na leitura, ele é o vosso texto. O meu texto não é o vosso texto, mesmo que seja o mesmo texto. Um texto é muitos textos. E é por isso que um texto meu é a maior distância entre dois pontos, porque abre espaço a um infinito desentendimento.

 

Não faltam situações em que as pessoas se identificam com o que digo, nem situações em que a discordância vem de uma interpretação que eu nem tinha pensado. Enlouqueceria depressa se tentasse escrever de forma a agradar a todos. E é por nem tentar fazê-lo que não terei um best seller tão cedo (ou alguma vez...).

 

Eu não penso em vocês quando escrevo!

 

Penso num mundo onde existe uma desmesurada preocupação com “será que devo dizer/fazer/escrever isto?”, uma auto-censura que recuso para mim. Penso em todas as pessoas que estão a passar pelo frio, fome, guerra. Penso que muitas delas não sabem escrever. Que muitas delas não podem. Que mesmo que soubessem e pudessem, essa não seria uma prioridade. Penso nelas quando escrevo, porque me recordam de que as palavras que digo (e não as que os outros leem) significam algo. Valem algo. Valerão algo, mesmo que ninguém lhes dê valor.

 

Vem do português do Brasil uma expressão que amo: “Lugar de fala”. O meu lugar de fala é de privilégio. Neste lugar de gente com teto sobre a cabeça (e computador onde escrevo este texto, com uma manta quentinha sobre as pernas), sem bombas a explodir lá fora e com comida no frigorífico e na despensa. Então, quando escrevo, eu não penso em vocês. Gente que abre o computador ou pega no telemóvel para ler – e se ofender ou amar – o texto desta semana. Penso em quem não escreve, nem lê. Quero profundamente que o meu texto seja esse espaço de desentendimento, de compreensão sobre o quanto não entendemos a realidade dos outros, porque é distante e não nos come a carne. Um texto meu é a maior distância entre dois pontos. Mas é também a forma de tentar reduzi-la. De tentar acordar corações para essa realidade fria e longínqua.

 

Os meus textos são desconfortáveis. Quando os escrevo. Quando os leem. Eu não penso em mim quando escrevo. Nem em vocês. Eu penso que estou aqui e não sei para quê. Mas que, se não tentar pegar no meu privilégio para tentar estreitar a maior distância entre esses dois pontos, não estou aqui a fazer nada.

 

Eu não penso em vocês quando escrevo.

 

Escrevo. Só. Porque às vezes parece que é a única coisa que me mantém viva. Como se também houvesse uma guerra de fome e frio debaixo das mantas, que vou vencendo de todas as vezes que alguém se incomoda por eu o fazer. Como uma vozinha que sussurra no meu ouvido: talvez, talvez, afinal faça diferença.

 

Por isso, leiam. E sintam. E digam-me. Mesmo que não concordem mesmo nada com o que leram – seja ou não o que eu disse. Talvez um dia, juntos, na escrita, na leitura, na interpretação, os textos possam ser como as linhas retas. A distância mais curta entre dois pontos.

 


Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de novembro de 2024

O nome esquecido

 

Imagem gerada por I.A.

Tenho pena de deus. Esse que alguns escrevem com maiúscula. Usaria maiúscula se soubesse o seu nome. Mas conheço-lhe apenas o cargo. Acredito que seja um workaholic mais velho do que o tempo, tão focado no cargo de poder que já não se lembre bem de que nome tem ou como chegou a tão alto patamar, ou quando foi a última vez que descansou.

 

O deus do qual tenho pena é um deus único, amado e odiado, que de tão omnipresente não está de facto em lugar nenhum. Cresci a ouvir falar dele e nunca constou que tivesse mãe. Nunca me disseram que tivesse pai. Irmão. Irmã. Tios. Primos... Alguns disseram-me que ele era pai e mãe. Alguns disseram-me que ele tinha tido um filho, mas que esse filho era também filho de uma pomba, de um carpinteiro e de uma virgem. Alguns disseram-me que ele era todo-poderoso. Nunca ninguém me disse se ele era feliz. Ou se estava bem. Quando foi a última vez que comeu. Quando foi a última vez que passeou pela Natureza que ele mesmo criou. Quando foi que adormeceu com luz estrelas a bater no rosto ou o beijo de qualquer uma das múltiplas luas do universo.

 

Tenho pena dele, embora não saiba a resposta a nenhuma destas perguntas. Porque se os homens e mulheres não as fizeram antes de mim, é talvez porque ninguém queira realmente saber de deus. Ou pior, talvez porque só queiram que ele queira saber deles, e só se lembrem dele quando precisam de alguma coisa.

 

Se deus tivesse pai e mãe, talvez lhe dissessem que, na Terra, a retórica política usa a religião como motor de legitimação da autocracia. Que pessoas como Ventura, Bolsonaro, Trump ou Putin, entre muitos outros na História, já disseram, de forma direta ou indireta, que foram enviados por ele, para cumprir um qualquer papel messiânico na salvação de países ou do mundo. Que um suposto “povo eleito” é culpado de genocídio. Se deus tivesse pai e mãe, eles diriam, caso isto seja verdade, que talvez seja hora de repensar as escolhas. Talvez lhe dissessem: “filho, todas as tuas decisões têm consequências”. E talvez ele ouvisse, como alguns adolescentes ouvem, entre revirares de olhos, adequando a ação para criar o mundo de paz e amor .

 

Assinam-se documentos que permitem o uso de armas nucleares, montam-se tendas e camas de cartão nas ruas da cidade, destroem-se outras tendas em campos de refugiados, e onde dormiam mulheres, crianças, bebés, gente, é deixado apenas o grito da morte e destroços.

 

De deus, sabemos só o que nos dizem. E a fé mais bonita dos homens permanece, em orações que valem ouro, porque estão cheias de benquerença e compaixão. Tenho fé em algumas pessoas que rezam e defenderei o direito de qualquer pessoa ter a fé que tem, mesmo que eu não a tenha. E viverei desejando que essa fé seja um motor bonito para uma vida melhor e uma maior empatia e um amanhã que mereça ser vivido. Mas de deus eu conheci uma história triste. Aquela que me contaram, sempre na perspetiva dos homens. Disseram-me que deus salvaria o mundo. Nunca que o mundo salvaria deus. O mundo não o salva. O mundo está a matá-lo, se é que existe, usando-lhe o formal nome em nome de coisa nenhuma. E eu tenho pena de deus, porque o imagino velho e meio senil, sabendo que é deus porque tem o cargo mais complexo de todos e lho lembram diariamente, mas já sem lembrar que nome tem... ou se alguma vez o teve... ou para que o teria, se o soubesse, já que ninguém lhe pergunta como se chama.

 

Sussurro às estrelas. Se estás aí e existes, diz-me como te chamas. Quero saber se és feliz. Quero saber se estás bem. Quero dizer-te que tens de repensar as tuas escolhas. O silêncio abraça-me. O smog da cidade cobre o céu. Por entre a poluição, se há resposta, eu não a ouço.


Marina Ferraz




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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O maior elogio

 

Imagem gerada por I.A.

Disseram-me: só conheci uma pessoa verdadeiramente livre. Estavam a falar comigo. Estavam a falar de mim. E este foi o maior elogio que alguma vez recebi. Em 35 anos de vida, este foi o elogio mais bonito que ouvi uma pessoa dar a outra. E só fica, dentro de mim, a embater contra carne e ossos, a certeza de que não o sou. Verdadeiramente livre.

 

 

Todos os dias nos levantamos para os inevitáveis e as regras mundanas. Assumindo os acontecimentos com fatalismo. Aceitando-os e naturalizando-os, como se a norma social não fosse artificialmente construída. Rezamos ao Deus dos nossos pais e avós, evitamos impropérios, estabelecemos relações monogâmicas, seguimos uma linha “coerente” de vida, seguindo do liceu para a faculdade, da faculdade para o trabalho, do trabalho para a reforma; do namoro para o casamento, do casamento para os filhos, dos filhos para o divórcio. Subjugamo-nos ao ser bom aluno, ser bom marido ou esposa, ser bom pai ou mãe, ser bom profissional, ser cumpridor das normas, ser o que nos disseram para sermos... e sim, este uso da primeira pessoa do plural é em si uma convenção ancorada no politicamente correto. Porque eu não o faço, não quero fazê-lo e só não digo que detesto quem o faz porque não posso detestar o mundo quase todo e viver uma vida plena e feliz... mas detesto, isso sim, saber que as pessoas fazem isso a si mesmas.

 

Dizem-nos, falando da norma: vai por aqui, que é o caminho da felicidade. Mas quase ninguém é feliz na norma. Então, convenciona-se que é normal não estar feliz. Ter de lutar pela felicidade. Pelo sonho. Plantar hoje para colher amanhã. E plantamos, plantamos, plantamos... sementes e sementes e sementinhas do que não vamos colher, alimentando as mesmas galinhas gordas que entenderam tudo e riem, dos seus palanques, atirando ovos dourados - esmola ocasional para criar a ilusão de retribuição.

 

Olho para a norma e não encontro, de raiz, nada de errado nela. Porque é sempre essa a defesa dos que se ofendem com a Liberdade. Mas eu sou mesmo católico. Mas eu quero casar. Mas eu quero cumprir o meu papel de esposa. Mas eu quero ser um bom empregado. Mas eu quero... Fantástico! Está tudo certo. Podemos querer ser o que nos dizem para sermos, desde que saibamos que não estamos a sê-lo apenas por isso. Ser porque os outros são. Ser porque os outros dizem. Ser porque aprendemos o A-B-C do status quo e acreditamos que é a única forma... isso é o que o me incomoda. E incomoda-me porque, quando assim é, nem as pessoas são livres, nem deixam que os outros o sejam. A prova disso é que vivemos num tempo estranho onde a modernidade se mescla com o conservadorismo e passa a integrar princípios arcaicos de apatetado moralismo e puritanismo. Um tempo no qual a censura é desvelada, acontecendo diariamente, mesmo em frente dos olhos complacentes de meio mundo.

 

Acredito na Liberdade. Acredito nela de uma forma tão plena que acho que toda a gente deveria libertar-se das amarras constrangedoras do politicamente correto e socialmente aceitável para ser o que quiser, mesmo que isso seja divergente da artificial norma. E, ao fazê-lo, deveria dar espaço para que o outro possa fazer o mesmo, ainda que o faça de uma forma diferente. Ser e deixar ser. Mas ser, realmente. E deixar realmente que o outro seja. Sem invasões de espaço, sem imposição de limites, sem constrangimentos e preconceitos, sem julgamento, sem cobrança.

 

Para nos limitar, já temos a lei. Não precisamos uns dos outros.

  

Por isso, quando me disseram, lágrimas nos olhos - só conheci uma pessoa verdadeiramente livre – e estavam a falar de mim, eu sorri. Eu não sou verdadeiramente livre. Mas gosto de o ser nos olhos de alguém... porque só eu (e os meus idos) sabemos como estou a tentar. A Liberdade é uma semente que plantei no solo da minha vida e que rego regularmente. E, sim, monto-lhe guarda cerrada!... Porque há sempre uma galinha gorda por perto, a querer comer a semente a troco de um ovo de falso ouro. E eu tenho uma ideia do buraquinho em que, com os impropérios aplicáveis, devo mandá-la enfiá-lo...


Marina Ferraz




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