terça-feira, 16 de abril de 2024

10 Vertical

 


Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros?

 

A pergunta tem um eco em mim. Repete-se, como o toque do telefone da recepcionista, que parece desocupada, mas não o atende.

 

Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Se o telefone toca, deve ser para atender.

 

E porque é que ninguém parece importar-se que tenham acendido luzes tão fortes? Ou que insistam em pôr a música aos berros? Ou que não atendam o telefone?

 

A mulher tem uma criança de três ou quatro anos. A criança bate com o copo de plástico na mesa. Impaciente. A mãe lê a revista. Folheia-a de forma estranha. Uma página adiante. Duas para trás.

 

Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Porque é que a mulher não diz à criança que não deve bater com o copo? Porque é que a mãe folheia sem ler, como se não quisesse acabar de ler?

 

E já passam dois minutos da hora da consulta. Se atrasar mais de dez, de certeza que já apanho trânsito. Raios! Ainda tenho de ir trabalhar. E porque é que a recepcionista não atende o telefone? Por este andar, quando chegar a casa, vai ser tarde. Se calhar não janto para adiantar as coisas. Mas estou com fome. Já estou com fome. Será que o espaço das empadas ainda está aberto? Fica a caminho… e já ia “jantada”. Mas normalmente não há onde estacionar. Melhor não. Vou perder mais tempo! Como quando chegar a casa. Ou não. Vamos ver a hora a que chego. Talvez seja só mais um bocadinho.

 

Meu… Porque é que acenderam luzes mais fortes e insistem em ouvir música aos berros? Porque é que não atendem o telefone? Porque é que a mulher não diz à criança que não deve bater com o copo? Porque é que a mãe folheia sem ler, como se não quisesse acabar de ler? E o que é que o raio do médico está a fazer? Palavras cruzadas?

 

Olha! Se calhar aquela revista tem palavras cruzadas. Sempre me entretenho. Também devem ser só uns minutinhos…

  

Uns minutinhos.

 

O atenuar das luzes. O esvanecer da música. O telefone que para de tocar. O copo que já não soa a bomba. A mulher que desaparece do campo de visão.

 

O médico chama. Não ouço.

 

10. Vertical. 

"Pessoa com síndrome de caraterísticas sensoriais e sociais divergentes". 7 letras.(*)

 

O médico volta a chamar. Mais alto. Acorda-me.

 

Se não tivesse só 6 letras, acho que a resposta era essa... O meu nome.


Marina Ferraz


(*) Lembremos que Abril é, também, o mês de consciencialização sobre o autismo





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terça-feira, 9 de abril de 2024

12 mm

 


Parei em frente à montra de uma pastelaria. Olhei para ela. Os doces de Lisboa parecem sempre melhores debaixo da luz. Uma chamada de marketing para o alimento pouco sadio, tantas vezes desnecessário, só para matar a fome à gula. Alimento inflacionado para os turistas. Esvaziando o bolso dos turistas e dos outros. Para que o dono tenha alimento. Para que continue vivo e possa pagar a renda astronómica e o salário do confeiteiro e das duas empregadas de balcão, que prefeririam a companhia de uma terceira nas horas de enchente.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Apetece-me tudo. Mas principalmente chorar. Não o digo. Em vez disso, encolho os ombros. Estou só a olhar para o vidro. Estava. Ver o que fica além dele é pura casualidade. Relação de protões e fotões numa escala de luz visível… Mas estou só a olhar para o vidro e a pensar. Um pensamento com exatamente 12 mm.

 

 

12 mm não é nada. Poucas coisas assim seriam medidas. E, mesmo as que são… Cabem um pouco mais de 83 medidas de 12 mm num metro. Com 12 mm de chuva por hora, ainda se fala em chuva fraca… Mas 12 mm também é muito. Mesmo, mesmo muito. É muito quando, trespassado por uma bala de uma 12 mm, alguém se esvai em sangue até perder a vida, deixando mães e irmãos, filhos e amigos com muito mais do que 12 mm de mágoa. É muito quando, escrevendo a receita dos óculos e das lentes de contacto, o médico consulta a tabela distométrica para converter as graduações, considerando os 12 mm de distância a que uma armação coloca as lentes oculares, para que a visão seja precisa. É muito quando, parado onde eu estou, um sem abrigo com fome olha além dos 12 mm de vidro, para a comida à qual não tem direito.

 

Apetece-me chorar. É isto que não digo, mas penso, olhando para os 12 mm envidraçados e toda a sua fragilidade. É isto que não digo, mas penso, quando os olhos fixados deixam de focar os doces lisboetas e focam o reflexo do pedinte que estende a mão às gotas da chuva, para colher as lágrimas dos deuses.

 

Entre mim e o sem abrigo há dois metros que são muitos quilómetros... Tão distantes quanto os 12 mm que o separariam dos bolos, se estivesse onde eu estou. E sinto-me sozinha, como se essa distância fosse também a que me separa de todas as outras pessoas, que seguem pela rua, em passo apressado, um pouco cegas à realidade das montras e das pessoas que pedem esmola na calçada.

 

Apetece-te alguma coisa? Perguntam-me. Estou só a olhar para o vidro. Respondo. Mas a verdade é que estou a olhar para 12 mm de mundo… e para o mundo inteiro. Para a ilusão de proibições feitas de material frágil e pouco denso, a agirem com a precisão metálica das balas das pistolas de 12 mm quando ceifam vidas. Para as lentes dos óculos de quem passa, talvez com graduações mal calculadas e que não consideraram os 12 mm que separam a lente do olho, provocando cegueira seletiva quando se trata de andar pelas ruas ou ver os telejornais.

 

 

Apetece-te alguma coisa? Parada, à frente da montra de uma pastelaria, olhando um vidro e os reflexos no vidro, dou por mim a ver-me a mim mesma e não sei se gosto do que vejo. Quero trincar a realidade e cuspi-la por ser amarga. Apetece-me isso. Cuspir a realidade na cara de quem cospe fel sobre as gentes, sem pensar nela. Sempre é melhor cuspir do que ir engolindo as mentiras que perpetuam este mar frio de tristezas, na ilusão de que não somos parte do problema, nem potenciadores de soluções.

 

Apetece-te alguma coisa? Apetece! Apetece-me um mundo melhor. Para levar! Um mundo onde não haja quilómetros entre mim e os outros. Entre os outros e os outros. Entre os outros e este ser que acho que sou. Apetece-me um mundo onde os bolos da montra sejam, como as gotas de chuva, para todos. Apetece-me um mundo… mas um mundo que não existe. Que me dizem, rindo, que não vai existir. Não respondo. Porque sei que ali se vendem só pastéis para matar a gula. E o que eu tenho é fome de justiça.

 

Não sei se as lágrimas se medem em milímetros, como a chuva. Nem se um choro de 12 mm é um choro fraco. Mas apetece-me chorar.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 2 de abril de 2024

Caridade

 


Não quero saber se temos o mesmo sangue. Ou se somos amigos de longa data. Ou conhecidos. Ou fruto de um flirt qualquer. Não quero saber se dormimos juntos. Amantes de noites ocasionais. Ou amantes de noites regulares. Ou cama sem a dignidade que cabe na palavra amante.

 

Não quero saber quem tu és… Não faças o favor de me amar!

 

Eu nunca precisei que me amassem por caridade e dispenso a compra e venda de favores emocionais.

 

Se queres salvar a alma, sai à rua e alimenta quem tem fome. Vai dar o teu tempo aos idosos nos lares. Mudar a fralda de órfãos e crianças retiradas às famílias, por falta de amor ou dinheiro. Envia as roupas que despiste ou que te despiram para os países de terceiro mundo. Não deites lixo para o chão. Evita o plástico. Recicla. Toma banhos mais curtos. Desliga a torneira enquanto lavas os dentes. Come menos carne. Amarra-te às árvores que vão ser abatidas. Assume-te contra a guerra. Qualquer guerra. A guerra de um. A guerra do outro. Sê pacifista. Objetor de consciência. Vai às manifestações. A todas! As climáticas e as que fazem mau clima para quem está no poder. Vota. Mas vota a pensar nos outros e não no teu umbigo. Planta árvores. Não arranques flores. Vai com baldes de água apagar incêndios. Dá lume a quem quer fumar uma ganza e se esqueceu do isqueiro. Mantém a porta aberta para a pessoa atrás de ti entrar ou sair. Vai a pé ou de bicicleta. Dá conferências, palestras, workshops e Ted Talks sobre a bondade e a empatia. Começa grupos temáticos de apoio às vítimas de abuso, de agressão, de luto, de vício ou de trauma. Faz caridade com o mundo, que bem precisa. Eu dispenso.

 

Eu nunca precisei que me amassem por caridade! Por isso, se estás a tentar fazer à alma o que os suinocultures fazem aos porcos, não faças. Eu não sirvo de lavagem, para nutrir o ego de ninguém. Estou muito cansada de cobrança. Estou muito cansada de opiniões. Estou muito cansada de favores e favorzinhos que nunca pedi, cobrados por dá-cá-aquela-palha. Não sou lavagem nem burro para gostar de palha. Não faças o favor de me amar.

 

Mas, por favor, reserva a energia que te tomaria esse favor. Esse esforço. Esse. De me amares. De fingires que amas. Reserva-a e vai fazer algo que valha a pena.

 

O mundo está muito mais necessitado de amor do que eu estou. Porque eu me amo. Muitíssimo. E, mesmo que não faça tudo o que mundo precisa, tento. Tento dar esse amor imenso que me chega e sobra, espalhando-o um pouco por toda a parte.

 

Tenho a alma lavada de bênçãos e dispenso caridade.

 

E o único favor que peço é que, se um dia eu quiser esse tipo de afeição, se um dia o pedir, me matem. Será, certamente, porque esgotei o amor que tenho para dar. E o meu papel na Terra estará, então, cumprido.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 26 de março de 2024

Este não é um texto sobre política!

 



Este não é um texto sobre política!

 


Desde pequena que não gosto da palavra “chega”. Chega sempre significou fim. Como quando a minha mãe, fazendo o perigoso uso dos meus dois nomes próprios, esbugalhava os olhos e me dizia “Marina Raquel, já chega!”. E lá se ia a brincadeira, a correria, a defesa acérrima sobre as 1001 razões pelas quais era bom comer gelado antes de jantar.

 

 Ou quando a professora, cansada da balbúrdia e dos papéis a voar pela sala, gritava: “Chega, meninos! Vão ficar aqui a fazer um ditado no intervalo”.

 

A palavra teria, penso eu, um toque mais positivo na canção entoada pela minha avó – que me fazia demasiadas vontades para que essa palavra lhe integrasse o discurso – quando me levava até à Canção de Lisboa. Mas, mesmo aí, “Ai chega, chega, chega, chega ó minha agulha” vinha seguido “afasta, afasta, afasta”, demonstrando também que essa perspetiva de “achego” não seria talvez a cereja no topo de nenhum bolo.

 

Mais tarde, a enunciação meio-tóxica, meio caótica do “para mim, chega”, ditaria o cortar do coração no momento em que ele ainda acreditava, no alvor da juventude, que qualquer apego se deveria transformar em eternidade. Assim, viria novamente a fazer-me desgostar da palavra.

 

Não é só de mim! O próprio dicionário define a “chega” como coloquial forma de repreensão, censura, descompostura... ou combate de bois… confesso que tive de pesquisar esta última e que, de repente, me vi transportada para um futuro próximo, numa assembleia perto de nós…

 

 

Talvez este seja um texto sobre política!

 

Sinto que a palavra chega, quando chega, traz consigo perigo. Traz consigo o fim de liberdades. Traz consigo caos. Traz consigo mágoa. Traz consigo o desfazer dos nós do caminho, onde se permitia que, livremente, as pessoas avançassem para o melhor de si mesmas.

 

Sinto que a palavra cria tensão entre as pessoas. Sinto que as pessoas, perante ela, limitadas pelas grilhetas invisíveis que impedem uma condigna vivência, optam por se atacar umas às outras, em vez de se unirem para atacar o inimigo comum.

 

Sinto que a palavra vai por aí, matando bondade, matando empatia, matando a compreensão e a beleza. Sinto que vai por aí a calar lábios que cedem. Mãos que cedem. Como poderiam ter cedido os meus lábios e as minhas mãos, quando me disseram “já chega de textos políticos”.

 

 

Este é um texto sobre política!

 

Afinal é!

 

É uma merda quando dizemos que uma coisa não é algo… e constatamos, depois, que o seja…

 

Como quando elementos da classe política nos dizem que não são fascistas… mas…

 

 

Agora pensem. É tão fácil mentir!

 

Eu disse. Este não é um texto sobre política. E sim, eu sabia que era!

 

A diferença fundamental? Eu não estou à frente de um país. Não tenho poder para definir as vossas vidas. Não quereria tê-lo, se pudesse.

 

Agora, no desconforto da mentira desvelada, imaginem como será quando ela é grave. Quando ela tem autoridade. Quando ela parte daqueles que respiram o desejo do poder. Quando, mesmo assim, nunca chega…


 Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de março de 2024

A história da grande cavalgada



Para o meu pai, 
o declamador de poemas equinos
 

Quatro horas e seis minutos. É este o tempo mínimo estimado pelo GPS para ir de Coimbra ao Algarve. Isto se considerarmos que o destino é Faro. Isto se considerarmos o caminho mais direto. Isto se não houver paragens. Isto em 2024.

 

Mas eu não nasci em 2024. Eu nasci em 1989. Fui criança nos anos 90. Então, num carro, a ida de Coimbra ao Algarve era interminável. Durava, em síntese, o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.

 

Era com um meio sorriso e depois de nos ter mandado pôr o cinto. Depois de ter lançado um quase impercetível olhar ao espelho retrovisor, para ver como estava a confusão do banco traseiro. Depois de ligar o carro e arrancar. Era por entre o ar meio amuado da minha irmã e as brincadeiras meio tolas do meu irmão, que ele lançava a pergunta: Querem ouvir o poema d’”A grande cavalgada”?

 

Ouvia-se o grito ao meu lado direito e ao meu lado esquerdo. Retumbante “não”. Ouvia-se o suspiro extenso da minha mãe, no lugar do pendura: “oh, por favor, outra vez não”. E eu, ali encaixada no meio de dois adolescentes, dizendo um “sim” inocente, que garantiria uma viagem inteira ao som de “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” em loop. De Coimbra ao Algarve.

 

 

Um salto da estrada para calçada, sempre que se atravessa. Um poema para cada ocasião. Uma piada desconexa para cada momento sério. Um “não” no começo de cada frase, incluindo aquelas nas quais o conteúdo diz “sim”. Um olhar por cima da haste, quando se usa óculos, sempre que se quer ver algo com maior pormenor. A capacidade de evasão completa no meio de contextos sociais, numa espécie de surdez da mente que tem mais o que fazer do que aturar os outros. A semi-obsessão – talvez sem “semi” – quando há um desafio qualquer de algo que queremos fazer. O embrenhamento nas tarefas. As mãos pequenas, com dedos grossos e curtos. E a culinária. E as histórias contadas e repetidas e contadas outra vez. E a pintura. E a maneira absolutamente incompreensível como poderíamos declamar “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” durante 450 quilómetros de estrada, encontrando algum tipo de prazer mórbido na irritação dos outros. Eu tenho muito em comum com o declamador das aventuras equinas.

 


São 200 quilómetros possíveis de fazer em pouco mais de duas horas, num carro que não tem bancos traseiros. E vidas que impedem a travessia desse mar de alcatrão tantas vezes quantas gostaríamos. São dias que passam sem ouvir a voz que dizia “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]”. São regressos que se acomodam, entre abraços até ao osso e resmunguice nas horas das refeições. É o tempo a ser o tempo, roubando tempo, como se ele não fizesse falta. E são dias em que a recordação pesa porque a presença seria mais importante do que a memória. Porque sabemos que a vida é frágil. Porque tememos que fique apenas memória onde houve presença.

 

Hoje, é Dia do Pai. E poderia escrever o poema da grande cavalgada. Preenchendo o som do trote e do galope com a história do cavaleiro. O cavaleiro que ia e voltava para África. Que voltava trazendo um presente e chocolates belgas. Que foi rede de segurança nas más decisões, para que não se transformassem em mau futuro. Sobre o poeta. Sobre o pintor. Sobre o pescador. Sobre o homem engenhoso e hábil. Sobre o cavaleiro que conduzia, declamando poemas equestres que me faziam rir durante 5 minutos e arrepender durante quase 5 horas.

 

 

Hoje, não posso fazer a jornada que me leva ao cavaleiro. Mas guardo, do poema repetitivo, a voz que sorria. Foi Proust quem o disse: “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos”. Gosto dos olhos com os quais agora vejo essas viagens. Descubro muitos universos de paciência nessa brincadeira que nos tirava a paciência. Descubro muita dedicação nessa forma de implicação jocosa.

 

E, admito, descubro uma forma perfeita de poder justificar-me com genética sempre que me acusam de ser repetitiva e algo irritante…

 

Mas o ponto não é esse! O ponto é que houve um cavaleiro. E o GPS diz que o tempo mínimo estimado para ir de Coimbra ao Algarve é de quatro horas e seis minutos. Hoje. Nos anos 90 não. Nos anos 90 durava o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.

 

E… shhhh… pode não parecer, mas era um poema de amor.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 12 de março de 2024

Tu não fazes ideia

 

Lágrima (Pintura a Óleo - Marina Ferraz)

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é. Caminhares, ferida, por entre destroços, a levantar pedaços de concreto, no concreto da mágoa. Teres lágrimas secas a correr no rosto e sede. Encontrares o teu filho desfeito. Veres-lhe as entranhas destacadas. Viveres três mortes numa só, que nunca um filho morre sem que uma mãe morra e sem que a esperança morra também. Implorares a um qualquer Deus, que não importam panteões nesses momentos. Receberes, em resposta, o som de outra explosão. E seguires, porque os pés te arrastam, à espera de seres o próximo cadáver, para que a vida não doa tanto.

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é teres a aliança do casamento a apertar a garganta. As mãos de alguém que te jurou amor. Que comprova o amor em marcas, hematomas no mapa do teu corpo. Acordares com os movimentos possessivos dele, sobre ti. Não te moveres por medo. Ouvires as frases mais duras, as que os filmes censuram e calares. Teres queimaduras e costelas partidas. Sorrires na rua e dizeres que caíste. Que desastrada!

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é estares grávida. Fugires da guerra e seres apanhada na fronteira. Teres o corpo rasgado por soldados cruéis. Armas enfiadas em ti, disparadas dentro de ti, ceifando duas vidas simultâneas no som do riso.

 

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é seres vendida aos 8 anos. Ouvires que o teu nascimento foi punição. Seres vendida, com as tuas irmãs, para que os teus pais e irmãos possam viver. Dares por ti num quarto minúsculo, com grades nas janelas. Veres entrar homens pela porta, para que pagues a dívida da tua estadia e todo o dinheiro investido em ti. Pagares essa dívida toda a vida, até ao gesto de violência que ponha fim à tortura.

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é seres criança e levarem-te para um espaço ritual, cortarem o teu clitóris a sangue frio. Sangrares e sobreviveres, se os Deuses quiserem. Mereceres, na sobrevivência destinada pelos Deuses, o casamento. Seres objeto de depósito do prazer de alguém, parideira dos frutos desse embate corpo a corpo. E só sofreres.

 

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é pores as chaves entre os dedos e, mesmo assim, não teres chances contra os agressores que povoam a rua. Ires, culpada de todos os males do mundo, pelo mal iluminado do passeio, ouvindo o coração a bater no peito. Teres o encontro fortuito com um grupo embebido de si próprio. Teres as roupas rasgadas e o corpo usado até à exaustão de gentes sem nome. Arrastares-te para casa e escolheres entre o silêncio e as acusações. Puta. O que esperavas, afinal, a essa hora?

 

Tu não fazes ideia.

 

Eu também não faço.

 

Sou feliz porque não sei, não entendo, não consigo imaginar o que sentem essas mulheres. Que privilégio este de ser mulher ocidental, amada, protegida por um qualquer anjo invisível. Que privilégio este de nunca ter sido vítima da guerra, da mutilação, do tráfico, da violação. Que privilégio este de ter direito ao prazer, de ter direito à palavra.

 

Mas também sou feliz porque não faço ideia. E porque, não fazendo ideia, não sou indiferente à ideia de quem faz. E porque posso escrever este texto, destinado a quem, como eu, não faz ideia.

 

Então, este texto não é sobre fazer ideia do que os outros passam. É sobre a necessidade de entendimento sobre o nosso privilégio – do qual muitas vezes, por mera desatenção, também não fazemos ideia – e de saber o papel e a responsabilidade de quem tem voz.

 

Não faço ideia de como seja não ter voz. Aproveito a minha para falar. Não falo porque sei. Falo porque posso. E, se ninguém falar, nada mudará. Jamais.

 

Tu não fazes ideia.

 

Eu não faço ideia.

 

Alguém, algures, sabe exatamente o que eu quero dizer…

 

Não tu.

 

De ti, espero – com a maior honestidade – que nunca faças ideia.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de março de 2024

Portugal importa



Portugal importa. Portugal importa! Estamos todos de acordo. Certo?

Portugal importa. Importa mais hoje do que importava há meio século. Importa tanto que a balança comercial está a negativo há mais de 3 décadas. Importa bens. Importa serviços. Máquinas, partes, aparelhos, eletrónicos, alimentação, produtos acabados, talentos…

Importa de Espanha, da Alemanha, de França, de Itália, da Holanda… importa.

 

Dos talentos, destacam-se os profissionais qualificados. Abençoados sejam os que vêm, sem saberem ao que vêm… Falamos de médicos, engenheiros, de ladrilhadores, de técnicos. Toda a gente sabe que há falta de mão-de-obra no país. A mão-de-obra no país já foi de formas diretas e subtis convidada a sair várias vezes. Por gente que nega ter dito o que disse, que sabemos todos que a amnésia é um problema grave e o Alzheimer é uma doença complexa, cujos números permanecem em crescimento... e que ataca particularmente a classe política nacional.

 

Portugal importa. Vemos, nos festivais espalhados pelo país, como importa. Importa arte. E faz muito bem em importar! Devia valorizar de igual forma a arte que se faz por cá, e que só interessa quando convém. Antes que os artistas que se importam com a forma como são tratados façam como nomes incontornáveis da cultura nacional, como Maria João Pires, que é atualmente – desde a renúncia (à qual dramaticamente chamam perda) da nacionalidade portuguesa – uma fabulosa e incontornável pianista brasileira.

 

Portugal importa. E, além de importar, Portugal vende-se. Vinhas infinitas, laranjais algarvios, olivais magníficos… vendem-se para valorizar a economia. E vendido fica o produto-mãe que origina os bens processados que Portugal importa depois. Porque Portugal importa. Mas não se importa o suficiente para apoiar o pequeno agricultor que produz. Não se importa a ponto de tornar sustentável o cuidado com os terrenos e a produção nacional.

 

Valha-nos o fado. Não há registo de que se importem fadistas. Também não há registo de que se importem muito com eles, exceto quando algum prémio de maior impacto é atribuído no estrangeiro. Ah… sim… porque Portugal também importa as opiniões que não tem, dando sucessivamente valor apenas ao que alguém de fora já valorizou!

 

Numa coisa, eu concordo com os nossos políticos: Portugal importa. E ninguém nega que as importações sejam importantes para as dinâmicas comerciais e o desenvolvimento económico. Mas porra. Portugal importa. Muito. Seria melhor, talvez, que se importasse.

 

  Marina Ferraz




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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Regras básicas para atravessar a estrada

 



1995

 

Olha para a esquerda e para a direita antes de atravessar.

 Palavras da minha mãe, na proximidade da passadeira.

 Mesmo tendo prioridade, olha sempre para a esquerda e para a direita. Andam malucos por aí…

 As outras pessoas atravessavam. Sem olhar. E ela acrescentava:

 Tu não és os outros. Tem cuidado! Olha para a esquerda e para a direita.

 A esquerda e a direita não eram caminho. Eram só as direções de onde vinham as ameaças. Aquelas que podiam impedir-nos de chegar ao outro lado, para seguir caminho.

  

2024

 

Estou parada na beira da estrada, com a Liberdade do outro lado da rua.

 Ao meu redor há gente. Vou vendo as pessoas. As que só olham para a direita. As que só olham para a esquerda. As que olham para os dois lados e criticam um deles, defendendo o outro. Pessoas que entram estrada a dentro e caminham para esquerda. Pessoas que entram estrada a dentro e caminham para direita. Que vão pelo meio da estrada. Ignorando o trânsito. À espera de descobrirem sei lá eu o quê. Próximas de descobrirem como fica a palavra SCANIA impressa ao contrário na testa.

Pessoas convertidas pela luz sagrada dos leds da TV defendem partidos como se fossem clubes de futebol. Olham para a direita se ela diz o que querem ouvir. Olham para a esquerda se lhes dizem que é lá que anda a melhor relação de imobilidade-rendimento.

 Do outro lado da estrada, está a minha Liberdade. Também está lá a equidade. A racionalidade. A cultura. A arte. O equilíbrio. O entendimento. A justiça. A estabilidade. O futuro.

 As pessoas atiram-se para o meio da estrada, caminhando para a esquerda e a direita. Ou andando em círculos como as moscas quando entram em casa… e que supostamente também estão à procura de uma saída.

 Mergulho nas ideologias e tento encontrá-las nos discursos. Mas o ronco do motor dos camiões de transporte de adubo da direita, com o seu fumo poluente e aroma execrável, é apenas superficialmente menos tolerável do que o insuportável acelerador a fundo nos Ferraris da esquerda (aos quais trocam o cavalinho empinado por um VW durante o tempo de campanha, para que pareçam mais comunitários e comedidos).

 E há as pessoas. A andarem na direção da direita. E há as pessoas. A andarem na direção da esquerda. Como se as mães nunca lhes tivessem ensinado a traçar perpendiculares à estrada, atravessando com cuidado, para irem na direção que querem e não na direção que lhes dizem para quererem.

 Eu não sou os outros.

 Olho para a esquerda e para a direita antes de atravessar. Que andam malucos por aí… Malucos à esquerda. Malucos à direita. Ocasionais ditadorzinhos aqui e ali.

 Tenho os olhos pousados no que quero. A Liberdade. A equidade. A racionalidade. A cultura. A arte. O equilíbrio. O entendimento. A justiça. A estabilidade. O futuro.

 E olho para um lado e para o outro. Mas toda a gente acha que tem prioridade. Então, contra todos os conselhos maternos, vou atravessando assim mesmo.

 À espera de descobrir se vai ser a direita ou a esquerda a atropelar-me desta vez…

 

  Marina Ferraz




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terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Textos fofinhos

 

Fotografia de João Lamas

Eu quero escrever textos fofinhos. Gentis. Mas é difícil conectar-me com pessoas desconectadas, usando os ardis populistas que critico nas vozes do poder. Penso, depois de me dar demais, que não nasci para me vender. Sempre preferi sentar-me na mesa da falta e partilhar o pão do que comer acepipes com caviar em bandejas de prata. E é justamente por isso que serei sempre uma voz que não gera preocupação às estruturas soberanas. As minhas palavras são flechas. Certeiras. Duras. Cáusticas. Mas que acertam sempre nos muros de pedra e diamante que me recuso a transpor. Não passo de uma espécie de idealista inútil, aos gritos numa sala cheia de surdos. Escrevo este texto. E não sei para quem. E não sei para quê.

 

Posso dizer que, nas mesas onde me sentei, já comi entradas de dor com quem tem fome. Posso dizer que essas mesas não eram mesas. Às vezes, elas eram chão, calçada imunda, lado a lado com pessoas sem-abrigo, que me agarravam as mãos como se houvesse algo de divino no meu privilégio servil. Às vezes, essas mesas foram de gente que tinha perdido gente… e até tinham pratos cheios, mas cadeiras vazias que tiravam a fome do estômago revolto, na ideia da perda. Às vezes, foram camas de hospital, de lágrimas engolidas, implorando para que ao menos uma garfada da descuidada ração passasse os limites dos lábios.

 

A maioria das pessoas não sabe que eu podia estar do outro lado. Por duas ou três vezes na vida ponderei estar. Do lado de quem escreve os textos fofinhos. Com dias de festa ininterrupta e o som acautelador do dinheiro a cair levemente nas contas. E por duas ou três vezes ponderei se não devia ir. Para esse lado aparentemente sadio. Viver como vive a metade que não é metade mas 1%. Penso que teria ido. Que irei. Quando estar lá significar poder tirar a fome a quem a tem, criar abrigo, abrir espaço de mudança. Só que não fui. Nunca fui. Porque o preço da passagem foi sempre a minha alma. Porque o preço da passagem era fechar os olhos. Tapar os ouvidos. Ser um dos muitos surdos dessa sala onde continuo aos gritos. Idiota ineficaz. A propagar as ideias gastas que chegam sempre e só até quem não pode mudar nada.

 

Eu quero muito escrever textos fofinhos. Mas assusta-me a ideia de que, se começar a pintar arco-íris na merda, os lúcidos comecem a ver purpurinas onde há a poeira das bombas. Sigo, pelas mesmas ruas onde os cartazes exploram a ignorância impingida em anos e anos de educação frágil, sem saber se condeno ou agradeço a quem me ensinou a pensar além dos manuais escolares.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Como os que se pedem na primária. Sobre flores e jardins. Mas, meus amigos, nessa altura eu já matava rosas que atacavam malmequeres com sumptuosa vaidade. Nessa altura eu já atirava setas contra muros de pedra. Nessa altura eu já me sentava no lugar de quem não tem lugar. E já gritava nas salas dos surdos.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Em vez disso escrevo textos fracassados. Talvez um dia escreva um texto fofinho. Só para passar o muro num Cavalo de Tróia só meu, poupando a alma. E atacar, de dentro para fora, essa terra de parasitas vazios, que suga a vida dos outros.

 

Escrevo este texto. Não sei para quem. E não sei para quê. E preferia escrever textos fofinhos: Era uma vez um povo que passou o muro, disposto a lutar, a qualquer preço, pela justiça, pela equidade, pela Liberdade, pelo todo…

 

Sim. Um dia quero escrever textos fofinhos.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Na falta de inspiração para títulos

 


Ando desinspirada. Não sei se é da chuva. Não sei se é do nevoeiro. Não sei se é reflexo do mês incrivelmente longo de Janeiro. Não sei se é dos conteúdos que continuam a cair-me no colo e que quero ignorar, mas não consigo. Não sei do que é! Sei que tenho muito para dizer. Demasiado. E não faço ideia de como dizê-lo sem parecer o disco riscado do costume, a dar palmadinhas na mão das pessoas como quem diz “ai, ai… olha que ser fascista faz mal à Liberdade. Temos de ser bons meninos. E de pensar nos outros.”

 

Quero escrever. Mas escrever é um ato de rebeldia. As palavras são indisciplinadas. Fazem motim nas frases dos meus textos. São tão violentas que, por vezes, preciso de controlar o dedo – o indicador da mão direita, como não podia deixar de ser - para não censurar os sentimentos que teclei antes de pensar, e que ficaram à esquerda do cursor que pisca, à espera que lhe diga qual a letra seguinte.

 

O que tenho para dizer não nasce em mim. Nasce em publicações e em vídeos repugnantes, de seres humanos que não merecem a designação, e que acordam o conservadorismo exacerbado com palavras de ódio agarradas ao politicamente correto. Dou por mim a odiar os conteúdos, os vídeos e as pessoinhas que os fazem. E o conservadorismo. E o politicamente correto, também. Mas eu não sou pessoa de ódios. E dói-me no peito quando percebo que não o é. Nem ódio, nem raiva, nem rancor. É medo… Onde vamos? Pergunto. Não há resposta. E tenho medo desse silêncio.

 

Palavras que não merecem ser repetidas – mas que é preciso repetir, para que se saibam - informavam os portugueses, há dias, de que as crianças estão a ser subvertidas pelos conteúdos sexualizados das escolas e que se transformam em “nem homens, nem mulheres, uma coisa estranha que não sabemos bem o que é”. Dou por mim a imaginar crianças que me saíssem do corpo. Crianças que poderiam ser quem fossem, porque não creio que julgasse identidades ou sexualidades ou escolhas de vida. Mas, depois, lembro-me de que alguém pariu aquela besta. E dá medo até disso. De parir. Fascistas. Mais fascistas, num mundo onde os media anunciam que 19% das intenções de voto já são neste tipo de pensamento-embalagem, que fica dentro da caixinha mais pequena de todas as micro-caixas.

 

Ando desinspirada. Peço aos meus seguidores de Instagram que me deem títulos. Uso-os. Como usei este, de alguém que certeiramente identificou o problema que motivou o meu pedido. Falta-me inspiração para um título. Não porque me falte tema. Mas porque sei que erodiria o teclado se começasse a falar, sem foco, sem direção, sem limite, de tudo o que me perturba.

 

Os debates políticos levam entre 25 e 30 minutos. Os comentários políticos e os comentários aos comentários políticos levam horas e horas. Se eu tivesse tempo de antena para falar de tudo o que me incomoda, a televisão viraria peça de museu e até o streaming já teria passado à história quando eu me calasse.

 

Se tenho um título para isto? Não tenho. O que se está a passar é inominável.

 

E assim fica a habitual palmadinha na mão.  “Ai, ai… olha que ser fascista faz mal à Liberdade.”. Mas com um título fixe. Que não é meu.


Marina Ferraz




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