terça-feira, 21 de maio de 2019

Adio a morte




Adio assim a morte. Com poemas. Adio. A morte. Como se dissesse ao corpo. Espera. Dá lá mais dois batimentos cardíacos. E espera mais um bocadinho. Que eu ainda tenho um romance para acabar.

Adio a morte a olhar para as nossas fotografias antigas. Adio. A morte. Digo-lhe. Vem cá, olha. E enquanto vemos as fotografias, ela distrai-se e esquece-se de que tem de me levar. Passo-lhe os álbuns para as mãos ossudas. É engraçado ver a morte a folhear páginas de amor, com uma expressão esbugalhada nos olhos que não tem. E fingindo que não chora sem lágrimas. Ao lembrar que nos matou antes de me matar. E que está a esquecer-se de me matar porque nos matou.

Adio a morte. Uma espécie de penitência. Obrigo-me a adiar a morte. E quão estranho é que se adie o que se deseja. Mas adio. De pés no mar. Adio a morte, enquanto ela continua a deambular pelo meu passado, sem perceber muito bem como pôde matar-me antes de me parar o coração.

E ela diz-me. Não estás viva. Não estou. Não estás viva mas respiras. Respiro. Vem. Não vou.

E continuamos nesta discussão porque eu não posso morrer. Explico que essa é a minha condenação. E que a condição é esta. Atiro-me aos seus braços num segundo. Mas só depois. Só depois de terminar esse romance que ainda quero escrever. E só quando os olhos cansados e vividos, negros e ternos de uma anciã não forem chorar lágrimas por mim plantadas.

Adio assim a morte. Com amor. Adio. A morte. Como se dissesse aos dias que passam que o calendário ainda tem mais tormentas para me infligir. Olha: ainda não passei fome. Olha: ainda não fui à guerra. Olha: ainda não rasguei a pele nos sulfatos de ansiedade das escarpas poentes.

Nunca ninguém enganou a morte. E, por isso, ela não se apercebe dos enganos na minha voz e continua. Continua a folhear o álbum da história que eu conto em palavras no romance. Cada vez que termina, recomeça, à procura do que ficou por matar.

E ela diz-me. O amor está vivo. Está. Está vivo mas acabou. Acabou. Vem. Não posso.

De tão infrutífera, esta discussão ganha teias de aranha. À noite, cansadas de discutir, eu encosto a cabeça no ombro da morte e vemos juntas passar esse filme sobre tudo o que a minha vida podia ter sido e não foi.

Há lágrimas nos meus olhos e ar nos dela. Eu assoo o nariz e ela relembra o nariz que não tem. Esconde o rosto no manto e rimos as duas. Porque somos eternamente fãs uma da outra e sabemos que só nos temos uma à outra nestas noites frias, onde as fotografias se esquecem e os astros se alinham.

Ela diz-me. Amo-te. Também te amo. Este amor não é o teu maior amor. Talvez seja. Vem. Não, ainda não.

Adio a morte. Com um desprendimento pela vida. E coloco as mãos ao redor de canetas que são histórias e sonhos. Porque sinto culpa no peito, algures entre as costelas e os pulmões. O meu coração é rasgado e trucidado por metralhadoras sem balas. Palavras. Bang. Palavras e mais palavras. Rasgões que também são fotografias de olhos claros.

Ela diz-me. Um dia vens. Vou. Agora? Não. Quando? Quando o romance tiver terminado e a fotografia estiver baça. Quando a esperança se for? Já foi.

Ela parece triste. Triste por ter morto amores e esperanças. E eu abraço-a. Ela não está habituada a abraços. E foge, deixando aberta essa porta feita de batimentos cardíacos.

É assim que eu adio a morte. Amando-a. E convidando-a para que se sente no sofá e sinta. Plenamente. O peso de tudo o que já matou em mim.

A morte vem e volta a partir. Adio a morte. Adio-a, mostrando que a quero. E ela quer que a queira. Mas está a ter dificuldade em encontrar a parte de mim que falta levar…






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2 comentários:

  1. O meu favorito do ano! Adoro-o! Adoro-a! Adoro-te!

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  2. Lindo texto, repleto tanto de beleza como de tristeza. Obrigado pela partilha.

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