terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Todos os meus músculos

   
Fotografia de Ricardo Torb


  Todos os meus músculos chamam por ti. Todos. Tensos, cheios de emoções. Todos os meus músculos chamam por ti. E eu tapo o rosto. Fecho os olhos. Finjo. Finjo a realidade. Essa que sabemos – tu e eu – sobre todos os meus músculos. Peças de corpo intransigentes e de vontade própria. Todos os meus músculos chamam por ti.

     Tento justificar com a música que toca a reação incansável dos músculos que enrijecem. Digo. É porque a música mexe comigo. E, algures, até a voz da cantora soluça, num riso calado. Como se… Até o guitarrista ou o baixista falham um acorde. Como se… E é improvável que o façam, porque é uma gravação a passar na rádio. Mas fazem isso. Apenas para se rirem de mim e da minha tentativa de justificar porque é que os olhos estão brilhantes e os músculos enrijeceram. 

     Claro que o corpo é poema. E é muito simples justificar qualquer coisa literariamente. Porque a literatura, como se sabe, é mentira. E, se nela reside desejo ou dor; vontade ou paixão, pode ser apenas para colorir as páginas. O poema é arte carnal, visceral. Vem das entranhas. E explica-se com facilidade que os músculos reajam a mentiras cáusticas. Não é por ti. É isto que o poema diz. Mas depressa se lança em semânticas raras, onde se coloca em causa a mentira da verdade e a verdade da mentira, até que a confusão é tanta, que sobra só mesmo corpo sem poema no próprio corpo do poema.

     Ser poeta é isso. Osso e sangue. E patologias. Muitas. Do foro psicológico, na sua maioria. Todas amalgamadas em pedaços inconcretos de estrofe. Misturadas em frases que ornamentam folhas. E, principalmente, em palavras que nunca chegam a tomar forma em lugar nenhum, senão entre sinais bioelétricos dentro da invisibilidade do que fica atrás dos olhos que cegam por ver dentro.

     E os músculos continuam tensos. Quentes. Tensos. Estirados. Desde o rosto, onde os olhos se fecham para te ver. Ao coração, que acelera para te sentir. À barriga, que se comprime para tentar acalmar as borboletas e todos os outros animais de zoo que insistes em colocar lá dentro sempre que te penso. E os músculos continuam tensos. Quentes. Tensos. Estirados. Desde as maçãs do rosto, que enrubescem. Aos braços que se agarram um ao outro para evitarem lançar-se na busca do impossível. Às costas, de asas interinas, que não rasgam a carne porque, se eu voasse, não resistiria em espreitar pela tua janela, apenas para, num vislumbre, saciar o meu indiscreto desejo de ti.

     Deixo-me ser poesia. Dessa que é visceral e totalmente louca. Detesto! Detesto as minhas rimas imperfeitas! Faltas-me tu para que a métrica bata certo. E eu continuo a mudar mobiliário orgânico da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, embatendo em duas ou três teorias antifascistas, antes de compreender que o problema não está na disposição dos órgãos mas no vazio das paredes.

     Sinto-me só. Custa muito admitir que me sinto só. Principalmente quando a pele nua tem músculos tensos. E eu entendo a sua linguagem e sei. Sei que todos os meus músculos chamam por ti.

     Todos.

     Mas principalmente o meu coração.






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