terça-feira, 7 de abril de 2020

Eternos


Fotografia: Miguel Pião


Eternos. Eles eram eternos. Tinham colocado aliança no dedo. Mas nem era por isso. Eles eram eternos, mesmo antes de chover arroz nas suas cabeças. Mesmo antes de Deus o aceitar. Porque eles nunca tinham precisado da aprovação de nenhum Deus. O amor deles era Deus. E a única religião de que precisavam.

Lembro-me dele sem ela. Rapaz de cabeça no ar. Que não sabia data nenhuma de cor. E não ligava a pormenores. E não queria saber que partido ganhara as eleições. E lembro-me dele a dizer que a vira pela primeira vez no dia dois de Setembro. E a dizer que notara, no dia dezasseis, que ela tinha feito nuances no cabelo, que agora dançava ao vento, acobreado. E de me dizer que a direita ia ganhar força com os acontecimentos da política atual e como isso seria mau para a liberdade dela, que era artista, selvagem e indomável.

Eternos. Eles tinham-se ligado pela primeira vez, sem falar. Porque a música estava demasiado alta e eles já sabiam o nome um do outro. E a tesão nasce no fundo dos copos do bar. Dançaram juntos. Ao longe, vi o trocar de um primeiro beijo de língua. Foi assim que se uniram pela primeira vez. Pelas línguas afiadas com as quais, mais tarde, se renderiam às ruas, gritando pelos Direitos Humanos e pelos direitos dos Não Humanos.

Lembro-me dela sem ele. Ativista de coração rijo. Dizendo que o amor era o cartaz que erguia em nome da liberdade de ser. Feminista. Vegan. Amante de animais e da Natureza que honrava. Senhora do seu nariz. E o amor que se foda. E lembro-me dela. A dizer que ele era o centro de um universo só seu. E que, um dia, era ao lado dele que queria construir um mundo melhor. E que, ao lado dele, queria criar crianças melhores, que soubessem o lugar de fala de quem teve a sorte de nascer no hemisfério do privilégio e o usassem bem.

Eternos. Eles eram eternos. Ambos desconectados das leis universais com o desejo de se encontrarem no desencanto e de o tornarem brioso outra vez.

A eternidade deles era tanta que ninguém, jamais, convidou ambos para um evento. Era consensual: se um vinha, o outro estava. Eles eram o membro que completava o corpo inacabado do outro. Amavam-se tanto que nunca cabia um átomo entre eles.

Crianças rasgaram-lhe a carne. E eram o rosto de ambos cantado ao sol. Eternos. Eles eram eternos no primeiro choro dessas crianças. E, por elas, diziam, o mundo seria melhor.

Eternos. Eles eram eternos. Fazendo um mundo melhor, filho a filho. E, de repente, já havia cem manifestações, trinta abaixos assinados e três filhos para o provar. Eles eram eternos.

Mas, um dia, ela confessou. Estou farta. E, um dia, ele disse. Deve haver algo melhor à minha espera. E, um dia, a eternidade deles morreu-me à frente dos olhos, a par com a esperança, já tão escassa, desse amor de conto de fadas.

Disse-lhe que esperava que ela encontrasse melhor. Disse-lhe que esperava que ele encontrasse o que procurava. E fiquei triste pela inevitabilidade da morte do eterno.

Eles eram eternos. Hoje, quando há um evento, é preciso convidar os dois. Trocam palavras cordiais e falam pelos filhos.

Ela não sabe em que dia ele a conheceu e também já não sai à rua com cartazes. E ele, de repente, encontra no fundo do copo de gin uma espécie de comunhão com o futuro que despreza.

Olho para eles. Eternos. Não foi o amor que morreu. Foram eles.






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1 comentário:

  1. Fuck!!!
    Tira o fôlego!
    Parabéns é um texto divinal!
    Só isso...

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