terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Réguas e níveis

 


 

Réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. A conquista. O quadro está direito. Mas não basta que esteja direito. Havemos, entendam, de o acertar novamente. Sempre que passarmos por ele. Até que a solidez da sua orientação deixe orgulhosos o chão e o teto, com as linhas paralelas. As linhas paralelas estão na moda. É o que dizem.

 

Cabe-me dizer. Esta não sou eu. Os únicos pregos que preguei na vida foram batidos a martelo na tábua velha e meio comida que o meu avô tinha na loja. A loja era uma garagem-adega-pau-para-todo-o-serviço. E o meu avô, que gostava de me fazer as vontades, alertava só. Cuidado com os dedos. E deixava-me em paz, para terror da minha mãe, com a tábua e os pregos.

Nas minhas paredes há poucos quadros. Dos que foram pendurados, existem aqueles que beberam do perfeccionismo do meu pai. Postos com réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. Tudo isso (e mais um par de botas...). Depois há aqueles que colei com fita dupla, sem muito cuidado. E aquele velho quadro de cortiça, com apliques que insistem em cair, que já arrancou mais estuque do que serviu função.

Não me importa muito que os quadros estejam direitos. Não é que o TOC não me afete às vezes, como a toda a gente. Mas sou mais daquelas que gosta de garantir dez vezes que trancou a porta, fechou o gás do fogão e desligou as luzes. Felizmente, nunca liguei muito a esses paralelos e perpendiculares das linhas cimeiras e laterais dos quadros. E ainda bem, porque a casa, como eu, parece gostar de ir torta pelos caminhos da vida e, juro, ou o chão não é direito, ou o teto não é. Parece uma empreitada, eu sei. Mas o empreiteiro foi o primeiro a dizer-mo, quando tirava medidas durante as obras intermináveis: isto não é direito.

As linhas meio tortas da casa são espelho. Creio que algo no meu cérebro se apercebeu disso quando entrou pela porta a primeira vez. É mesmo esta. Lembro-me de pensar, apesar da mancha de humidade no quarto gritar que, provavelmente, era muito má ideia. É mesmo esta. Acho que moro numa casa que é minha além do papel. Temos ambas problemas com a medida que une as pontas e não sabemos muito bem para que lado nos tende a infinitude. Temos ambas a noção de que, de qualquer forma, ninguém nos verá além dos 70 metros quadrados e do 1,63 metros de altura. Para gente tão preocupada com o alinhamento das coisas, deixem-me que vos diga que acho as pessoas extremamente superficiais quando se trata de entender o alinhamento da alma.

Não gosto muito do que é – ou tem de ser – certo. Quadros colados com fita dupla e como calha. Dias a correrem como os Deuses quiserem. Bolos feitos a olho, como me ensinou a minha mãe, mulher sábia e também não muito alinhada com a sociedade de hoje. Não gosto dessa solidez do certo, que é tão procurada e dignificada. Gosto do que nasce dos pequenos incertos e das nuvens nos dias de sol, que nunca têm uma forma muito concreta, mas vão andando, ao ritmo do vento que vier.

 

Dizem-me frequentemente que a pintura deve ser assim. E que, depois de enquadrada na moldura do que é socialmente aceite, deve ser pendurada com réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. Até à perfeição.

Eu sou o quadro de cortiça, que já caiu mil vezes e arrancou o estuque da parede. Quem nasce torto, dizem, tarde ou nunca se endireita. Mas eu não faço questão de direitas. Gosto de coisas tortas e irregulares. Sou mais fã, entendam, de direitos, mas com isso parece que o mundo se preocupa cada vez menos (ou só da boca para fora).

Não quero o que é sólido, reto, feito a peso e medida. Vou continuar a ter paredes com o estuque arrancado e bolos que ficam densos demais. Paciência.

Há quem goste da solidez do que é certo, esquecendo que quem muito se agarra ao chão passa a vida vergado. Com licença. Eu vou com as nuvens.


  Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Tu escreves torto por linhas direitas. Ao contrário do que se diz de uma divindade abstracta ;)

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