terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

163 minutos ou a pseudo-psicoterapia de bolso

 

Fotografia de Raul Pinto

  

Redes de malha fina. É isso que são. E vamos todos de arrasto na pseudo-psicoterapia de bolso. Porque o smartphone cabe no bolso. Mas nunca está nele. Está sempre na mão. Debaixo de dedos hiperativos. Saltando do simples para o simples. Evitando, assim, o complexo da vida fora do pequeno-ecrã.

 

O simples. Deus primordial da era do 0 e do 1. Gente simples. Imagem simples. Frase simples. Texto simples. Mas é curioso. Cada vez mais sinto que a simplicidade evidente das frases que preenchem essas redes é muito complexa. Uma máquina digital bem oleada de lugares comuns e clichés. Uma espécie de máquina de fazer acéfalos. Não se enganem. Não aponto dedos. Ou aponto, ao ecrã, dando-me conta de que, de repente, o acéfalo sou eu. No olhar que corre o feed. Que se identifica com uma ou outra citação. E que mergulha na esmeralda que, neste caso, é o discernimento perdido.

 

Paro. Para pensar. Se estou a pensar.

Surpresa das surpresas: às vezes não estou!

 

 

Hoje cruzei-me com esta citação – seja ela de quem for, já que na web tudo é de todos e de ninguém e se atribuem alusões a Buda, a Gandhi, a Einstein e a Marilyn Monroe de coisas que estou quase certa que eles nunca chegaram a pensar, quanto mais a dizer – “não corra atrás, quem ama fica”. Esta frase – aparentemente inocente – é irmã de outras que li numa só corrida de olhar pelo feed – “vai embora se ele não está a tentar, um homem que se importa tenta” ou a minha favorita “não é quem te chama de princesa, é quem te trata como uma”. Minha nossa! Parece simples. Parece evidente. Por momentos, se desligarmos um ou dois neurónios funcionais, até é verdade.

 

Mas paramos. Para pensar. Se estamos a pensar. Estamos?

 

Primeiro: muitas vezes quem ama, vai embora. E muitas vezes vai embora porque ama. Amar o outro é, muitas vezes, saber que não estar é o que dará ao outro o espaço para feliz. Muitas vezes quem ama vai embora. E muitas vezes vai embora porque estar magoa, porque existe violência, porque às vezes a escolha é sobreviver. Sim... quem ama vai embora. E concordo com a parte do não correr atrás, porque, vocês sabem, o impacto no chão faz mal às costas e o impacto na alma faz mal ao ego. Mas porra. Quem ama pode ir embora. E isso não significa que não ame.

 

Segundo: o segredo que ninguém nos conta sobre a vida é que ela não deve ser um martírio. Sabemos que os dias nos exigem esforços. Sair da cama quando o despertador toca. Trabalhar. Cumprir aquelas tarefas de rotina. Roupa. Louça. Limpar a casa. Cozinhar. Aguentar as filas de trânsito e todos os extraordinários seres que encontraram a carta de condução como brinde dos pacotes de cereais. Mas a amizade, o amor, as relações familiares... esse é o conforto. O abraço no final do dia. O ouvido que se propõe a escutar as reclamações sobre o idiota que quase nos fez ter um acidente na curva da IC19 ao pé do Palácio de Queluz ou do patrão que implicou connosco à frente do escritório inteiro. O braço sobre o ombro enquanto vemos o filme. A mão que limpa a lágrima que insiste em cair quando algo corre mal. A gente que sorri quando sopramos as velas do aniversário. As pessoas que nos chamam à razão quando estamos a exagerar ou a ver as coisas pelo avesso, porque não, nem tudo são rosas... Mas mesmo quando não é simples, não é um esforço e não implica que se tente. Por isso, quando nos dizem “vai embora se ele não está a tentar, um homem que se importa tenta”, pode ser hora de ir sim... mas porque não devia ser uma questão de tentativa...

 

Por fim: a princesa. A princesa que anda dois passos atrás do companheiro, que não usa decotes nem saias acima do joelho, que sorri e acena. Se chamarem-nos “princesas” já acarreta uma dose provinciana de estereótipos, tratarem-nos como uma então...

 

Quando paramos. Para pensar. Se estamos a pensar. O que vemos? Redes de malha fina. Pseudo-psicoterapia de bolso. Dedos hiperativos. Falácias. Lugares comuns e clichés. Uma espécie de máquina de fazer acéfalos.

 

Na época das corridas desenfreadas, encontramos 163 minutos, em média, por dia, para estar presos a essa realidade de ilusões. Podem verificar. É o que dizem as pesquisas. 163 minutos nos quais nos entram, olhos adentro, centenas de frases. Juro que estas três apareceram a correr o feed em menos de 2 minutos. Quantas cabem em 163 minutos? O que estamos a aprender? E quantos minutos paramos para pensar sobre tudo isto?

 

Não se enganem. Não aponto dedos. A prova é esta. Este texto. Publicado num blog e promovido na rede fina que nos leva de arrastão e que vou promover mais abaixo. Mas, vocês sabem, como dizia Viriato, esse eterno herói das guerras lusitanas, “larguem as redes sociais e vão viver a vida, que o melhor acontece em off”.

  Marina Ferraz




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