terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Temor

 

 Fotografia de Analua Zoé

Obrigada por não teres medo de seres como és”. Foi isto que ele disse. A mensagem saltou, no canto inferior direito do computador. Instinto. Pousei os dedos nas teclas. Para agradecer a gentileza das palavras. Mas não agradeci. Reli. Abri os olhos. Com eles, olhei para dentro. Revi mentalmente a ideia. Mergulhei tão fundo nela que fiquei sem ar. Levantei os dedos das teclas. Lentamente. À medida que os aproximava dos meus pensamentos. Esses vadios. E não tive coragem de responder.

 

Eu tenho muito medo de ser como sou. Porque sou uma construção inacabada em cima de um monte de ruínas velhas e pouco estáveis, que facilmente fariam descambar todo o trabalho de estruturação que faço. Bastaria um vento de intensidade média, vindo da direção certa. Ninguém estudou o solo debaixo de mim. Mas há rios de lágrimas, que me alagam quando choro. Os bueiros não são limpos há 33 anos. Estão absolutamente cheios de memórias e contos que já nem eu sei se são reais ou se os inventei. Há ossadas de muitos velhos terrores numa espécie de catacumba a céu aberto, debaixo do local onde me edifiquei. E gritos de outros tempos nas pedras caídas e nos cacos de vidro que ficam à vista para quem vê além dos alicerces do hoje.

 

Tenho imenso medo. Levo-me assim para a rua. Instável. Nunca sei muito bem se chego inteira a casa ou se vou esmagar alguém se os joelhos me cederem. Sou politeísta porque um deus não chega. Preciso de ir ao passado e beber da ancestralidade porque preciso da sabedoria de Deuses velhos e vividos. Busco o equilíbrio pouco pacato dos elementos e, como eles, não sei ser estável. Dou-me com a Natureza porque falamos, ambas, um idioma que as pessoas não entendem. Tenho o meu manual de instruções escrito nesse dialeto. Quem entra nunca sabe muito bem como resolver-me ou onde fica a saída de emergência. Geralmente saem pela janela mais alta da torre deste eu, estatelando-se no chão, mesmo à minha frente e sem que eu consiga evitar-lhes a dor.

 

Ser como eu sou é assustador. É um tentar, diário e contínuo. Um trabalho que nunca fica feito e que não para quando durmo. Um saber que estou no limite entre a pessoa que quero ser e o tipo de pessoa que mundo onde eu vivo come viva. É um saber que estou a dar o peito às balas e querer fazê-lo. Um descobrir que o limite fica depois do limite que tive ontem, e arriscar passá-lo amanhã, mesmo assim. Saber que estou na corda bamba, sem rede. Prestes a desmoronar. E pior. Saber que o meu eu se liga a outros eus. Que a queda é dominó. E odiar a ideia de destruir quem me abriga e me dá sustentação nos dias de vento moderado, quando ele vem da direção certa.

 

Alago. Há cheias que preenchem o meu excesso de ser. Dou-me com excesso. Vivo com excesso. Já me disseram muitas vezes que sou demais. E nunca foi um elogio. Eu tenho medo de ser como sou. Acordo e durmo com medo de ser como sou. E não posso dizer isto. Porque não quero ser outra coisa.

 

Pousei os dedos nas teclas. Para agradecer a gentileza das palavras. Mas não agradeci. Reli. “Obrigada por não teres medo de seres como és”. É tão bonito que me vejam assim. Mas eu tenho. Medo. De ser como sou. Só que, apesar disso, entendo que pouco importa o temor. Quando se tem amor. Quando se é amor. Quando se luta para ser melhor amanhã. Eu tenho. Medo. De ser como sou. Mas tenho a coragem de ser como sou. Com todos os meus bueiros sujos. Com todas as minhas ruínas. Com toda a minha inconstância.

 

Respondi. Por fim. Isto poderá, se mo permitires, ser mote para o meu próximo texto. Ele acedeu, com palavras gentis. Agradeci-lhe a amizade. E fiz este texto. É esta a pessoa que eu sou. Tenho medo de ser como sou. Não me importo que ninguém saiba que eu tenho medo. Porque esta sou eu. E, de uma forma ou de outra, pretendo continuar a sê-lo. Eu. Construindo-me em cima das ruínas, do caos e do que mais vier. Com a coragem de não desistir de ser quem sou.


 Marina Ferraz




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2 comentários:

  1. Soprodovento blogspot.com23:10

    Fico comovido pela referência e pela tua grandeza humana... não tenhas medo dos teus medos... eles são o que te leva a superar mas também o que superação a superação te sustenta no percurso... e é a capacidade de conheceres a tua essência, mais do que o ideal de perfeição que achas que podemos ter de ti que te torna grande.
    Porque grande é de facto o teu coração.... e por isso tudo o resto... porque sabes que é coração tudo o que fazes.
    Bem hajas... e se ajudar... se o medo for maior... digo-te o que de mais importante aprendi na vida... nada é demais se enfrentarmos juntos o que tivermos de enfrentar... somos podemos ser suporte e muralha uns dos outros.. uma muralha viva... de ombros.. como ja os trovante cantavam.
    Estou... estamos presentes. Beijinhos

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  2. Não tenhas medo Marina! Ou tem-no, mas sem razão, para o usares como te aprover. Tu és menina de bem, menina de Amor, menina que NUNCA caminha-rá sozinha. Terás sempre o MUNDO a apoiar-te, sempre e SEMPRE, mesmo que não precises! 😉

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