terça-feira, 7 de março de 2023

Mil conceitos no íntimo do silêncio

 


“o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
(...) o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura”

 

(Alice Vieira in “Dois corpos tombando na água)

 

 

Perguntaram-me uma vez: acreditas no amor eterno? Sorri e respondi, com simplicidade: não acredito noutra forma de amor.

 

 

No tempo em que o meu avô me ensinou a gostar de torradas com demasiada manteiga para acompanhar Chocapic em leite quente, a minha ideia do amor era pequenina como eu. Chegada da piscina, ainda com o cheiro do cloro preso às narinas e uma fome de loba, deixava que ele me preparasse o lanche e esperava que a minha avó se sentasse à mesa branca, em silêncio, olhando para mim enquanto comia, em jeito de quem quer apressar-me para irmos fazer juntas os trabalhos de casa. O meu avô acendia um cigarro e olhava para a televisão, em silêncio, encostado aos azulejos azuis. E eu apresentava metodicamente a história do dia: a composição nova, a detestável ginástica e o modo como continuavam, ainda, a levantar-me a saia nos corredores. Fazia isto entre uma trinca na torrada e uma colher de cereais. E falava dele. Do meu melhor amigo de infância, por quem sempre tinha tido aquela paixoneta-miúda mas persistente, que já me acompanhava há uns dois anos e acompanharia por mais nove. Amar, dizia eu então, devia ser brincarmos juntos nos intervalos, onde eramos pretensamente tão diferentes do mundo e tão iguais um ao outro.

 

Crescemos, vejo hoje, trazendo por mais um bom tempo essa ideia louca de que ser feliz com alguém é partilhar riso e brincadeiras, momentos e coisas para fazer. Trazemos isso por tanto tempo que, de repente, falamos de amor outra vez, contando no carro, à mãe atenta, que a noite se pintara de jogos de bilhar e da corrida bar em bar. Entusiasmamo-nos com o facto de gostarmos ambos de caminhar pela serra, de lançar pedras ao mar, para que saltem uma, duas, três vezes. Por caminho, esta é uma noção que partilhamos também com os nossos irmãos mais velhos, estupefactos com a certeza de que sabemos, finalmente, que o amor não pode ser outra coisa. Todos eles ouvem. Em silêncio. Esta nova filosofia. Gostamos de fazer coisas juntos... amar deve ser isso.

 

Depois, um dia, descobrimos que existe alguém. Tão diferente de todos os conceitos. Tão longe de todas as realidades. Não contamos ao nosso avô, porque já morreu. Nem à nossa avó, porque não queremos incomodá-la com mais uma história que talvez não dê em nada. Nem à nossa mãe porque para contarmos à nossa mãe seria preciso contarmos a nós mesmos e ainda não estamos preparados para abrir um capítulo. Mas o capítulo abre-se. Porque, de repente, estamos num carro, debaixo das estrelas. Não estamos a fazer nada senão a ir do ponto A para o ponto B. Não sonhamos fazer nada além de ir do ponto A para o ponto B. E, no entanto, as palavras escorregam-nos da boca e a conversa é fácil como se os temas não pudessem acabar e nunca fossemos cansar-nos da voz um do outro. As palavras escorregam com tanta facilidade que, de repente, quando vamos falar desse novo conceito de amor, que é alguém com quem podemos falar, sem fazer nada... já nos caiu dos lábios o primeiro “amo-te”. Entre “amo-te” e “amo-te”, que o mal é sempre dizê-lo pela primeira vez, percebemos que amar alguém não é partilhar recreios e momentos. Talvez devêssemos aprender, aí, que ainda estamos a descobrir o mundo. Mas não o fazemos. Em vez disso, insistimos, amar é ter espaço de conversa e nunca ficar sem tema. Pendurar riso nas frases e ser feliz, mesmo sem mover um músculo. Só para isso. Para conversar...

 

Quando os temas intermináveis terminam e os tempos do infinito tocam, como o despertador, o simples das conversas leva-nos a uma estrada onde palavras também são mágoa. E, de repente, esse amor-palavra é insuficiente. Porque permanece, mas se gasta em si mesmo, sem nos dar tempo e espaço.

 

 

Choramos no colo da nossa mãe e da nossa avó. Outra vez. E elas afagam-nos o cabelo, em silêncio. Mas, depois, a nossa avó morre. Morre, mas fica. Um alerta claro para a inevitabilidade do fim e a sua impossibilidade. E, acordando, percebemos que o amor é outra coisa. Mais forte do que todas as coisas que podíamos fazer. Mais forte do que todas as conversas que podíamos ter. Algo tão sem-justificação que permanece nos silêncios que não são emudecimento e na falta que não é ausência. Simplesmente eterno.

 

Aprender a eternidade do amor e aceitá-la. Saber que não há portas fechadas e janelas abertas, mas apenas campos sem limites. Perceber a plenitude de não fazer nada, de não dizer nada. Amar, entendemos então, é também encontrar quem sabe simplesmente estar, em silêncio. É muito difícil essa coisa de estar em silêncio. E haver paz no silêncio. E haver tantas coisas dispersas no silêncio que o próprio tempo não avança com as leis dos homens. O silêncio, entendemos então, é o mais íntimo dos atos.

 

Perguntaram-me uma vez: acreditas no amor eterno? Sorri e respondi, com simplicidade: não acredito noutra forma de amor.

 

Trago em mim todas as pessoas que amei. É um amor, sentada a olhar o mar, sem palavras, quando te dou a mão com os sentidos e não te toco. É um amor, trincando uma torrada com demasiada manteiga e comendo chocapic. É um amor, de chamadas intermináveis no meio do trânsito. É um amor de já não estares e não mudar nada...

 

Há várias formas de amar. Uma para cada pessoa que amamos. Mas é o mesmo amor. Um que existe sempre. Para sempre. Que se perpetua depois do fim. Que não depende de palavras. Que não morre com a morte.

 

Mudei muitas vezes a minha opinião sobre o local onde encontramos o amor...

... mas da sua eternidade, eu não nunca duvidei.

 

Trago em mim todas as pessoas que amei. É um amor eterno. E, por favor, se eu estiver enganada, não me digam...

 

   Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Gostei muito da tua visão do amor... Até ao tutano... da profundidade da alma ao turpor da pele. O alpha e o omega por todos os alphas e omegas que a vida tem. Por inteiro... na fragilidade da vida Até à eternidade da poesia.. por inteiro e sem limites porque o amor não sabe não ser nem se dar em metades... inunda... devassa, corrompe e salva... como se quando acontece fosse tornado que tudo corrompe e ao mesmo tempo tudo liberdade... como se não se pudesse ser sonho sem raiz.

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