terça-feira, 15 de agosto de 2023

Pensamentos soltos IV: Paz Podre

 Fotografia de Pedro Fonseca

A minha avó era uma mulher de fé. A sua igreja ficava num dos seminários de Coimbra. No terreno, uma pequena horta e pomar dava, por vezes, em excesso. Nada se estragava. Os devotos levavam sempre mais do que a homilia nos ouvidos. Levavam sacos nas mãos, com fruta comprada por preços meramente simbólicos. Em alguns casos, o padre chegava a oferecer, para que não se estragasse.

Lembro-me de estar em casa, pagã como sou, e da entrada sorridente dela, pousando um saco na mesa.

- Hoje, na igreja, deram-me tangerinas.

E logo o meu humor sobrepôs o politicamente correto.

- Então?! Acabaram as hóstias?

Ela olhou-me chocada durante alguns segundos. Depois riu-se. Almoçámos. A leveza de quem encontra a fé na partilha do Amor. Porque apenas o Amor é sagrado.

 

 

 

Não é muito frequente que as igrejas sejam como aquela que a minha avó frequentava. Dos meus tempos de frequência obrigatória nesses templos que me destinaram sem que os escolhesse, lembro-me mais vezes de me pedirem que desse algo, fosse tempo ou dinheiro, do que de me darem alguma coisa.

Lembro-me também da fila dos condenados nas ruas de Roma. Pedintes estendendo mãos, quando as tinham. Rastejando no chão sujo da cidade. Isto, até à orla de um Vaticano limpo. As beatas que povoam o chão da Praça de São Pedro não são de cigarro. E os pobres também não sujam a paisagem, posto que não podiam, pelo menos então, cruzar essa fronteira do alegado divino.

 

 

As coisas mudam. Melhoram. São positivas. É o que me dizem. Como o presidente disse, quando destacou que nos portámos todos exemplarmente bem: “os católicos e os outros”. Coisa da raça. Essa que, em tempos, tapou bocas. A mesma que desenhou estrelas nos braços dos judeus. Quando eram os alemães e os outros. O “outro” é imagem do problema. Não merece nome. Não tendo nome, não existe. Referência de corrida. Esquecida antes de ser lembrada. Deixe-se o espaço para a paz.

 

 

A minha irmã acredita devotamente na mensagem que fica nas linhas do que é dito e eu amo-a profundamente por isso. Gostava de não cair tantas vezes no fosso das entrelinhas e das entre-palavras. Dizem-me cínica. Comparativamente com ela – que crê, apesar de – eu sou. Talvez ser cínica ainda seja melhor do que ser os outros. Mas sou ambas as coisas. Lembrando que fui a menina a passear o saquinho das oferendas, largadas por mãos beatas. Tão bonitinha, com caracóis e vestidinho de folhos, a incentivar os pobres a dar dinheiro para os pobres-ricos da instituição mais abastada do mundo. Que orgulho me lembro de ter, com o som tilintante das moedas no saquinho vermelho, sem notar que o pedinte que se sentava à porta tinha a caneca metálica livre dessa canção. Não lhe estava destinada a paz nem a redenção. Isso não é coisa para quem tem o estômago vazio e um teto de estrelas à noite.

 

 

Dados oficiais dizem que, em 2021, 9,8% da população global passa fome e 29,3% se encontra numa “posição de insegurança alimentar moderada ou grave”. Felizes os convidados para a Ceia do Senhor! Porque os outros não foram convidados para a ceia. De nenhum senhor. E, enquanto rebentam as guerras que outros senhores fazem, discursos populistas sobre a paz são feitos dentro de igrejas e na mesa de refeição das famílias a quem nunca faltou o abençoado pão.

 

Perdoem o cinismo. Tropecei logo nas pedras do Genesis e caí no que fica entre as palavras alegadamente divinas escritas por homens. Vi pouco de divino nelas. Ou de humano, para o que conte...

 

Gostava de ser mais como a minha irmã, que acredita. Imagino que, de facto, carregar no colo a paz de um mundo melhor, colhida numa qualquer homília, seja uma espécie de “tudo”. Mas o mundo está cheio de “nada” para muita gente. E eu não fui abençoada com a cegueira que deus (propositadamente despido de inicial capitular) vai dando aos tais e negando aos outros.

 

 

O troco destas palavras é quase sempre a da enaltecida exceção. Ainda bem que as há! A minha irmã – catequista e católica – é uma delas. A igreja onde davam tangerinas à minha avó (seria em vez de hóstias?!?) talvez fosse outra. Gostava que a paz delas, que vem das mãos delas, que se dá pelas mãos delas, fosse a paz do mundo. Mas a paz que se vende na maior parte das igrejas não é uma paz para todos. Não tem o preço simbólico das tangerinas. Também não tem a sua frescura.

 

Se descascarem essa paz, como eu descasquei as escrituras. Se descascarem essa paz, como eu descasquei as ações além das escrituras. Se descascarem essa paz, como eu descasco os atos efetivos da igreja. Se descascarem essa paz, como eu descasco os atos efetivos de tanta gente que se diz da igreja. Aí, será fácil ver com os olhos dos outros. É uma paz pobre. É uma paz podre. E está cara... 


    Marina Ferraz




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