
A manhã irrompeu. As lojas começaram
a abrir. O rebuliço lisboeta acordou. Demoradamente, que não existe pressa no mundo dos mortos, Eça de Queiroz, Pessoa e
Saramago caminharam. Passaram por lá uma vez mais. Depois de tantas outras
vezes. Pararam junto à porta fechada. Trocaram o olhar de quem sabe o que
sempre soube. Contestaram a realidade com palavras que não serão conhecidas, já
que ninguém os viu ou ouviu. Mas imagina-se que as palavras tenham sido, agora,
semelhantes às que antes proclamaram. Imagina-se que o Fernando tenha dito: “Das feições de alma que caracterizam o povo
português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina.”(1) E que Eça tenha
acrescentado: “país governado ao acaso,
governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por
privilégio e influência de camarilha.”(2) Sem
perder o ar idóneo que sempre o caraterizou, imaginamos ainda que José tenha
retorquido “aproximam-se tempos de
obscuridade, o fascismo pode regressar; já não há muito tempo para mudar o
mundo". (3)
A porta fechada da Livraria
Ferin era apenas uma das muitas provas de uma Lisboa moribunda. Realidade
triste para mim que, lado a lado com os meus ídolos, sem os ver ou ouvir, me
permito também falar. Tenho exclamações menos literárias e das que os
transeuntes podem ouvir, porque estou viva. Envio os causadores destra trama
diretamente para a genitália dos pais deles. Mas sei que eles não ouvem. O
barulho dos trocos milionários a quedarem-se na conta bancária deve impedir a
perceção sonora de tudo o resto.
Lisboa é um mar de lojas históricas que fecham portas. Só no ano passado, além desta livraria – uma das
minhas favoritas – fecharam também a Casa Chineza, o Bota Alta e a Barbearia
Campos, e estou certa de que muitas outras…
Rendas impeditivas estão a
impedir Lisboa de ser a minha Lisboa. A Lisboa que fiz minha dizendo que ela
não era de quem vive nela, mas de quem a vive… ainda bem que ela não é de quem vive nela, penso agora, porque viver nela está a tornar-se luxo para
turistas e burgueses.
As tendas montadas na rua são
de gente que vive nela, mas não pode viver condignamente nela. E as placas de
AL transformam a cidade bairrista num espaço onde o atendimento é feito, por
defeito, em inglês. Nunca o fado soou mais triste. Falta a roupa estendida a
cheirar a sabão, de janela a janela. O cheiro do café e dos guisados
substituiu-se pelo aroma a fritos das grandes cadeias internacionais de fast food.
A Lisboa da Amália quis mesmo
ser francesa. Mas não lhe bastou ser
francesa. Também quis ser inglesa, alemã, americana. Quis ser de quem pagasse
mais. Abriu os braços com a sua hospitalidade desejável e que sempre elogiei.
Mas, depois, vendeu-se… pôs as suas gentes fora de portas, globalizou o
bairrismo, subiu as rendas até que apenas o privilégio pudesse pagá-las. Lisboa
foi-se perdendo.
Fico parada à porta da livraria
com um ardor no peito. Lanço mais um insulto descontente aos políticos e a quem
os pôs no mundo. Depois, lanço um elogio fúnebre a esta cidade que amo. Uma
expiração. Um desabafo.
Oh Lisboa… Eu sempre disse que
era má ideia investir em ações com risco de perda de capital…
Marina Ferraz
(1) Fernando Pessoa em “Crónicas da Vida que Passa”,
em O Jornal nº5 (1915)
(2) Eça de Queiroz, em “O distrito de Évora” (1867)
(3) José Saramago, em “Jornal Público” (2007)
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