Exmos Srs.,
Venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, que passo a citar:
“Sempre quiseste fazer parte de um
espetáculo?
Procuramos cantores, atores, bailarinos...
artistas!
Projeto não remunerado, a decorrer em 2025.
Envia a tua candidatura para o nosso email.”
Sim! Eu sempre quis fazer parte de um espetáculo. Mesmo sabendo que o meu país não apoia as artes. Que o ensino para a cultura é insuficiente. Que, a pouco e pouco, os palcos e os bancos e os camarotes acumulam pó e memórias do que foi a glória antiga. Mas eu quis fazer parte de um espetáculo, mesmo assim. Sonhei muitíssimo com o evento no qual os produtores soubessem o valor da arte. No qual os meus colegas aligeirassem o peso que sempre carregam sobre os ombros e vivessem condignamente. No qual os técnicos sejam mencionados (e pagos) pelo valor incomensurável do seu trabalho. Onde, no mínimo, se não existir mesmo financiamento algum, a bilheteira se divida por todos, honrando horas e dias e meses de esforço coletivo por um objetivo comum. Sim, eu sempre quis fazer parte de um espetáculo.
Imaginei as luzes nos olhos. O ressoar de palmas. A euforia trágica que antecede e sucede o fechar do pano. A corrida desenfreada nos camarins. Aquela apneia acompanhada de sopro cardíaco mesmo antes de entrar no palco. É muito o que se ganha a pisar as traves velhas dos teatros e salas de espetáculos. É um ganhar de lotaria muito próprio, que nos enriquece por dentro de um modo tão pleno que nem questionamos que, sem outra moeda de troca, a luz de casa não se acenderá, nem jorrará água da torneira, nem haverá conforto térmico que mimetize o conforto cénico. Nem a companhia da eletricidade, nem a das águas, nem a do gás aceitam pagamento em palmas. São, na verdade, bastante rápidas a vergastar as palmas de mãos vazias, oferecendo degraus para subirmos dessa cave fria, até à rua para morarmos em tendas... se as houver.
Dizem, na vossa oferta de emprego que querem emprego de oferta. Dizem que procuram cantores, atores, bailarinos... artistas. Mas o que vocês procuram não são cantores, atores, bailarinos ou artistas... mas escravos. Pessoas que se disponham a ver uma janela de oportunidade na oportunidade sem janela. E eu venho por este meio responder ao vosso anúncio de emprego, sem pedir – que direito tenho?! – que ganhem vergonha na cara. Venho apenas esclarecer que a escravatura foi alegadamente abolida em Portugal no ano 1761, porque estou certa de que poderão não se ter apercebido. Afinal, o tempo passa a correr, sem darmos por ele, quando estamos a explorar os outros...
Assinado:
Um artista que paga contas e paga impostos
Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"
enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com
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