terça-feira, 28 de outubro de 2025

Autoridade (de boa saúde)

 

Trecho retirado do site da Renascença

Surgiu a ideia de que o Instituto Nacional de Emergência Médica – INEM – mudaria de nome, a 3 de novembro, para Autoridade Nacional de Emergência Médica – ANEM. Embora, aparentemente, fossem fake news, gostei de pensar, numa nota mais otimista, que se tratasse de um serviço trans, que finalmente queria assumir uma identidade mais feminina, dinâmica e ativa. Foi difícil, claro, já que Portugal raramente deu a alguém razões para encarar com positivismo o que quer que seja. Mas fez sentido, mesmo assim, a afinal imaginária alteração, uma vez que o instituto parece avançar para a autofágica extinção por incapacidade acompanhar os tempos despóticos que se vão instalando.

 

Claro que é possível ter pensamentos... se não “positivos”, ao menos pejados de sentido de humor. ANEM, penso, talvez fosse o nome ideal para uma entidade do Ministério da Saúde há muito ANEMica e que opera como se não houvesse um único cérebro envolvido no processo, qual ANEMona.

 

Além disso, sendo uma autoridade, seria mais simples justificar as sirenes, o nascimento das criancinhas em andamento, os atrasos, a falta de pessoal. Afinal, autoridade é o direito legalmente estabelecido de se fazer obedecer... e se algo assim acontecesse seria por haver a autorização para que o fosse. Não precisaríamos mais de questionar a competência, o conhecimento, a sabedoria, a divindade das medidas de ação emergencial. Seriam, afinal, autoridade... lá saberiam o que estavam a fazer!

 

A bordo das ambulâncias do INEM – paz à sua alma, com ou sem mudança de nome – acredito também que muitas pessoas têm vindo a sugerir esta mudança de nomenclatura, dizendo AMEN no fim das orações... que mais temível do que a doença ou a gravidez é o cuidado da emergência médica a caminho do hospital e a receção do SNS à chegada. Eu sei que AMEN e ANEM não são a mesma coisa... mas no meio da confusão, ruído de sirenes, buzinadelas, colher da água na via, toque monocórdico de rodas no alcatrão é provável que até o auxiliar menos disléxico escutasse incorretamente. Deixo a sugestão para que se avance com a mudança do nome... e com a mudança da oração, para acompanhar. Perdoai-nos as nossas doenças, assim como nós perdoamos a quem mal nos tem atendido, não nos deixai cair em enfermidade mas livrai-nos do SNS. ANEM.

 

Oremos, irmãos... e esperemos a ação divina de um deus qualquer. Provavelmente chegará antes da ambulância, da nossa senha nas urgências ou da consulta indispensável que pode salvar-nos a vida. O corpo está condenado, salve-se a alma!

 

Eu, por mim, vou continuar na crença de “café nos salva”. Café para tolerar a mudança de nome. O desmentido da mudança de nome. O facto de haver uma conversa sobre o nome quando tudo o que está relacionado com a saúde em Portugal não está de boa saúde... Mantenho-me na ideia de “café nos salva”. Apesar de, confesso, doer um bocadinho estar bem acordada a assistir a tudo o que acontece em Portugal.


 Marina Ferraz



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terça-feira, 21 de outubro de 2025

Serviço

 

Imagem gerada pela I.A.

Este texto é para os bajuladores, os que lambem botas, os que repetem expressões corteses. Sim, senhor doutor. Com certeza, sua excelência. Os que invertem a ordem temporal da vida. Considere que está feito. Os que enaltecem até o discurso mais vago e asnático com um sorriso e um não teria dito melhor, senhor. É para todos os que dão o passo extra para garantir a satisfação dos patrões. Eu sei que é o nosso aniversário, querida, mas o senhor doutor precisa de mim. É para todos os que apontam elogiadores cumprimentos à sua própria pessoa. É desta matéria que se fazem os heróis. É para todos os que, com o seu serviço, garantem que a roda continua a girar nos padrões da normalidade, muito dentro do status quo, sem agitações, complicações e outras coisas terminadas em ões que possam, de alguma forma, comprometer a política e a economia.

 

Embalados em promessas e eternamente atrás do momento da figura, admiro-vos o truque da perseguição da cenoura. Certo é que os burros do circo fazem o mesmo. Mas, neste caso, posso asseverar (porque já o vi) que ao fim de umas quantas voltas, lhes é feita a deliciosa vontade. Não sendo o vosso caso, apraz-me congratular-vos pela persistência de sempre darem tudo a troco de nada.

 

Consistentemente focados na mesma ideia de um dia vir a ser a excelência, o doutor, o senhor doutor, o herói, se levantam do vosso colchão velho, da vossa casa húmida, com a vossa renda astronómica, para entrar no carro velho (ou cujas prestações estarão pagas daqui a dez anos) para enfrentar o trânsito caótico e ter o café pronto quando o motorista deixar o senhor doutor à porta, fora da hora de ponta, evidentemente. Importa estar a tempo de abrir a porta para proteger sua excelência de eventuais bactérias que residam no manípulo onde toda a gente mexe. Manipuladores – esta é uma regra de serviço – não devem tocar em maçanetas, manetes ou manípulos, apenas na manipulação e de forma dissimulada! De que outra forma vos convenceriam a seguir na horda dos aduladores? De que outra forma teriam a saúde e o tempo necessário para garantir ao rico o que é do rico e ao pobre o que é do pobre?

 

É apenas serviço! Dizem. Mas, por vezes, ser servil é apenas uma forma de ser vil, mas sem espaço. Porque não se iludam. Não há espaço para vocês, apenas para o uso que vos é dado. Um dia serão só pobres tão pobres como os outros pobres, mas mais erodidos da usança.

 

É apenas serviço! Dizem.

Amanhã, nos dias dos senhores doutores excelências não será preciso abrir portas. Elas estarão trancadas e nós estaremos à chuva, a mendigar a cenoura que não há, enquanto eles se banqueteiam com o fruto do nosso trabalho.

 

É apenas serviço! Dizem.

É.

Para citar o passado, que tanto usam por medida, permitam que vos cite as sábias palavras da minha avó sempre que eu fazia asneira:

 

Mas que lindo serviço!


 Marina Ferraz



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terça-feira, 14 de outubro de 2025

Coleção Outono/Inverno

 

Imagem do jornal Expresso

Senhoras e senhores, acaba de sair a nova coleção Outono/Inverno. A tendência é clara para todos os que, sendo fãs de moda, não querem correr risco de andarem por aí, por exemplo, envergando cravos vermelhos. Tão 1974!... Não! Assentemos os pés em 2025, com todo o seu imenso potencial.

 

Este ano, enfrentamos a festa do padrão laranja e rosa. Para quem julga que isto imita o antigo padrão, considerem a mudança na estampa: um pouco mais de cor-de-laranja e uma tonalidade alaranjada mais coligada, mais escurinha, com nuances que puxam um pouco mais para azul do que para vermelho. O rosa, ainda ocupando parte significativa do padrão, vai matizado, mais forte em alguns locais e mais pálido noutros, notando-se na sua composição também outras cores, algumas das quais podem criar um artístico sentido de incompatibilidade. Além das tonalidades principais, temos também o azul. Muito ocasional e disperso, mas ponteando aqui e ali as arestas do preenchimento de tons fortes que já mencionámos. E, claro, temos ocasionais manchas rubras, para dar aos espíritos rebeldes e selvagens alguma margem de alento.

 

As texturas do ano são o veludo, as redes e os folhos, uma nostalgia retro que assume também o toque clássico da suave da malha larga e da renda aberta. Assim se eterniza a promessa de suavidade de tempos passados, de forma reinventada e moderna, com texturados abismos que remetem para a condição atual da desesperada pessoa comum do século XXI, disposta a enfrentar o desconforto com um sorriso.

 

Inspirado no azul ponteado e disperso do padrão deste Outono/Inverno, surge também uma tendência de inegável valor: a fragrância. Um borrifo dos perfumes perfeitos para esta estação levam-nos a aromas fortes e intensos, de tendência acre, cítrica, picante, com laivos adocicados e sedutores. Notas que nos remetem para a nostalgia das gavetas das avós e tias em que todas as peças traziam consigo o antigamente e toda a sua naftálica e bafienta tradição.

 

A peça mais emblemática das passerelles, no entanto, foi, sem dúvida, o protetor de pescoço em couro, feminino e estético, cobrindo dos ombros ao nariz. Este modelo de inspiração vintage é uma tendência que já marca presença em revistas, jornais e canais televisivos de renome, sendo peça popular para vestir às discrepantes comentaristas de esquerda, que antes entravam de cravo ao peito, num completo desrespeito pela moda.

 

No que diz respeito aos acessórios é ainda preciso salientar o cinto e as malas minimalistas. Os cintos da nova coleção vêm com um maior número de furos, já preparados para serem apertados ao limite ao longo dos próximos meses, e as pequenas e decorativas carteiras são ideais para quem costuma transportar o mínimo.

 

Em suma, encontramos detalhes vintage e retro nesta nova e ousada coleção, que se unem ao minimalismo nas tonalidades de laranja, rosa, vermelho e azul.

 

Influencers e especialistas preveem já que a tendência se acentue, e que as próximas coleções tenham mais estética do que ética e que a ditadura da moda possa transformar-se na moda da ditadura.


 Marina Ferraz



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terça-feira, 7 de outubro de 2025

Funcionários

 

Imagem gerada por I.A.

Não entendo. E não sei se me faço entender. Por isso, vá... vou largar a literatura por dois minutitos e tentar explicar como se fossemos todos crianças prestes a pôr os dedos na tomada.

 

Imaginemos alguns cenários.

 

Uma funcionária de limpeza é contratada para tratar da higiene de um apartamento. Uma vez contratada, ela inicia – não de forma momentânea e num ímpeto, mas de forma coordenada e regular – o roubo de objetos de maior ou menor valor a todos os residentes do referido imóvel. Os patrões despedem a funcionária porque não querem pagar a quem os assalta.

 

Numa loja de centro comercial um trabalhador é contratado. Vai trabalhar nos dias em que lhe apetece, nos outros não vai. Não apresenta justificação e nem sente que precise de se justificar. Nas horas vagas diz que é a única razão pela qual a loja continua a ter clientes. O patrão despede-o por justa causa porque não quer continuar a pagar ao funcionário sem saber com o que pode contar.

 

Numa redação é contratado um jornalista para fazer as reportagens que lhe são incumbidas. Todos os dias este jornalista decide escrever sobre assuntos diferentes daqueles que lhe são encomendados, com base nos seus gostos e interesses pessoais. O chefe de redação reporta a situação. O jornalista acaba por ser dispensado por incumprimento das suas funções.

 

Um motorista é contratado para entregar encomendas ao domicílio. Em vez disso, começa a utilizar para fins pessoais a carrinha da empresa e, se acaso a entrega é comida, aproveita para lanchar... Adivinhemos... é despedido...

 

Em comum todas estas situações têm o seguinte: os funcionários não cumpriram o que deles era esperado. Dirão, provavelmente, que o despedimento faz sentido. Que não estavam à altura do serviço, que eram desonestos, que não tinham responsabilidade ou seriedade... Toda a gente o vê. Toda a gente entende. Toda a gente se indigna com estas situações e as critica habilmente, destacando que “basta ter bom senso”. Até que... o dinheiro é o nosso e os funcionários pagos com o nosso dinheiro usam fato e gravata e se sentam no pódio parlamentar.

 

Aí, que roubem. Que faltem. Que usem os meios públicos para interesses pessoais. Que evitem os temas de maior importância para cumprirem a sua própria agenda... Façam o que quiserem...

 

O povo olha para o Estado com a soberania que a velha senhora lhe quis dar, como se estivessem acima do proletariado e quase tivessem bênção divina. Mas o dinheiro que lhes paga o salário é o nosso... e, pergunto eu, do alto do meu ponto de vista,... isso não faz deles os nossos funcionários?

 

Se fosse a funcionária da limpeza, o motorista, o jardineiro, a babysitter, o jornalista, o varredor de ruas, o empregado de balcão não o toleraríamos... alguém me explique assim, de forma simples e básica, como se eu tivesse três anos, esta falta de indignação.

 

A política é uma tomada em que continuamos passivamente a enfiar os dedos. O choque é de quem o faz e de quem assiste.

 

E ainda somos nós a pagar a conta da eletricidade.


Marina Ferraz



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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Dos clichés...

 


Pessoas que nos marcam não morrem. É cliché. Eu sei. Mas gosto deste.

 

Podem vir dizer-me quantas vezes quiserem os outros clichés e negarei cada um. Com o tempo tudo se esquece. Nada resiste ao tempo. O tempo cura tudo.

 

Quem procura a cura talvez se identifique.... e eu entendo. Há, talvez, um esmorecer da intensidade do sofrimento, uma habituação à presença da saudade que deixam os ausentes. A pouco e pouco, o tempo leva a voz e o cheiro, torna-se mais ténue o memorar da expressão dos olhos onde morava a alma. Mas não acredito que tudo se esquece. Não preciso de cura. E sei que resiste ao tempo: o amor, os gestos perpetuados em quem fica, as ideias repetidas de forma leve e quotidiana. Não existe agente erosivo que transforme isto em poeira.

 

Pessoas que nos marcam não morrem. Talvez ninguém morra. Gosto de pensar que toda a gente deixa no mundo uma marca indelével na passagem. E, hoje, no dia do idoso, no dia que marca o adormecimento de um homem que precisou de nascer para eu viesse a nascer também, eu trago nas mãos e por dentro muito mais do que a memória.

 

Poderia falar-vos, é claro, da pessoa que me viu entrar pela sala, cheia de emoção, no alto dos meus maduros 6 anos, ainda sem saber escrever bem as vogais e dizendo avô, avô, já sei o que quero ser quando for grande! Quero ser escritora. Podia dizer-vos que ele ergueu os olhos do romance da Agatha Christie, que afastou o cigarro com leveza e que me disse – melhor conselho de sempre! – então, escreve. Ou podia falar-vos do dominó, do gelado no murinho, dos filmes ao domingo à tarde, do chocolate quente, da piza caseira, do trajeto entre a cozinha e o quarto com o copo de água, do whiskey, das vindimas, da barraca na praia, do boné e do olhar meigo. Podia dizer tantas, tantas coisas.

 

Eu trago a memória. Mas a memória não importa. Importa que a memória não vem só. Traz consigo o amor. Todo o amor. Esse sentimento resiliente que, depois de 19 anos, não atenuou. E o amor torna-me grata pela saudade. Esse sentir a falta que é gesto de gratidão à vida por me ter permitido tê-lo de mão na minha, escutar as suas palavras, partilhar cada momento.

 

Não gosto da ideia de que o tempo cura tudo. Eu não preciso que o tempo me cure do amor. Levo-o comigo. Pretendo continuar a levá-lo comigo, mesmo quando isso assustar os outros. Porque o amor não é um erro. E senti-lo não é fraqueza. E cuidá-lo, mesmo na ausência, não é delírio, nem ilusão... Pessoas que nos marcam não morrem. Abençoado cliché, este que me conforta no luto da vida, fazendo-me ver além da capa exígua do visível.

 

 

Hoje, neste aniversário da tua ida, é como se aqui estivesses. Corro para ti e digo. Avô, avô, quero ser escritora. E tu respondes. Escreve. E ainda é o melhor conselho do mundo, porque me colocas na mão o amor indestrutível que trago comigo.

 

No reencontro, avô, devolverei esta tua parte para novamente a partilharmos. Até lá, resguardo-a dos outros clichés. E escrevo. Porque me disseste para o fazer... porque cabia o mundo todo nas tuas palavras... e, vê lá bem, a eternidade.

Marina Ferraz



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