terça-feira, 25 de novembro de 2025

Quem conta um conto...

 

Fotografia de Hélio Silver

Há muitas histórias que se contam. Contam-se verdades, inverdades, desverdades e mentiras. Como são contos contados na mesma conta-corrente, que se esgueiram a conta-gotas pelas rachas do sistema, é difícil separar o que se conta do que conta.

 

Contam-se mortes e vidas. Uma contabilidade feita de poder e capitalismo. E guerras e ajustes de contas e pazes de faz de conta. Tudo por contadores aos quais uma auditoria contábil não conviria muito, evidentemente...

 

Já contamos com isto. Conta-se que antes da conta – ainda a soma do quadrado dos catetos não se sabia igual ao quadrado da hipotenusa – já se contavam contos com pontos a mais pelas mentes quadradas dos contistas de canto da rua. Assim continua.

 

Contos continuam a contar-se. Conta-se o perder da conta ao tempo nas urgências dos hospitais. Conta-se o somar do canto chorado de bebés nascidos na autoestrada. E conta-se que se contou o conto do tempo em que havia SNS e bebés que nasciam em maternidades. Contam-se, portanto, algumas verdades...

 

Mas também se conta que os imigrantes vêm roubar os nossos trabalhos. Mas há quem conte que eles saturam o estado social, vivendo de subsídios. Portanto, contam-se contos que contradizem os contos que se contam. Tudo no mesmo conto, como convém a quem conta. Conta-se que o contante consiga contar com igual afinco ambas as versões, colocando em ambas a fé que aos contadores de contos cabe.

 

No fim, fazemos as contas. Conta não bate com conto e conto não bate com conta... e ainda bem que vieram os euros porque sabe-se lá quantos contos vale aos contistas o conto que  não bate com a conta.

 

Certo é que, no fim de contas, há muitas histórias que se contam. Muitas pessoas que terão que prestar contas, um dia, pelo que foi contado, ou por não se ter contado com elas. Quando se contar esta história, o que me importa é menos o conto e mais a história em si. Porque a história que se conta é muito menos importante do que a história que conta. E essa, senhores, é uma em que só vou ter em conta uma coisa. Na história que conta, eu quero estar do lado certo da história. Dormir tranquila sabendo-o. Sabendo que, na história que conta, o lado que conta pôde contar comigo.

 

P.S.: para quem conta que novembro conte mais do que abril e quiser contar essa história... uma sugestão: conte outra!


Marina Ferraz



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terça-feira, 18 de novembro de 2025

Normalecer

 Imagem gerada pela I.A.


Algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. Eu não. Ler e escrever são, para mim, formas de fugir da normativa normalizada normalmente imposta.

 

Talvez alguns consigam olhar uma folha em branco e desligar a mente no discorrer de palavras. Talvez alguns consigam ler um livro e desligar o sensor que os liga ao circunstancial momento do mundo. Eu rasgo as mãos e sinto as vértebras dos segundos quando a caneta desliza no caderno, quando os dedos pressionam as teclas do computador, quando um autor diz nas linhas e nas entrelinhas, nas palavras e nas entrepalavras o tanto que eu queria expressar (e nem sempre consigo).

 

A literatura – minha e dos outros – é uma câmara sadomasoquista na qual entro já à espera de sentir. Depois, o meu cérebro autista faz o seu bom trabalho de remistura, sentindo-o demais, E é uma sensação de rasgão interno em cada virar de folha. E é uma sensação de cegueira em cada acender da tela. E é um desnorteio na imprevisibilidade das palavras que me saltam do estômago, como se vomitasse para o papel o espaço que fica entre cada fio do pelo da gata que, entretanto, aterrou ao meu colo.

 

O devaneio vem. É, simultaneamente, apagão e o acender de todas as luzes do mundo. Não vejo muito, mas sei demais. Eis a visão que falta aos que, alegadamente, são normais: a de dentro. Nesse queimar dos olhos, posso garantir que vejo o rosto da fome e do frio, as mãos encardidas da guerra e do tormento, o arrastar de gentes ao bel-prazer de chefes – uns de Estado, outros de atestado, outros de atentado. Vejo o fechar da boca das mulheres e o abrir involuntário da vulva. Vejo o maltratar das crianças. Vejo o maltratar das crianças por outras crianças. Tenho a minha alma arrancada – talvez como os dedos do menino de Cinfães – presa na porta que dá para a Liberdade.

 

Algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. É tarde para mim. Eu nasci louca. Ler e escrever é fuga, porque as palavras saem por vias que enganam o corpo calado, de lábios colados um ao outro, e ele não dá conta que se está a entregar às vergastadas dos outros.

 

Enfim, algumas pessoas dizem que escrevem para não enlouquecer. Eu escrevo para não normalecer. Essa normalidade dormente, padronizada e triste que é âncora e, por sê-lo, nos afunda mais e mais na água turva do momento.

 

Eu escrevo para ser louca, mesmo. Talvez não seja bom ser-se louco. Mas – olhando em volta – é melhor do que a alternativa. Os normais estão a destruir o mundo.


Marina Ferraz



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terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os vossos temas

Imagem gerada pela I.A.

  (Este texto foi criado com base em sugestões temáticas de leitores. Foram-me dados os seguintes temas para este texto:- as cores do outono - o poder do ódio na política moderna - outra lição de gramática - onde está o sabor da doçura - transhumanismo - como esquecer alguém que se ama – Yule)


Surpreendo-me sempre com as cores de outono e o ódio. As cores do outono porque transformam o cenário num outro, tão raro. O ódio porque transforma o cenário num outro, tão comum. Por entre o acender precoce das luzes de Natal, com o aproximar das promessas sempre incumpridas de paz da época festiva – que saudades ficam dos tempos em que se lhe chamava Yule! – os gritos e ofensas cobrem até a voz da Mariah Carey, que – pobre coitada – já anda desde 1994 a mendigar a mesma prenda, sem que ninguém tenha a benevolência de lha dar.

O ódio não é apenas arremessado nas ruas e nas filas dos supermercados. Passa em horário nobre e tem um canal que o patrocina com as cores da bandeira. 

Surpreendida pela inevitabilidade da degradação do homem, dou por mim a pensar no transhumanismo. Na invasão da máquina, no uso do digital, na forma como se cultiva a esperança de um homem sem doença, sem envelhecimento, sem morte. Um homem melhor que o homem. Um homem cibernético, híbrido, eterno. Assusto-me com a ideia de um homem além de si mesmo, e mais ainda com a ideia do homem sem morte. Fico a desejar que se descubra antes onde está o sabor da doçura. Porque nunca o fim pareceu destino mais doce.

Olhando o país e o mundo, o poder do ódio na política moderna, a facilidade com a qual todos nos tornamos escravos ou despojo fácil de substituir, dou por mim a pensar que o maior problema dos Estados é serem (má) figura paterna. Um Estado-mãe não destilaria ódio nenhum. Vá, venham agora os puristas exigir-me outra lição de gramática sobre a dupla negativa... não quero saber! Não destilaria ódio nenhum! Repito-o. A repetição é um recurso estilístico forte e que defenderei até à morte (se o transhumanismo não me roubar a esperança de morrer um dia). Mas, voltando ao Estado-mãe. Não creio que houvesse uma descarga de ódios se isto sucedesse. A mulher é dotada, sempre o achei, de um amor inerente à condição. Como se viesse dos ovários, do clitóris, do útero... vejo pela minha própria mãe! Nunca a vi distinguir pessoas por nacionalidade, sexo, género, profissão, cor de pele, sotaque ou outro critério semelhante. Vejo-a a olhar para as pessoas como se fossem pessoas, guardando apenas um lugar de depreciação e antipatia para com aqueles que não lhe devolvem os Tupperwares. 

No palanque dos sapientes doutores de fatinho, um conjunto de pessoas que nem sabe o que é reservar comida em Tupperwares, come caviar e vomita sentenças. Perguntaram-me recentemente como esquecer alguém que se ama. E eu, que afirmei não ter respostas – tenho 12 anos consecutivos de motivos a confirmar a minha absoluta inutilidade no que às questões da superação diz respeito – posso no entanto apontar os nossos governantes, que tanto afirmam amar Portugal, como exemplo perfeito de alguém que esquece depressa e eficazmente o que diz amar.

Lá fora, a árvore tem as folhas pintadas de vermelho. Não é a primeira vez, mas é como se fosse. Cada outono é o meu primeiro outono. Olho para elas com o mesmo brilho no olhar. Quero que a paz do Yule se acenda com as luzes que já ponteiam os centros comerciais. Quero esquecer o ódio que grita e converte e alastra, qual pandemia sem expetativa de cura. Quero apagar esse ódio e voltar a conhecer o sabor da doçura... Mas, lá está, querer não é poder. Ao menos, a Mariah Carey – também fã da repetição – ensina-nos isso todos os anos... e olhem que ela só quer uma coisa!

 Marina Ferraz



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quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Pronomes pessoais átonos

 

Imagem gerada pela I.A.

Explicar os pronomes pessoais átonos – ou mais especificamente a sua colocação na frase, antes ou depois do verbo – deve ser das tarefas mais inglórias para qualquer pessoa que trabalhe como mentora nas áreas do domínio linguístico. Desde logo, para quem integrou os processos da linguagem de forma imediata, estes pronomes autocolocam-se no local devido, de forma intuitiva, o que é o primeiro passo para ninguém se lembrar da regra gramatical em si. E, depois, quando existem dois verbos a regra é flexível e podemos optar pelas opções mais formais ou pelas mais naturais, dando-nos a desconfiança de que os linguistas que definiram a questão já iam, por esta fase do processo, muito entrados no mundo da embriaguez. Então, na minha perceção, a melhor forma de explicar tudo isto, já depois de se ter falado da posição do verbo na frase e das palavras-chave – como não, já, ainda, também, que, quem, quando, onde, se, porque, como, enquanto... – e se de ter mencionado os nomes “ênclise” e “próclise” que, para efeitos práticos servem para... rigorosamente nada... o melhor é exemplificar com noções próximas, atuais e que sejam claras.

 

Por exemplo: Quando nos dignamos a sair de casa para ir votar, leva-nos algum laivo de esperança de que o vencedor das eleições nos possa ajudar (neste caso também poderia ser ajudar-nos) a ter uma vida melhor. Cada pessoa quer olhar-se como modelo na construção de um futuro que nos leve a melhor rumo.

No entanto, depois de contados os votos é impossível evitar um foda-se (que também poderia ser um que se foda). Ficamos todos com a clara certeza de que, para além de um SNS a autodestruir-se, de uma economia a degradar-se e de um futuro a impossibilitar-se, temos ainda de gerir um sistema ditatorial que, claramente, está a instalar-se (também poderia ser se está a instalar).

 

Li, algures por esse mundo das redes sociais e sem referência à autoria, que “as pessoas se preocupam muito com a sua aparência e nada com o seu caráter”. A frase estava Inglês, mas deixo a tradução – que não se perca um bom exemplo do uso de pronomes átonos! E eu penso que talvez, justamente por ter sido difícil perceber todas as regras de colocação pronominal, muitas pessoas não tenham decorado bem, também, os próprios pronomes e, na lista de me, te, se, o, a, lhe, nos, vos, lhes, tenham simplesmente ficado pelo me. O que me interessa. O que me convém. O que me vantagem. Não é raro ouvi-lo: voto nele porque diz a verdade e me entende! Porque vai expulsar A, B e C, e isso me dará uma melhor vida. Porque vai acabar com a gatunagem e me pode ajudar a subir na vida (também possível seria pode ajudar-me).

 

Seguindo-lhes o exemplo, posso dizer que isto me parece um bocadinho limitado. Parece-me, na verdade, que isto nos vai levar para o tempo da outra senhora.

 

O IMPA deu, para hoje, um Alerta Laranja, que já vem, penso, um bocadinho fora de época. Essa tempestade já está a causar danos no país faz um tempo. Isto é o que os acontecimentos atuais nos dizem. Os políticos, esses, dizem-nos outra coisa...

 Marina Ferraz



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