terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Domingo: uma carta de desamor

 


Fotografia de Karolina Grabowska


Odeio os domingos. Não porque sou particularmente fã da segunda-feira, mas porque acho os domingos mais desonestos. Noto, na claridade das suas manhãs, o capricho acentuado de saber que é o filho favorito da semana. E torna-se arrogante. Nasceu com o cu virado para a lua. Não tem de fazer rigorosamente nada para ser amado... e é. Não por mim, entenda-se! Eu odeio o domingo.

 

 

Quando a semana começa, a esperança já foi. Sabe-se exatamente qual o espaço que vai do toque do despertador até ao retorno do corpo ao colchão. É assumidamente pesado, desde o primeiro instante.

 

O plano dos dias não deixa espaço para ilusões, exceto se considerarmos as almas que se agarram ao talão da máquina do quiosque, para confirmarem – à terça e à sexta-feira – que não ficaram milionárias. Mas as pessoas nem querem realmente ficar milionárias por nenhum motivo em particular. Não pretendem abrir ONG’s, nem patrocinar a construção de escolas e ATL’s ou distribuir comida nas zonas mais pobres da cidade, do país ou do mundo. A sua motivação é, usualmente, bastante simples: querem fingir que todos os dias são domingo. E, por isso, mesmo às terças e sextas, é o domingo que está a plantar ardis e a esvaziar as carteiras das pessoas.

 

Durante cinco dias. Conta-se. Segunda. Terça. Quarta. Quinta. Sexta. Mas só durante esses dias. Ninguém diz que o Domingo é Primeira... porque ele vem primeiro. Ninguém precisou de lho dizer. Ele sabia... Sabia e até fez questão de ser precedido de Sábado por isso mesmo: para que saibamos que ele sabe que será sempre o eterno favorito.

 

Só que, Deuses, olhemos a arrogância! O domingo faz de tudo para ser droga. Dá a si mesmo nome de programação fútil e oca com os seus “filmes de domingo à tarde”. Promove o futebol nacional. Leva as beatas à missa e dá aos preguiçosos - mesmo que ateus - a desculpa de que podem descansar porque é o dia "do Senhor". Entretanto, proíbe que se ligue para qualquer lugar pertinente – incluindo as Finanças, a Segurança Social e os serviços, exceto em caso de emergência. Faz com que gestantes de águas rebentadas levem uma injeção para atrasar o parto até horário mais conveniente, a menos que seja de todo impossível evitar que aquele ser ignóbil que decidiu nascer no final da semana escorregue por entre as pernas da mãe para o mundo. E garante-se que nascerá a chorar! Provavelmente por ser domingo.

 

Eu odeio os domingos. Entendo totalmente porque é que chamaram dias úteis aos outros dias da semana. O domingo é inútil. Tão inútil que precisa de outro dia inútil a precedê-lo, para abrir alas à sua inutilidade. Não serve para nada, senão para acentuar a preguiça e o ócio. Não serve para nada senão para nos iludir com a ideia do dia bom (que não é) e nos desiludir, a seguir. Não serve para nada senão para nos lembrar de que o dia que se segue é um voltar à rotina, esperando o domingo seguinte, pela crença desajustada de que “o próximo é que é!”.

 

Odeio os domingos. Não porque sou particularmente fã da segunda-feira, mas porque acho os domingos mais desonestos. Não tenho medo da honestidade. Por isso escrevo esta carta de desamor. Dizendo que o odeio. O domingo. E escrevo isto numa terça-feira. Porque se o escrevesse ao domingo, os correios estariam fechados...


 Marina Ferraz





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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Duas cadeiras no alpendre


 

Há duas cadeiras no alpendre. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas.

 

 

Há o espelho do caos. Lá dentro. Destroços. Destruição. Aqui e ali, indício de tempo que passou. Como se o caos não fosse caos, mas passado. E futuro. Porque não há quem tenha espaço para se mover entre os cacos sem os pisar.

 

Duas ou três almas bateram à porta. Entraram e saíram. Sem nunca se sentar nas cadeiras do alpendre. Encantadas, provavelmente, pelas cadeiras do alpendre: promessa de descanso e contemplação do belo. Promessa de sol e sossego. Entraram e saíram. Mais depressa. Mais devagar. Aproveitando uma refeição ou outra. Um leito ou outro. Entraram e saíram.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Como se imaginassem o chão limpo e os fragmentos varridos. Como se quisessem fazer da sala atolada um salão digno de festas palacianas. Como se quisessem vidros translúcidos para ver a paisagem em redor. Tão bonita.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Havia sempre as palavras. Conjuradas, como quem invoca os Deuses.

 

Se esta casa fosse minha...

 

Mas a casa não era de ninguém senão sua. E o caos era parte. Tal como a sala e os quartos. E os vidros sujos. E os cacos velhos.

 

A casa sabia que a cerâmica partida no corredor era uma história com vinte anos. E que as serpentinas acumuladas no canto eram o beijo inesperado no final de um concerto qualquer. E que a fotografia caída, empoeirada, era uma lágrima que pendia, como o candeeiro onde se tinha apagado a esperança, e cuja lâmpada fundida permaneceria assim até ao nascer da aurora. A casa amava a racha no vidro da porta, contra a qual o amor tinha embatido. A casa adorava o sopro do vento por entre a janela estilhaçada pela pedra do amante proibido, que entrara à socapa, subindo a trepadeira seca. A casa queria que o relógio parado continuasse a indicar a mesma hora.

 

Alguns tentaram. Verdadeiramente. Ficar. Organizar esse caos da casa destruída. Mas a destruição era o que fazia daquela casa um lar. E, por isso, apenas os passos fantasmagóricos de uma memória perpétua se faziam dançar, sobre a poeira, por entre a ruína.

Há duas cadeiras no alpendre. São os meus olhos. Ninguém se senta nelas. Não há memória de que alguma vez alguém se tenha sentado nelas. Ninguém se sentou nelas. Quando a noite cai, às vezes eu sento-me. Em ambas. Sou todos os meus eus, ali sentada. Oculta pelo manto negro. Vulto incorpóreo, guardando todos os meus cacos tristes.

 

Existe a lenda de que alguém me viu.

 

Um mito.

 

 

Há duas cadeiras no alpendre. E, acreditem: Ninguém – jamais – se sentou nelas.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Latência dos momentos

 


 

A bala atinge o peito. E o tempo estremece. Oscila nos microssegundos que ela leva a atravessar o ar, até explodir na carne. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. Latente.

 

 

 

As manhãs nascem sempre devagar. O sol tem preguiça de nascer. A luminosidade não quer abrir os olhos ao mundo. Nem eu quereria, se fosse luz... ver o mundo cansa.

 

Foi nisto que eu pensei, quando a bala embateu no peito. Ignorando os momentos latentes que separaram o dedo no gatilho e o encontro inusitado contra o oco de mim. E foi isto que me acompanhou na queda até ao solo, onde me desfiz, peça de mármore branco, sem outro destino que não o de cumprir os desígnios da vida.

 

De cada vez que alguém cai no chão, soprando um último sopro, cumpre-se o destino evidente que se sagrou na fecundação. Também esse momento latente, de óvulo invadido, gerando uma promessa de morte lá à frente.

 

Podia ter pensado em muitas coisas. Mas pensei na preguiça do sol e da luz. E na forma como eles dançam, ao longo do dia, uma espécie da milonga muito lenta, arrastando as pernas até ser hora de molhar os pés no mar.

 

Pensar em luz, levou-me até ti. Pensar em ti, levou-me a sorrir. E sorrir fez-me pensar no quanto amava a bala que, finalmente, me tirava o vazio do peito, valorizando-o com o aço amolgado, de listras-universo definindo impressões digitais do disparo.

 

Cabem muitas coisas num momento só, mas a nossa realidade é curta. A lente está focada no interior das amarras. Somos amplamente cegos e reduzimos o mundo todo ao corpo. Quando ele cai. Só quando ele cai nos apercebemos de todos os grãos de poeira no ar, de como ondeiam e dançam. Do som do vento. Das vozes distantes. Do pequeno sismo provocado pelos passos que correm, cada vez mais distantes. E as sirenes, cada vez mais perto. E o arrastar de um papel velho.

 

O momento latente que separa a vida da morte é o espaço que define as cordas do universo e o amplifica em nós. E o sol nasce tão devagar. E a luz está tão cansada.

 

Fechar os olhos é ver traços ambíguos da paisagem abandonada. Há um rio que se faz poça. Afogo-me nele. Entranho nele todas as peças distantes da alma. Até me sentir menos vazia. Por um momento. Só um. Latente.

 

 

 

A bala atinge o peito. Entre o metal da arma e a polpa dos tecidos, há apenas momento. O corpo encontra o chão e esvai-se em sangue. Momento. O sol renasce. A luz acorda. Devagar. Bate-me no rosto. Transforma a imagem do sonho no sonho da imagem. E abro os olhos. Trago nas mãos a miragem do futuro. E o momento latente em que penso em ti, disparando a arma que me mata. Por ter acordar. Como o sol e a luz. Desse sonho bom que é não ser.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Rebeldes

 

Fotografia de Skitterphoto

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

 

Quando o sol nasceu, eles ainda estavam deitados. Corpos meio suados, meio despidos, com as pontas dos pés tocando-se, ao de leve, debaixo das cobertas. Acordaram aos poucos, com o sol, para descobrir que a tirania tinha ganho as eleições e que a terceira força política era, agora, um antro de fascismo. Sabiam que não era uma notícia “de hoje”. Era uma construção de muitos anos, ancorada na iliteracia, no ciclo sucessivo e repetitivo que colocava sempre a mesma elite déspota no poder.

 

A política era importante para eles... mas não era tudo. E, por não ser tudo, não foram as notícias a primeira partilha da manhã, mas os corpos – esses que, já meio despidos, acabaram por se libertar do resto das roupas, e que já meio suados acabaram por fazer um pequeno Verão no meio das cobertas húmidas.

 

Disseram bom dia. Depois. Só depois. Ambos cientes de que, se olhassem as manchetes, não teriam “bom dia” para dar. Uma espécie de azia no peito, por detrás dos sentidos, colou-lhes os pés ao chão para o dia que começava. Para o trabalho que chamava. Para as tarefas que urgiam.

 

Partilharam, ao longo do dia, algumas notícias e artigos de opinião, não só entre si, mas com os amigos comuns. Por detrás da partilha, a memória desmascarada de muitas manifestações que faziam da bandeira nacional capa de um herói qualquer que a Marvel renegou. Por detrás da partilha, a memória da luta que tinha resultado em quase-nada. E teria sido nada, se não se tivessem, pela manhã, com os corpos suados e as pontas dos pés tocando-se, até não serem só as pontas dos pés a tocar-se.

 

Assistiram. Sentados em frente aos computadores e atrás de textos e tarefas bem distintas, ao adensar da mágoa causada pela insistência na distância, no medo, na narrativa fatal da curva achatada que – insistiam – só achatava curvas de sorrisos que mereciam pintar o rosto.

 

Tendo o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu, eles renegaram a distância e combinaram encontro. Na mesma cama, no mesmo suor, na mesma ideologia esquecida e repetidamente deixada, espalhada pelo chão da casa, com as roupas.

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Felizes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu a importância das manhãs nuas ao sol nascente e dos abraços e da luta pela liberdade.

Ser feliz nunca foi mais raro.

 

Partilhar(-se) nunca foi mais raro.

 

Viver nunca foi mais raro.

 

 

E mais de dois milhões e duzentas mil pessoas querem que assim continue.

E mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas não querem mudar de facto.

E quase quatrocentas mil pessoas querem que a felicidade, a partilha e a vida voltem ao tempo dos campos sem cravo, onde nem vida, nem partilha, nem felicidade têm lugar.

 

 

 

 

Tiveram o desplante de ser. Rebeldes. Nesse que é o maior ato de rebeldia perante um mundo que claramente esqueceu.

 

Por isso, abraçaram-se na noite. Dispostos a lutar até ao último suspiro por esse direito. O de ser. De partilhar. De viver. Ainda hoje. E outra vez amanhã. Quando o sol acordar para iluminar a tirania que se instalou.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Expulsar

 


Há demónios perdidos em mim. Seja eu quem for. Onde estou. Esteja eu onde estiver. Há um demónio ou outro, que não quer ser expulso, porque tem o meu nome. Porque se apegou aos meus olhos. Porque me morde as feridas e sabe as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabe. Mas não sabe porque sabe. Sabe porque as sente também. Há um ou outro demónio perdido em mim.

 

 

Dizem-me para os expulsar. Os demónios. Dizem que é hora. Como se tocassem badaladas específicas nos relógios da alma, que servissem de alarme para indicar o tempo certo de largar o que nos faz ser. Há gritos mudos nos poros. Sinto os nervos, debaixo da pele, contraírem e doerem. Abraçarem os demónios. Dizerem que não. Acalmo-os com chá e fumo.

 

Um dia, eu fui eu sem as vozes. Essas que falam da expulsão do que sempre foi meu. Essas que falam sobre o despejo de quem sempre morou em mim. Silenciá-las nos recantos leves do espetro poente dos meus olhos dói como respirar. Lembra-me o tempo. Outro tempo. Um tempo que foi há muito tempo atrás.

 

Talvez por isso fiquem. Levemente tartamudeando, de forma contínua, nos meus ouvidos roucos. Insistindo na conjugação do verbo expulsar. Como se eu fosse gente das lidas. Como se eu fosse unguento sagrado. Como se eu tivesse as palavras divinas ou o latim suficiente para me tirar de mim. Sussurram. Atrocidades. Coisas que eu não quereria ouvir, mesmo se os ouvidos fossem sãos. Mesmo que eu fosse sã. E a mente mente. Constantemente. Notoriamente. Toda cheia de advérbios de modo e de modos sem advérbio, sem acento mas com assento permanente nas bancadas dos meus olhos, que choram. E os demónios limpam-me as lágrimas. E os demónios salvam-me. Outra vez.

 

Os demónios nunca me dizem para expulsar as vozes. Mesmo sabendo que elas causam as feridas. Lambem o sangue e bebem-no. Engolem-no. Juntamente com o ácido das palavras e a maldade dos gestos. Perdoam. E seguem. Revolvendo os nervos e acarinhando as cicatrizes velhas, das vozes antigas... tão iguais às de hoje... e às de amanhã... porque há sempre vozes futuras, que aclaram a voz na noite.

 

Se me dissessem para expulsar as vozes, os demónios diriam o que eu já sei. Que há mais julgamento nas opiniões do que nos tribunais terrenos. Que há mais lixo no eco dos pensamentos fortuitos do que nas poças lamacentas das rias. Que há mais palavras feias no moralismo do que no dicionário dos impropérios onde se banham. E é verdade. Só que os meus demónios são pobres de opiniões, quando se trata dos outros... e fracos de moralismo... e incorretos de todas as maneiras certas. Nunca me dizem para expulsar as vozes que me dizem para os expulsar. São condescendentemente calmos. Só querem estar. Só querem ser... e que os outros estejam e sejam também.

 

 

Apegaram-se aos meus olhos. Mordem-me as feridas e sabem as dores que os outros esquecem com facilidade. Sabem. Mas não sabem porque sabem. Sabem porque as sentem também. E sabem. Sabem que os ouvidos são roucos, que os pensamentos são loucos e que os danos provocados pelas vozes são poucos. Sabem que não os vou expulsar de mim. Porque são parte de mim.

 

E as vozes dizem.

Para os expulsar.

 

Irei. 

Quando partir.

 

E todo o pulsar do meu coração for também um ex-pulsar.

 

  Marina Ferraz





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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Não faz mal, vida

 



Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te. E faço-o porque não quero carregar o peso da mágoa, a angústia do tempo... todos esses pedacinhos de ressentimento. Não faz mal, vida... está tudo bem.

 

 

O dia nasceu enevoado, mas limpei as nuvens do céu com o pano do pó. Esfreguei os cantinhos azuis, até resplandecerem raios. Deixei que eles viessem secar-me a roupa estendida, com aroma a sabão de Marselha e verão.

 

Senti que o frio adensado ainda me prostrava os pensamentos. E acendi a lareira. Fiquei a observar a forma como os ramos secos reclamam, à medida que se transformam em cinza. E a forma leve, quase maternal, como o fogo os envolve, como se os embalasse, antes de os destruir.

 

Pensei em ti. Vida. E em todas as formas como me deste os ramos secos do peito. E em todas as formas como me apagaste, com as tuas chuvas e pós, o fogo da alma. E senti. O toque ressentido dos dedos – os teus dedos – a roçar as feridas, gélidas e purulentas, do que o tempo não sarou.

 

Por momentos, quis culpar-te, sabes?! Culpar-te pela mágoa que me provocaram os dias. Pela invisibilidade do eu. Pelo tremer no escutar do meu nome nos corredores. Pelo “hoje não, quem sabe um dia!”. Pelo “adeus” pincelado de sabores e brisas e promessas. Pelas pegadas que o mar apagava, junto à Foz. Pelas oportunidades, arrancadas das mãos secas, com os cadernos meio escritos, meio por escrever. Pela chamada das seis, eternamente calada no silêncio do meu telemóvel. Por momentos... quis culpar-te... mas não faz mal, vida!

 

Não quero carregar a culpa, seja ela tua ou minha. Não quero esse peso em mim, alheio ou não. O rancor é uma cicatriz eterna e funda, que enraíza e mói, até que tudo seja frio e seco, como os ramos que jamais serão cinza. Decidi limpar as nuvens por dentro com o pano do pó, deixar os raios resplandecer. E acalmar o meu próprio frio com o reacender de fogos antigos e abraços renovadamente eternos. Queimar a animosidade nas fogueiras de uma inquisição só minha, onde todas as bruxas são salvas e toda a tirania se reduz ao nada.

 

Cheira a sabão de Marselha e a um universo de possibilidades.

 

Perdoo-te. Nem precisas de pedir-me que te perdoe. Perdoo-te.

 

Não faz mal, vida.

 

Sobrevivi.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Bolinha amarela

 

Fotografia de Hans

Quando era pequena, contavam-me muitas vezes, em tom de anedota, uma longa, longa história chamada A Bolinha Amarela.

 

Esta história falava-nos do Pedrinho, criatura nascida entre a fortuna, que desde cedo teve acesso a… tudo.

 

A história, que lenta e dolorosamente se conta ano a ano, mesmo para criar um entretém de tempo infinito na piada cuja punchline parece não chegar nunca, leva-nos do primeiro aniversário do Pedrinho até à sua precoce morte, aos vinte e tal, travando em cada aniversário e Natal, para nos dar conta de que esta criatura pedia sempre aos pais, como prenda, uma bolinha amarela.

 

Da história, ficamos a saber que o moço, na sua rica família, recebe nestes eventos os melhores brinquedos, viagens, um apartamento de luxo, um Ferrari, um iate… enfim: um gigante e luxuoso conjunto de tudo! Até ao momento culminante da história, onde, espetando-se com o seu caríssimo Ferrari, todo entrevado, no hospital e a mal conseguir falar, perguntam a um Pedro moribundo se ele quer alguma coisa. E a resposta é: uma bolinha amarela. Consternados, os pais finalmente perguntam: Mas para que queres tu uma bolinha amarela?. E ele responde: Quero uma bolinha amarela porque… e morre.

 

Eu sei que é suposto ser uma anedota. Ou, pelo menos, uma história de quase uma hora, onde as expetativas da punchline são hilariantemente frustradas. Mas, numa análise mais crítica, também é uma boa forma de olhar para a realidade quotidiana de uma sociedade meio surda, meio cega, totalmente orientada para o próprio umbigo… e que nem sempre considera o outro enquanto ser pleno, completo, individual, capaz de desenvolver ideias próprias e de ter desejos únicos e concretos.

 

Apercebo-me disto quando enuncio pedidos simples, sobre o que eu quero; e me tentam dar mais, melhor. Apercebo-me disto quando digo que não quero algo, e mo oferecem à mesma, porque é bom, porque é útil, porque “vais ver que te dá jeito”.

 

Talvez, por vezes, as pessoas prefiram a sandes mista ao restaurante gourmet; passear junto ao mar em vez de ir às Maldivas; estar quietas e em silêncio, em vez de experimentar uma one-lifetime-adventure; uma bolinha amarela a todos os luxos do mundo.

 

Acredito que a pessoa mais especial não é a que nos oferece as coisas mais caras, mas a que dedica uns minutos da sua atenção para ouvir verdadeiramente o que queremos, do que precisamos, como pode ajudar… É aquela que consegue despir-se de si para entender o outro, que respeita que as necessidades e as vontades alheias podem não ser iguais à sua.

 

A individualidade é mesmo assim. Ser e deixar ser é mesmo assim. É tão fácil… e tão, tão raro...

 

Exprimo, sem pudor, o que quero e não quero. E gosto de coisas pequenas. Simples. Das bolinhas amarelas da vida…

 

Não me interessa se o Pedrinho morreu muito rico, porque nunca teve o que queria. E não importa como acabava a justificação do Pedrinho porque, sejamos francos, se ninguém o tinha ouvido até ali…

 

Eu sei que estamos no meio de uma pandemia… mas acho mesmo que estamos a precisar mais de reforçar a nossa humanidade do que a nossa imunidade…

 

Por isso, uma sugestão:

Vamos ouvir mais…

Ser mais…

Ser melhores…

 

Porque só eu sei como desejo a todos que encontrem essa bolinha amarela que - vá-se lá saber porquê - é tão pouco… e tão importante!



 Marina Ferraz





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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O quinto shot

 


Depois do quinto shot a conversa talha-se em inglês. O inglês é simples e acompanha o ritmo do pensamento. Alerta a bartender para a ideia de que acabaram os copinhos cheios de absinto de 80% vol. A partir dali, só suminho pintalgado de álcool e olhares de confirmação, para ver se estamos bem.

 

Sabemos que o inglês a alerta, mas não nos importamos. Queremos só a pacatez de estarmos as duas, sentadas no balcão do bar, meio obscuro, a beber um bocadinho acima do razoável, obrigando os fígados a arcar com as consequências de todas as escolhas feitas nos momentos em que o coração domina o cérebro.

 

Ela diz-me uma ou duas coisas que eu já sei. E eu respondo com três ou quatro que ela já sabe. E sorrimos uma à outra. Ponteando a conversa com exclamações de apreço. Tive saudades tuas. Damos as mãos.

 

Levo sempre comigo um cansaço que me confere o ar inegável de quem inveja os mortos. E ela esconde-se nas camisolas desportivas – usualmente da secção infantil de rapaz – e sorri-me, meio preocupada com as olheiras.

 

Devemos ser esquisitas. Quando nos perguntam se queremos e precisamos de mais alguma coisa, queremos somente o que enche os 44 ml do copo arrefecido, duas rodelas de limão e sal. Devemos ser esquisitas. Brindamos sempre ao mesmo e com a mesma intenção. E até levamos livros e cadernos e cartas de tarot para o bar.

 

São histórias que se repetem. Que se repetiam. Que nunca eram a mesma história, mas condensavam um universo de pequenos universos do que pode ser narrado em loop. Simples. Como o quinto shot que nos levava ao twist linguístico.

 

I believe I’m a bit drunk now.

Me too.

We’ll be fine...

 

Era para termos ficado. Bem. Mas o bar fechou. A pandemia veio. Os bares abriram – não aquele, outros – e a entrada foi-nos vedada por novas normas. Somaram-se mais normas e novas portas fechadas. Beber ao balcão tornou-se perigo de saúde pública. Beber na via pública é proibido... e pedem que mantenhamos a distância. Não da bebida... uns dos outros. Menos afetos, menos toques, menos contacto...

 

E claro que o álcool não importa nada para a minha história com ela. Não cumprimos a política do não-afago. Continuamos a encontrar-nos quando o tempo permite e a deixar cair dos lábios expressões que enunciam a saudade. Reviramos os olhos às circunstâncias e aos rebanhos. Mas sentimos – eu sinto – que nos roubaram um espaço que era nosso, numa tradição que era nossa... e que faz falta.

 

 

Aos bocadinhos, os arcos-íris ridículos que penduraram em todo o lado – vai ficar tudo bem – perdem a cor e o sentido. Levam-me àquele balcão de bar, onde me sentava com a minha melhor amiga...

 

E, olhem... não me lembro... mas devo ter bebido cinco shots. Porque só me ocorre uma palavra. E está em inglês. Fuck!

 

  Marina Ferraz





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terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Forca

 

Fotografia de Hélio Silver
Modelo: Ana Pessoa


Cordas. Momentos. Nós.

 

Nós. Cordas. Acordas e os momentos foram. Nós. Um tempo passado qualquer. Até ser só silêncio. Cordas. Filamentos unidimensionais vibrantes. Teoria. Unindo cada elemento da Natureza. Quero ser. Natureza. Com ela como ela é em nós. No nós. Nos nós. Digo que está na hora. Aprendo-os, um a um.

 

Formo o laço com a ponta que a precede e seguro-a. Puxo a parte comprida para o solo. Laçada. Da ponta mais longa num entrelaçar sem culpa. Uma laçada a mais. Espaço reduzindo. Laçada afastada. Robustez. Puxo, entre mão e mão, criando distância entre ponta e ponta. Nós. Nós como nós. À distância.

 

Leio sobre sucesso e silêncio. O papel da noite. O papel da hora na qual se esquece a vida. E sobre a estaca. Nova. Ou a ventoinha. Estável. Ou o vão de escada. Pedra-mármore.

 

Uma última dança de pés pendentes. Descalço os pés. A sola do pé é sonho desenhado no bailado do fim. E os momentos dançam. Nós firmes. Cordas robustas. Espaço e hora alinhados com o horizonte do (a)mar.

 

Orgulho-me da forca. Da suavidade do seu toque sobre a pele, ardendo de desejo. Pelo vibrar dos filamentos. Teoria. Unindo-me à Natureza. Até sermos nós.

 

É um salto e um deus velho, com prefixo e prótese. Um salto. Um sopro. O último. Seria o último. No nós. Nos nós. Nas cordas. Mas o tempo vem. A corda parte. A corda desata. A trave estala. O chão. O momento. O sôfrego engolir do ar. A falha. E o riso. Sempre o riso. Desse fantasma imprudente que me ensina sobre as laçadas e me observa as tentativas loucas do fim que não vem.

 

Incapaz de cumprir o meu propósito, pergunto-lhe o que me falta. Logo a mim, que aprendi sobre os nós e as horas e as estacas. Logo eu, que escolhi a corda certa e o momento exato. Sorri. Ri. Responde-me que não é sobre o que me falta.

 

Presa ao insucesso e ao fracasso - desconhecido dos outros, mas tão profundo em mim – sinto a espiral de desencanto ao lembrar a forca ineficaz, sempre falha no cumprir do meu ímpeto.

 

É antes – asseverou - o que tens de sobra. O que pões nessa forca sempre te fará viver mais um dia...

 

Perguntei. O quê?

 

Sorrindo, respondeu-me:

 

Uma cedilha.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Filosofia

 


“Nenhuma doença faz bem à saúde.”

- António Costa

 

 Filosofia. Pura. Da que faria corar Aristóteles e equivocaria Platão. Epicuro poderia discordar, já que defendia que “não se pode não ter medo quando se inspira o medo”. Mas não deixa de ser filosofia. A filosofia da constatação do óbvio. Algo similar à que pinta nas retretes das estações de serviço, de Norte a Sul. E que, de tão óbvia, parece certa, embora, na prática, dois dedos de testa cheguem para a questionar.

 

Eu poderia, no geral, concordar. Sobre a doença. Que não faz bem à saúde. Mas não é verdade. E não o é por várias razões.

 

Para começar, toda a imunidade que construímos ao longo da vida provém – literalmente - de uma reação física à doença. É ficando doentes que o corpo cria anticorpos. À medida que combate vírus e bactérias e partidos políticos. É assim que, ao longo do tempo, nos tornamos imunes às viroses, às infeções e à estupidez mórbida.

 

Na maior parte dos casos, a doença é o que cura a doença futura, com ou sem a ajuda de medicação extra – sim! Que ninguém nega o papel incrível da ciência no processo! – Mas, aqui, um aparte: se não fosse a doença e a curiosidade humana sobre a doença, nenhuma cura teria saído dos laboratórios. Diriam, com toda a sua sabedoria, os homens que os ocidentais tomam por incultos, que é preciso o veneno da cobra para se curar a mordida.

 

E se a doença não for curada, numa análise muito pessoal, acho também que faz bem à saúde. Nunca se ouviu falar de um morto que ficasse doente. Talvez todas as doenças mortais façam, na realidade, bem à saúde.

 

Sobre a classe política portuguesa e todas as suas demonstrações de eloquência, posso ainda asseverar que me fazem sentir que a doença teria, se em escala e proporção letais e ubiquamente orientadas para esta categoria social, o potencial de fazer muito bem à saúde do país, que continua num remoinho de decadência às mãos de pobres tontos que vivem de chavões, lugares comuns, usura e contas offshore.

 

Simone de Beauvoir, também ela filósofa, desta feita existencialista, disse um dia que “começamos a morrer assim que nascemos”. É nesse caminho que estamos. Eu estou. Estou a morrer. Cada dia a mais é-me um dia a menos. Estou a esgotar o tempo. A subtrair as respirações. A ter uma contagem cada vez menor de sístoles e diástoles.

 

A vida é curta. Não quero vivê-la com medo. E recuso a ideia da doença que faz mal à saúde. O que faz mal à saúde é isto. Saber que vou morrer. Que não tenho medo da morte. Mas que me assusta a ideia de morrer sem ter vivido. E que é isso que querem que faça. Para não adoecer...


 Marina Ferraz





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