terça-feira, 9 de junho de 2015

Premonição



"Lê-me a sina", pediste. Tinhas o jeito abrupto de um homem do mar mas a suavidade terna de amante que há muito navegava as marés do meu corpo. Agarrei-te as mãos calejadas. A manhã cinzenta, ainda nos primeiros acordes de luz, era feita de névoa e escuridão. Lá fora. Mas não na nossa cama, onde me estendias a mão e me pedias que te lesse a sina.
Fechei os olhos. Fechei-os para te imaginar o rosto. O teu rosto cheio de sorrisos e sonhos para amanhã, espelhando a felicidade do mundo, irradiando sonhos, impulsionando a minha fé na vida. Fechei-os no toque quente da tua mão, desejando que ela se desprendesse da minha e percorresse as curvas do meu corpo cigano, em busca de um momento de prazer antes da partida. Desejaria isso. O teu rosto na minha mente, aquando desse toque feito de conforto. Seguido do anuncio simples: "a tua sina diz que, quando voltares, teremos de volta a felicidade que hoje levas no convés". Mas quando fechei os olhos. Quando os fechei para te imaginar o rosto. Quando os fechei, à espera da sina mais breve e concreta, onde eu era tua e tu eras meu, tudo o que vi foi o vazio de dois olhos abertos, onde não havia esperança, onde não havia felicidade, onde não havia vida. Uma imagem longínqua, que parecia desfocar-se nos destroços amadeirados de um barco com o meu nome. Subitamente, o calor da tua mão não era conforto. Queimava. A imagem era um fragmento inusitado de tudo o que eu não queria ver. Tão crua, tão fria, tão vazia que dela tive o ímpeto de desviar o olhar, o ímpeto de te soltar a mão num recuar melindrado. Mas tinha mergulhado em ti. Tinha mergulhado nos confins do teu futuro. E sentia no peito, como via, com os olhos cheios de medos, esse amanhã.
A imagem permaneceu. Com as ondas. Subindo e descendo nessa incessante náusea de improváveis. E a chuva. A chuva caía, cada vez mais gélida, sobre esse oceano onde, de olhos abertos, não vias. E a madeira a flutuar tornava-se uma imagem cada vez mais esbatida, cada vez menos nítida, à medida que enegrecia à tua volta o mundo e o inferno te puxava para o fundo. Fundo. Cada vez mais fundo. Braços pendendo, ondeando, sem vida que os fizesse esbracejar. E quero gritar "luta". Mas fica preso na garganta o grito que te sabe ido. Não podes lutar. Mas eu posso. E luto contra essa imagem que insiste em entrar em mim, no toque da tua mão. Mas a imagem permanece e continuas a afundar-te, afastando-te do ar, afastando-te da madeira tosca que flutua, afastando-te do sonho que sonhámos juntos.
Sinto as lágrimas nos olhos. Sinto-as como se a premonição desse destino fosse tão concreta como uma notícia confirmada nos anteontens do mundo. E obrigo-me a abrir os olhos, enquanto a tua mão calejada se retira da minha e se dirige ao meu rosto molhado, para o limpar.
"Não vás", imploro-te.
"Ora, sabes que vou...", é a resposta sem perguntas. E nascem em mim mil dúvidas. Para que te leio eu a sina, meu amor, se não queres sabê-la? Se não me ouves? Se sempre te prevejo a morte e sempre a ignoras? Não te faço estas perguntas. E tu não esperas por elas. Esperas apenas provar-me errada, entrando de braços abertos pela porta deste nosso lar, viúvo de finais felizes.
Beijas-me os lábios. Beijas-mos como se eu tivesse acordado de um sonho e nada fosse verdade. Beijas-mos como se fosses voltar a beijá-los. E, agarrando nas tuas coisas, vais, deixando no ar um "amo-te" que serve também de "adeus".
Com a porta batida, digo-te que sei que não me amas. Amas, certamente. Mas não me amas. Não sei quem amas mais. Se é o mar ou a aventura ou a sina que te espera noutro porto. Não sei quem amas mais. Sei que não sou eu.
Fico sozinha com a cama desfeita. Não sei se voltas. Não sei o que farei se não voltares. Não sei o que fazer com a imagem concreta da premonição que me atormenta há tantos anos. De todas as amantes que podias ter tido, escolhes dar-te a essa cortesã imprevisível, cheia de marés de temperamento instável.
A minha alma cigana não quer o luto. Peço ao mar que hoje te leva que em breve te traga de volta. Não sei se ele ouve. Sinto o eco da premonição nas paredes nuas da casa deserta. As ondas rebentam. A chuva cai. Amanhece lá fora. Anoitece em mim.

Marina Ferraz
* Imagem retirada da Internet



Este texto integra, também, a colectânea "Premonições" da Lua de Marfim Editora

5 comentários: