quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Declínio da Primavera



Pura e leve amanhece
Nas auroras outonais
E vã estremece…

Despojada da mais remota vida,
Deixa-se olvidar pela quimera.
Vã se desvanece e cai esquecida
A última flor da Primavera.

Olvidada pelo mundo que conhece
Cai no silêncio e muda morre
Com ela a Primavera perece…

O universo conspira incerteza,
O mundo torna-se enfadonho,
‘Inda assim, com toda a realeza,
Cai a vã pétala de sonho.

Sentindo as nuances de abandono
Cai tranquila na manhã
Como s’apenas tivesse sono…

Cai, perecendo… é mais um dia!
Ninguém ouviu e ninguém espera
Que na pétala que hoje caía,
Tombasse igualmente a Primavera.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 23 de agosto de 2016

Atrás da bandeira



Estamos assim, mais ou menos, escondidos atrás da bandeira. Da parte vermelha da bandeira, para ser mais exata. A esperança é tão escassa que já não esconde ninguém.

Estamos escondidos atrás dos homens que morreram no mar para nos fazer mundo. E escondidos atrás do sangue vertido para nos fazer gente. Temos canções sobre a morte. Mas seguimos a vida a fugir dela. Perdemos tanto tempo a fugir dela que, por caminho, não vivemos. E dizemos como é brava a nossa carne mole, escondida atrás das glórias (?) do passado. O que fizemos pela glória? Nada. Nascemos. Não fomos nem marujos a tombar das caravelas, nem soldados a levar balas no peito. Não fomos donzelas a chorar à beira-mar pelos filhos que não retornaram e as filhas que, sem o saber, se faziam viúvas no partir da nau. E eles, que embraveceram as estruturas finas da nação, deixaram no aroma da maresia a ilusão. Tão valentes que se fizeram imortais e ganharam a fama questionável de heróis e Deuses. Mas nós? Nós estamos escondidos. Atrás da bandeira.

Estamos escondidos atrás da baliza, a ver os outros jogar. Roubamos-lhes o título, quando é bom, porque sentimos que nos representa. Da mesma forma, xingamos os maus resultados como se nos negassem a bravura dos nossos antepassados. Esses que eram fortes e indomáveis(?). Mas nós? Nós estamos escondidos. Atrás da bandeira.

Nos recantos das vitórias alheias, vamos buscando um pouco do verde que ainda nos pinta o lado esquerdo da bandeira. Coração de esperança, ondeando ao vento. Mas escondemo-nos atrás das glórias (questionáveis) do tempo que não retorna. (Não vá o futuro tecê-las e fazer-nos descobrir que, tal como os navios, naufragámos a nossa força ao largo do Cabo das Tormentas). Somos um povo. Somos uma nação. Unidos pelas causas mais insípidas ou pelas mais coerentes. Mas não somos heróis. Não acho que devamos pensar, sequer por um momento, na heroicidade do nosso corpo depositado em frente aos livros de História e aos ecrãs de televisão. Estamos escondidos. Gritando "golo", ocasionalmente, mesmo quando ele é mero golpe de sorte. Estamos escondidos. Atrás da bandeira.

Estar escondido é mais confortável. Mas ouvi-lo não é. E as vozes que gritam pela força que nos torna os melhores, os maiores, os favoritos são as mesmas que ultrajam o sentir destas palavras. Porque elas incomodam e roubam ilusões. E, sem as ilusões, subitamente somos apenas do nosso tamanho e não do tamanho dos feitos dos outros. E que pequenez essa, que é a nossa, pessoas simples e que nunca fizeram nada para enaltecer as cores da bandeira que nos esconde.

Estamos assim, mais ou menos, escondidos atrás da bandeira. Da parte vermelha da bandeira, para ser mais exata. A esperança é tão escassa que já não esconde ninguém. Pelo menos a minha já não esconde ninguém. Mas também não me escondo atrás dela. Não tenho, talvez, a força dos homens que nos marcaram o lugar no universo, nem quereria tê-la, porque a visão ampla apaga a glória. Não tenho as ambições dos que nos colocam no centro das atenções do mundo nem vontade de falar de uma história maculada por mortes e escravatura como se fosse sinónimo de glória. Mas tenho voz. Tenho opiniões. E pouca vontade de gritar "golo". Uma caneta e papel. Posso escrever. E, se posso escrever, não tenho, não vou esconder-me atrás da bandeira.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Deixa arder



Deixa arder. Como ardem as florestas. É triste. Mas deixa arder. E põe as culpas na vida. Ou nas outras pessoas.
Deixa arder. O sonho. A vida. A alma. Depois diz que tens pena. Porque a alma não se fez. Porque a vida não te quis. Porque o sonho não foi vida. Deixa arder. Uma oportunidade atrás da outra. A primeira porque não tens tempo. A segunda porque não tens capacidade. A terceira porque não tens vontade. E chora, depois. Agarrada à culpa alheia. Diz que te tramaram o sonho.
À medida que avanças na estradinha de ladrilho cinzento, vai dizendo que os passos são ditados por quem fez o caminho. E que, se é cinzento o ladrilho, eles te regem que os cinzentos passos avancem rumo ao cinzento de um futuro sem esperança. Não faças nada para mudares os caminhos, e as cores, e os destinos.
Arruma os arquivos, um a um. Põe-os na estante, catalogados. O sonho que nunca cumpri. A vida que nunca tive. O lugar onde nunca fui. O amor que nunca senti. Catalogados assim, a cinzento, na estante do tanto que não foste. E, se te perturbar a presença das folhas enumeradas na estante ao lado da qual perdes a poesia dos dias, aquece lume. Queima a sanidade. Amarrota o que podia ter sido e atira à chama. Deixa arder.
No centro do fumo – também ele cinzento – aceita a vida cinzenta que te destinaram. Não será difícil aceitar a proximidade quieta do tempo, se o fumo não te deixar ver que, além, existem montanhas e vales e lagos e mares de possibilidade por explorar. Cega no centro do fumo, à medida que deixas que ele te entre nas veias e te programe para pensar que é melhor assim.
Acorda um dia. Feliz. Não feliz-feliz. Mas feliz como se diz ser a felicidade nas ruas de ladrilho cinzento. E faz os teus passos – cinzentos e programados. Vai. Começa essa rotina de círculo infindável e desgastado.
Deixa arder. O sonho. A vida. A alma. Como ardem as florestas. É tristemente indolor. Quando deres conta, ardeu.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 9 de agosto de 2016

O problema do mundo



Veio um atentado
E toda a gente se esqueceu
Dos problemas políticos

Veio a doença
E toda a gente se esqueceu
Do atentado

Veio a guerra
E toda a gente se esqueceu
Da doença

Vieram os refugiados
E toda a gente se esqueceu
Da guerra

Vieram os problemas políticos
E toda a gente se esqueceu
Dos refugiados.

O problema do mundo
Não é o ciclo
São as pessoas que se esquecem



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 2 de agosto de 2016

Viver sem ti



Tem sido difícil viver sem ti. Quando acordo, com o beijo do sol e o calor da manhã. Quando pouso os pés na madeira limpa do soalho. Quando canto fado no chuveiro. Às vezes, sorrio. E, depois, lembro-me que não devo sorrir. E repito: tem sido difícil viver sem ti.
Tem sido difícil sair à rua. Saltar de pedra em pedra, feito criança, brincando ao jogo das cores. E palmilhar as ruas sem destino, à procura dos sonhos nos recantos entre os azulejos toscos e as rachas das paredes. Não ter hora para voltar. Não ter compromisso que me prenda. Fico a ver o mundo que passa e o rio que corre. O trânsito que flui. Às vezes sorrio. E, depois, lembro-me de que não devo sorrir. E repito: tem sido difícil viver sem ti.
Às vezes chego inesperadamente depois das sete a casa. E abro a porta sem cuidado. Chego depois das sete. Mas nunca chego atrasada. Não há horário. Nem hora certa. Nem obrigações. Entro em casa, dispo-me a caminho do quarto. Uso a minha camisola velha e os calções de desporto. Os pés nus no soalho. Ponho a rádio na estação de músicas lamechas e salto do sofá quando as baladas dão lugar a uma música dançável. Faço desfiles pelos corredores. Janto morangos com chocolate negro. Às vezes sorrio. E, depois, lembro-me de que não devo sorrir. E repito: tem sido difícil viver sem ti.
A minha mãe liga às terças e quintas. Na sua voz, a comiseração cortada e contada nas frases do costume: “não precisas de nada?”; “estás bem?”; “tens de aguentar firme!”. Aos fins-de-semana, os amigos arrastam-me para os bares. E repetem, feito oração, as premissas do costume: “tens de superar!”; “eu sei que não estás bem, mesmo que digas que sim…”; “depois de uma montanha, espera uma maior.”.
Eu olho ao espelho. À procura da dor. À procura da solidão. À procura da vergonha. Mas tudo o que vejo sou eu. Ponho a língua de fora. Sorrio. E, depois, lembro-me. Não devia sorrir. Devia chorar. Dizer que tem sido difícil viver sem ti. E talvez seja. Mas sabes? Foi mais difícil viver sem mim quando estava contigo.
Sorrio. E não tenho vergonha de sorrir. Tem sido perfeito viver sem ti.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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