quarta-feira, 29 de março de 2017

Adeus paredes e tectos



Adeus.
Há na partida segredos que ficam. Colados nas paredes como manchas de humidade e rachas. Não adianta esfregá-los com lixívia. Criam formas indefinidas sobre a vida que, acontecendo, ali se fixou. E permanecem.
Despeço-me do som retumbante da gráfica. Despeço-me do vento nas cadeiras. Despeço-me do bebé que chorava, metodicamente, no andar de cima e dos passos corridos dos pais que o mimam demais. Despeço-me da vizinha do lado – estereótipo disfuncional entre as mulheres e os carros – incapaz de estacionar sem ocupar três lugares. E do senhor do terceiro andar, que, feito estrela de cinema, sorri sempre e acena, como se alguma vez tivéssemos trocado palavras de apreço.
Despeço-me daquele piso que não serve para nada, no topo, dando para o telhado, onde nem o elevador chega. E das suas vistas sobre a serra e a cidade iluminada durante a noite. Despeço-me do chão desse piso que, manchado de sangue e lágrimas, me serviu de abrigo e me abraçou, maternamente, nos momentos de maior mágoa e solidão.
Adeus.
Marcado no chão do quarto, nas paredes do quarto, no tecto do quadro. Luxúria e magnetismo. Ausência de pudor. Dei-me e vendi-me em troca de prazer neste quarto. E, de tão deliciosamente lasciva, a forma como o fiz é de conhecimento público e cordialmente pouco reconhecida. Mas despeço-me com particular pesar do quarto. O primeiro quarto no qual despi mais do que a roupa, mas também os muros da alma. Aqui, imaginem só a loucura, deixei que me tocassem os recantos mais recônditos da alma e do coração. Até que não houvesse mais nada senão amor e intimidade. E foi por isso que, nos momentos em que a vida doeu, eu odiei que se imprimisse no espaço essa dor de momento, como se ela maculasse memórias intemporais de amor. Despeço-me do quarto. Com algum pesar. Porque nele percebi que o amor, não sendo uma coisa, também se faz. Literalmente. Fabrica-se, artesanalmente, num sem fim de acções que se consubstanciam no corpo mas não lhe pertencem.
E a cozinha. Aquela mancha pequenina na banca, do vinho derramado, que ele tenta limpar até arrancar a pele das mãos. E a mancha fica. Que maravilhosa a memória do vinho que ali se derramou, juntamente com o riso e a vontade cega de que o riso não termine. E passos de dança sobre o chão de azulejo. “Eu não sei dançar”. Sabe. Claro que sabe.
Lá fora, ao vento, dança o alecrim. Plantado no suor paterno que me uniu, por fim, às pontas soltas do que a juventude me não permitia. Plantei relações naquela “quintinha”, onde se enterraram oferendas no dia a seguir às festividades. E, se chegou lá fora o ruído de uma qualquer discussão, ele apagou-se no cantar das noites de fogo-de-artifício quando, agarrados e cheios de frio, pusemos os olhos no céu – e um no outro – e no céu outra vez. Havia cores e calor. Em nós. No céu também.
Adeus.
Esvaziam-se, aos poucos, os armários que ficam. Dão lugar aos caixotes que vão. Isto vai? É a pergunta lançada, segurando as memórias que se agarram às paredes e tectos. Vai! E também fica. Espero que fique para que alguém conte outra história com elas, imaginando desenhos de animação onde só há realmente espaços de vazio preenchidos de recordação.
Na parede da cozinha, fica a memória permanente de uma menina que descobriu o amor. Asas abertas. E sentidos de eternidade. Feitos a giz. E, se é fácil limpá-lo da parede, quero ver limpá-lo da alma… não vai. Ficará agarrado, lembrete constante de que nada nem ninguém pode partir de onde foi (in)feliz.
Adeus.
Adeus paredes e tectos. Adeus chão. Deixo-vos o que viram de amor e ira. De contentamento. De dor. De felicidade. E levo algumas memórias de como abraçaram momentos que se perpetuam em mim e não desvanecem com o último bater da porta.
Um último olhar.
Um último texto, nesse olhar.
Coisa estranha, esta memória que me faz julgar que apenas o bom foi real.
Levo apenas comigo o que foi bom, está bem? Espero que guardes o mesmo. Nas paredes. No tecto. No chão.
Antes de ir. Um olhar. Obrigada.
Adeus.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet



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