terça-feira, 9 de julho de 2019

A minha asa

Autor da foto: Ricardo Torb


“Não vejo a minha asa.” Foi isto que ela disse. Andando no meio de anjos e escuridão. Como quem procura, não a asa, mas uma casa. Para morar, no meio das telas e das luzes. Um toque de desnorteio e três de amor. Porque o coração é maior do que o medo. E, encontrando a asa, não foi no céu que se deitou, mas no chão. Um momento de rendição que era arte e vida. E que iniciou, com um canto de cidade angélica, o que viria a ser uma jornada partilhada, onde almas se davam e recebiam.

Estávamos lá. Novamente. Naquele lugar onde só vai quem permite o desafio. De ir. Mais longe. Mais depressa. Fora do corpo. Na velocidade que os corpos não atingem. E, desta vez, eu não era um corpo que queria estar presente, mas a presença fora de um corpo que estava onde queria. Depressa as asas subiram e a tela desceu e a guitarra se tocou. Depressa os anjos deram lugar a festas de aldeia e sentimentos de luta contra a solidão. Depressa, no som quente de uma voz que avivava pétalas em olhos alheios, entrávamos derrubando solidões e medos e dores no chão negro. Depressa nos despíamos ritualmente do que não queríamos.

“Não vejo a minha asa.” Não foi o que eu disse, mas foi o que poderia ter dito. Porque tudo o que eu via era o libertar das penas. Essas que, não compondo asas, compõem males no peito que se dá às balas quando (quase) tudo é amor.

Às vezes, nesses passos, pé ante pé, libertando medos e anseios ao universo e colhendo dele só o melhor, questiono se sou um ser que dança para não chorar ou um choro que se cala para que eu dance. E questiono se me caem medos e solidões ou apenas lágrimas na forma de papel, pintando o chão. E do chão haveriam de ser colhidas, por alguém que pouco sabe de mim.

Mas, de repente, os pés nus libertam-se do chão. Meu amor. Libertam-se do chão, como se mãos se prendessem às coxas e eu pudesse subir até ao topo das nuvens altas. Olha, penso, é ali que ela está. A minha asa. A minha casa. O meu lugar. E estendo o braço, agarrando a vontade de ser. Não a vontade de ser de alguém. Mas a vontade de ser completa em mim. Agarro a solidão que larguei no chão, colhendo-a na névoa das nuvens, e digo-lhe: ama-me. E, rendida, ela obedece.

Por me obedecer, de uma forma completamente passiva e masoquista, essa solidão não se encanta com o braço que me atira para o canto, não se ilude com a partilha do corpo que se encosta ao meu e sabe, por instinto, que vai perdê-lo para alguém melhor lá ao lado. Em desistência, os passos que se dão até ao centro da vida, ignoram que se abracem gentes. Vão firmes e compassivos, sem inveja nem ansiedade. Mas libertam-se em movimentos bruscos, avançam. E aguardam, numa vénia de rosto que quer a chuva nos olhos para esconder a ausência das lágrimas.

Toda a gente se abraça. Toda a gente se quer. Eu não. Eu abraço a presença de quem não está. Abraço o lugar vazio onde se sentam os meus. Aqueles que partiram. Aqueles que foram obrigados a partir. Aqueles que me abandonaram. A memória deles deita-me ao chão. E, deitando-me ao chão, faz de mim novamente feto, desejando o calor do ventre materno que me expulsou para sofrer. Mas rodo. Ergo-me. Sou braço que se fortalece e ergue alguém. Aceito a rotação breve que o mundo me dá. E corro. Corro loucamente a implorar que me envolvas mais uma vez. Que embarques. Nessa aventura que eu sou. Porque não há tempo.

As luzes baixam. Não vejo a minha asa. Não tenho a minha asa.

Tenho um lugar vazio. E és tu.






Sigam também o meu instagram, aqui

1 comentário: