terça-feira, 29 de outubro de 2019

Sempre que ela vier




        "Some ancient call/That I've answered before
It lives in my walls/And it's under the floor." 
(in SYML - Fear of the water)



É uma voz mais antiga do que a do oceano. E, sempre que ela vier, eu vou segui-la. É uma voz mais áspera do que a terra arenosa das cidades desérticas. E, sempre que ela vier, eu vou segui-la. É uma voz mais etérea do que a do Vento do Norte. E, sempre que ela vier, eu vou segui-la.

Vou segui-la, sem fazer muitas perguntas. Sem querer saber exatamente qual foi o recanto entreaberto de mim que me esqueci de vedar. Vou aceitar que ela entre e permeie os recantos da alma com mestria. Deixar que ela bata na porta do meu coração, até a arrombar. E que entre, com todas as suas incertezas.

Talvez eu seja realmente a última a saber. Ou talvez seja a primeira. Numa sala de espera de inesperados. Esperando o que ninguém sabe se é possível ou desejável. Mas de olhos postos no agora, onde há a voz mais antiga de todas. Dizendo. Vem.

E, sempre que ela vier, eu vou segui-la.

Às vezes conto-te este segredo, lábios nos lábios. Conversas eternas onde não se profere palavra. Falamos a mesma língua. E somos eternamente o sufoco da respiração que faz o coração duvidar se está na dimensão do amor ou na dimensão da morte. Quando te conto este segredo, a voz que soa não é a minha. É essa voz. Dizendo. Vem.

E, sempre que ela vier, eu vou segui-la.

Sinto-te na flor da pele, com a ponta dos dedos, o temor. Há um oceano de dúvidas, todo feito de águas lamacentas. E se vier o tempo das marés vivas? Os teus olhos perguntam. E se naufragares? Os teus olhos perguntam. E se, feito pedra, te deixares arrastar para o fundo, como se, em vez de homem, eu fosse âncora? Os teus olhos perguntam. Apetece-me silenciar o teu temor. E dizer que ouças. Não a mim. À voz.

Uma voz mais antiga do que a do oceano. Uma voz mais áspera do que a terra arenosa das cidades desérticas. Uma voz mais etérea do que a do Vento do Norte.

Apetece-me pedir-te que a ouças. E acrescentar, num sopro: sempre que ela vier…

É um inesperado que vem com os sentidos que compõe a palavra amor sem letras. E que diz, sem voz: Eu sou a pegada que ninguém fez na lua. E a lua sou eu. Eu sou a onda que ninguém cortou no oceano. E o oceano sou eu. Eu sou a fronteira que ninguém cruzou a Norte. E o Norte sou eu. Não tenhas medo da água. Não tenhas medo do futuro. Há uma voz mais antiga do que o medo. E a voz sou eu.

A voz entrou. Não sei por onde. Não sei qual foi a ferida que me esqueci de cobrir com cimento. A voz entrou. Dizendo. Vem.

Sempre que ela vier, eu vou segui-la.

Por favor, não tenhas medo.

Vem comigo.






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