terça-feira, 9 de junho de 2020

Eu não entendo

Fotografia de Luís Serra Santos


Não. Eu não entendo a tua realidade. Nem vou fingir que entendo. Não vale a pena. Terei de viver eternamente sem compreender. Mas não te preocupes. Não preciso de compreender o que tu sentes ou o que tu passas para adotar uma postura que me coloca a teu lado, aliada na tua luta. Porque eu não preciso de estar na tua pele para saber a diferença entre o certo e o errado. Essa que entendo porque me ensinaram a pensar e a tomar posicionamentos críticos face ao mundo.

Eu não te entendo. Não posso entender como é viver com um estigma negro se a minha pele é clara e nasci com o privilégio caucasiano, que sempre me abriu mais portas do que aquelas que fechou. Não posso entender o que sentes quando alguém faz, levianamente, uma piada que te é ofensiva ou como a violência gratuita e a casualidade das acusações te faz sentir o sistema digestivo revolto. Não posso saber o que sentes quando pequenas ações bastam para te condenar ou para te ceifar a vida, antes do tempo. Não posso entender o que sentes quando alguém que nunca viveu o que tu vives e nunca sentiu o que tu sentes te diz que entende. Eu não. Eu não entendo. Mas vou unir-me aos movimentos que dizem que as vidas negras importam. Porque acredito que todas as vidas importam. E não me limito às brancas, às negras, às amarelas. E não me limito, sequer, às humanas.

Eu não te entendo. Não posso entender como é crescer sabendo que a tua sexualidade não se enquadra na norma social. Não consigo imaginar como é sentires, todos os dias, que o teu corpo e a tua cabeça não fazem parte do mesmo sistema solar de um “eu” coerente. Não consigo conceber quais as partes de ti que doem quando alguém te chama, sem o mínimo pudor, um qualquer nome que te diminui. Não sei como é ser condenado por amar e não entendo como vives essa realidade feita de tantos desprezos, de tanto bullying, de tanta violência gratuita. Eu não entendo. Todos os meus relacionamentos foram com o sexo oposto e, se não nasci, tornei-me mulher, como referia Beauvoir. Nunca me senti outra coisa que não mulher. E não entendo. Não faço ideia de como é viver com um corpo que não corresponde a nós. Ou de como é amar fora dos padrões normalizados dos outros. Não entendo. Mas estou aqui e ergo a tua bandeira colorida em prol da igualdade. Porque não preciso de entender-te para entender que não existem formas erradas de ser ou formas erradas de amar.

Eu não te entendo. Não posso entender como é viveres num país que não é teu, teres sobrevivido à guerra, à fome, à escassez e teres de sobreviver, agora, ao preconceito. Eu não entendo. Não entendo como te sentes quando alguém abraça a carteira ao passar por ti ou te diz que és o culpado do estado de um país que já estava na merda há muitos anos, antes de vires, e que te parece, provavelmente, um paraíso quando comparado ao que deixaste para trás. Não sei como te sentes quando aceitas, com humildade, o trabalho no matadouro ou na construção civil, com um diploma ou dois na bagagem, e ouves dizer que estás a roubar trabalhos a quem foi nascido e criado naquela nação. Eu não entendo. Sou essa pessoa, nascida e criada numa nação, que nunca mudou para lugar nenhum. Nunca me julgaram pelo idioma ou hábito, pelo lenço na cabeça, pela tonalidade da pele ou pela religião que abraço. Tão pouco fugi da guerra, já que poucas guerras existem no meu mundo, além daquelas que a comunicação social insiste em inventar no seio do nosso privilégio. Não entendo. Mas estarei ao teu lado, defendendo-te. Não porque te entendo. Não porque entendo o que sentes. Mas porque entendo que a maldade, tome a forma que tomar, está errada… e que todos merecem asilo, oportunidades e uma vida melhor.

Eu não entendo. Branca, com uma sexualidade (até ver) heteronormativa, descendente de portugueses e portuguesa, com uma licenciatura, um mestrado e uma pós-graduação, eu pouco conheci do mundo além do privilégio. Como poderia, alguma vez, entender? Mas eu não preciso de entender o que se sente quando se nasce do outro lado da linha para entender que a linha existe e que todas as armas estão apontadas para ela. Não preciso de entender para compreender que é sobre essa linha e à frente dessas armas que se pode criar a trincheira que pede a paz, a equidade, o respeito e o cumprimento dos direitos para todos.

Eu não entendo. Mas, nesta luta, vou sempre colocar-me do lado das minorias. Porque não existe um campo de imparcialidade, de desprendimento e de neutralidade quando se trata de injustiça. E não lutar é compactuar com as ações que estão erradas e que, todos os dias, tornam o universo humano indigno desse nome.




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3 comentários:

  1. Muito bom e muito forte!
    Eu entendo-te. E aceito as diferenças.

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  2. O mundo seria muito melhor se mais pessoas como você existissem. Transpira tanta empatia que sinto aqui do Brasil sempre e esse texto foi o ápice disso.

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