segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Parir um português

 


"As mulheres que abortem no Serviço de Saúde Público, por razões que não sejam de perigo imediato para a sua saúde, cujo bebé não apresente malformações ou tenham sido vítimas de violação, devem ser retirados os ovários, como forma de retirar ao Estado o dever de matar recorrentemente portugueses por nascer, que não têm quem os defenda no quadro atual".

(Rui Roque in “Moção Estratégica Global para Portugal”)

 

 

Eu não quero parir um português, desculpem.

Da mesma forma que não quero andar de olhos no chão e bater no peito gritando “mea culpa” aos Domingos. Ou ir para a guerra, matar gente igual a mim. Ou perder um dia na fila das finanças ou na lista de espera para as finanças cuja primeira vaga é para daqui a longos meses.

 

Não quero. Como não quero ver os olhares de rogo sem fé nos olhos dos sem-abrigo que dormem junto aos Restauradores nem a fome encoberta de quem, a medo, se aproxima dos caixotes do lixo do Chiado para comer os restos quando a gula dos turistas é maior do que o estômago. E como não quero mãos sobre a boca perguntando, a cada texto, “queres mesmo publicar isso?”.

 

Quero. Publicar isto. Mas parir um português não! Não quero que me cresça no ventre e me rasgue as entranhas alguém que teria de transformar-se num autómato para ser aceite ou num monstro para sobreviver.

 

Eu não quero parir um português, desculpem.

Não quero pari-lo porque me encarregaria, estejam certos, de fazer com que crescesse livre e dono do seu arbítrio e de um cérebro que funcionasse a arte e educação, sem o encher de cloaca televisiva e noções pré-feitas. Não quero pari-lo porque ele poderia nascer com a intelectualidade de um génio ou a veia artística do maior talento. Porque poderia ter ambições e desejos e sonhos. Porque seria miserável dentro destas fronteiras pequeninas.

 

Eu não quero parir um português, desculpem. E, se engravidar dele, estejam certos de que o aborto. Porque prefiro que ele morra antes de lhe matarem os sonhos e de o condenarem, como aos outros, a uma vida precária e toda cheia de nadas. Ou, pior ainda, que se torne um ser falsamente e egoistamente político. Débil nos seus intentos, vil nas suas ações. Ignóbil e de mente pequena, fechada, contando os muitos euros do seu grande sucesso mas com vergonha de me chamar “mãe”.

 

Eu não quero parir um português, desculpem.

Talvez indigna dos ovários que carrego, eu sei que a sua maior falha não é ovular mas fazê-lo sob esta bandeira. Esta, onde as maiores atrocidades se propõem, se dizem, se difundem e o resultado é indignação pacata – até ao próximo derby – e duas palmadinhas nas costas de quem disse, por ter o direito de dizê-lo. E tem! Defendamos. O direito de dizê-lo. Como eu tenho o direito de gerar um português para o abortar, por não querer que nasça e possa ouvi-lo.

 

Eu não quero parir um português. Sinceramente, olhando o mundo, eu não quero parir um humano. Eu não quero parir de todo.

 

Mas, por favor, a menos que eu peça o contrário, deixem os meus ovários em paz.

Ainda preciso deles para sangrar todos os meses por esta dor que é querer ter orgulho num país que me oprime, me violenta, me diminui e me retira toda e qualquer vontade de ser mãe… e, muitas vezes, de estar viva.





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2 comentários:

  1. Eu sou democrata, todos deveríamos ser, é a única forma de não nos matarmos uns aos outros, por isso, democraticamente, PÁREM de se imiscuir no que pertence unicamente e inequivocamente a uma MULHER: o seu CORPO, o que a sua ALMA escolheu habitar

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