terça-feira, 1 de setembro de 2020

Voltar para casa

 


Há poeira no chão. E módulos acumulados, formando gigantes de mobiliário junto às paredes. Os vidros estão sujos. Gotículas de tinta salpicando, aqui e ali, o imaginário de uma perfeição idealizada.

 

Sinto o cheiro de verniz e tinta, misturado com cola seca no sol. Ninguém abriu uma janela por tanto tempo, que as janelas são, agora, apenas vidro opaco, que nos reflete o cansaço quando a noite cai e a luz se liga.

 

O som da sala é oco. Gruta enegrecida pelo espanto que a imaginou maior. Com um fatídico e odioso sofá, demasiado confortável, demasiado cheio de memórias e onde já só se sentam os fantasmas.

 

Sento-me no chão e olho em redor. Penso que coloquei demasiado peso nas costas de uma casa vazia. Podes ser um lar? Perguntei-lhe. Mas os lares não se constroem e não se corrigem com obras. Os lares não se roubam de outros lares nem se edificam sobre mentiras e segredos. Desenganei-me da ideia de que a remoção de sujidade pudesse, também, revelá-lo. Não é. Não é assim que se constrói um lar. É de outra maneira.

 

E ali estás tu.

Merda.

Ali estás tu.

 

Deixo-me deitar num chão branco de pó de obras, fitando um teto mais perto do céu, numa casa cujas bases são feitas de humidade tosca e desumanidade que se expressa por correio eletrónico. A minha toca. Um sítio como outro qualquer para viver de arrependimentos e sentir falta do que, por estar no passado, não tem lugar amanhã.

 

Estou um passo mais perto do céu, penso. Dois andares mais perto do céu. E, de repente, queria que o teto caísse para poder ver as estrelas e colocar nos olhos esses anéis de Saturno, casando-os com o infinito bélico do Universo.

 

Tenho a certeza de que, algures, em alguma galáxia, alguém pensa o mesmo. Talvez, algures, neste planeta, alguém se deite no chão empoeirado, mais perto do céu, e pense o mesmo. Há sempre alguém que pensa o mesmo.

 

Os dedos correm teclas. Incompetentes com as notas musicais, escolhem a eterna precursão das letras do teclado. E, se alguém lhes gravasse a fúria, poderia compor, certamente, uma canção de heavy metal. Uma balada, talvez. Daquelas que teriam sentido se alguém conseguisse perceber a letra por entre a voz enrouquecida e gritante do vocalista que me preenche os espaços brancos do pensamento, quando preciso de silêncio e paz.

 

Há muito barulho na solidão de uma casa vazia. Principalmente quando as obras param e se fica só com o pó e o gigante de mobiliário junto à parede. Há muito barulho. Tanto que o som dos grilos no eucaliptal se abafa. E o vento nas gruas se transforma num assobio suave.

 

Queria ter um pensamento profundo qualquer. Dizer que voltar para casa é o que nunca vai ser. O meu peito quer vomitar palavras sobre perfeição e esperança. Sacudir a poeira que tem acumulado e o gigante de mobiliário que também se encosta às suas paredes, dificultando sístoles e diástoles. De todas as vezes.

 

Queria ter um pensamento profundo qualquer. Mas estou vazia de pensamentos profundos. Derreada pela casa, dois andares mais perto do céu, que é mais pequena do que a imaginação a pintou.

 

O gigante no meu peito agita-se.

Incomoda-se com o pó e espirra.

 

À medida que a poeira levanta, nesse sopro, existe clareza em mim. Pelo menos até que tudo acalme e o pó assente de novo, escondendo o óbvio. São apenas alguns segundos mas bastam. Entendo.

 

Nunca vou voltar para casa.

A minha casa és tu.





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