terça-feira, 22 de setembro de 2020

Quando há faísca

Fotografia: Márcio Martinho


Quando há faísca, já sabemos. Devíamos saber. Aquele ardor da pele, reação física e química a coisa quase nenhuma. Estamos destinados a alimentar-nos do ar à nossa volta e a consumi-lo. Com o calor das veias pulsantes ao ritmo do coração irrequieto. Tudo em nós acende. E aquece. E queima. Quando há faísca, já sabemos.

 

Houve faísca. Havia o meu vestido negro, rendado, com flores subtis. E as luzes, leves, acentuando a penumbra do espaço. E pessoas que desapareciam, à medida que, aproximando-me, eu sentia. A faísca. A música começava. E os teus dedos faziam com que eu quisesse ser a música tocada. E o coração parecia competir com todas as formas de precursão.

 

Para algumas pessoas - fabricadas, certamente, de um material pouco inflamável – isto poderá ser pouco, quase nada. Poderá não ser suficiente. Mas eu sou feita de madeira e fibra. De matérias auto-reagentes. De gasolina. Para mim bastou. A faísca. E já sabemos. Devíamos saber. Quando há faísca, começa. Arde. Aquece. Ilumina.

 

As veias são, subitamente, feitas de fogo. De Santelmo. De artifício. Fátuo. Facto. Fogo-facto de certezas maiores do que a vida. Ardendo. Consumindo o ar até nos deixar ofegantes, com desejo de partilhas maiores do que nós. Ardendo. Tornando o corpo insuficiente e desejando uma extensão que o preencha, que o complete. Ardendo. Tornando-nos mais pequenos do que nunca e maiores do que o universo inteiro. Nunca seremos tanto nem tão pouco do que no momento da faísca, quando ela vira brasido e fogueira.

 

Quando há faísca, já sabemos. Devíamos saber. Todo o processo da química em nós faz com que se acendam partes disfuncionais do cérebro. E, não nos iludamos: outras param. As lógicas de racionalidade tornam-se todas filhas da inconstância. O medo da morte oscila por segundos. Queremos que aquele momento seja eterno ou que acabe depressa mas, de preferência, que nos leve com ele, porque não queremos que a realidade se torne memória.

 

Acende e ilumina e aquece. Tudo é construção de inevitabilidades. Paixão que aprende a ser amor. Acende, inflama e escalda. Amor que aprende a ser caos e desordem. Amor que arde e queima.

 

Espanta-nos a inevitabilidade do que é certo no primeiro momento. Porque basta uma centelha, uma fagulha, uma chispa. Mas nunca ninguém se lembra que o que faz faísca só aquece até queimar. E ninguém se lembra que a queimadura dói. E ninguém se lembra que ficam corpos-cinza, incompletos para a eternidade, onde a brisa escasseia e a respiração é dolorosa no ar rarefeito. Quando há faísca, já sabemos. Devíamos saber. O que aquece, também destrói.

 

Quando damos conta, ardeu. E, claro, devíamos saber. Mas nunca ninguém se lembra. Não no momento da faísca, quando tudo é etéreo e possível: até o impossível. Ninguém se lembra.

 

No final, varre-se a cinza. Para debaixo das pedras da memória. Tentamos acreditar que, um dia, ressequida e seca, essa memória não vai doer. Que a floresta, outrora densa, dos nossos sonhos vai alimentar-se dos restos empoeirados do passado e ser fértil outra vez.

 

Tudo o que fica é vegetação rasteira do que fomos antes da faísca. E o desejo eterno do calor e da paixão. E a memória de que devíamos ter feito mais ou sido melhores. Um desejo de voltar atrás. Para alimentar o fogo. Para atiçar o fogo. Para o manter vivo, antes que ele nos levasse a vida.

 

Houve faísca. Havia o meu vestido negro, rendado, com flores subtis. E as luzes, leves, acentuando a penumbra do espaço. Agora nem a música toca nem o coração quer bater. Ficam mãos tentando segurar o pó, como relíquia do que podia ter sido. Tudo o que acende, queima. Tudo o que queima, dói. Às vezes, para sempre.

 

Ardeu. Quando há faísca, devíamos saber.

Devíamos saber. Mas não sabemos.





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2 comentários:

  1. Sabemos, mas não queremos saber. Porque, essa faísca, é a vida a dizer "olá!". E sabemos que,, seja lá como for, venha o que houver a saber.

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