terça-feira, 27 de outubro de 2020

A melhor parte do meu coração II

 


Para a minha avó


Há um órgão muscular em nós. Ele bombeia o sangue e retira do ar o oxigénio que nos permite a vida. Dizem que é uno. Mas – já o disse - eu discordo!

 

A discordância não é gratuita. O meu coração está repartido. Rasgo-o e reparto-o. Noutros peitos. E é assim, com as peças dispersas do coração, que me sinto completa. No amor. Porque é ao amor que eu pertenço.

 

A incompletude das minhas aurículas e ventrículos raras vezes me incomodou. Sempre foi mais como o relógio que dá sinal na hora da mágoa. Com uma chamada, que atravessando linhas e satélites me caía no ouvido. Ainda que fosse por segundos. É um fenómeno estranho e quase surreal. As outras partes do meu coração sabem quando ele parte. Talvez, noutros peitos, sintam igual dor. Talvez, afinal, mesmo repartido, um coração nunca deixe de ser uno…

 

É só que…

 

Há muitas partes do meu coração a odiar as palavras. E eu escrevo.

 

É só que…

 

Uma respiração profunda, que dilacera. Punhais cortando o peito. Punhais rasgando a carne. E o sangue é translúcido. O sangue cai no rosto. O sangue não é sangue. O sangue é lágrima.

 

É só que…

 

Mágoa. Dor. Desespero. Mãos frias. Tão frias. A ausência aterradora de cheiro. A vontade do que é recíproco e não chega. Vozes embaraçadas. Palavras embasadas. Visões embaciadas. E uma sala inteiramente repleta de nada.

 

É só que a melhor parte do meu coração parou.

 

Os corações repartidos nunca sabem verdadeiramente que pode parar apenas uma das suas partes. Acreditam que, quando uma parar, pararão todas. E talvez eu tenha morrido e não saiba. E talvez eu tenha morrido e esteja viva.

 

A melhor parte do meu coração parou. Fiquei sem ninguém que me ensine os mais puros conceitos de amor, de família, de saudade e de perfeição. Os Deuses antigos ficaram mudos e as suas sinfonias foram substituídas pelo grito ensurdecedor do silêncio.

 

E, antes do silêncio, a chamada. A voz muda. O escutar de palavras minhas, mínimas, despidas de qualquer pedido e repletas de revelações que já tinham sido feitas um milhão de vezes. Estou aqui. Gosto de ti. Adoro-te.

 

Podia ter dito outra coisa. Aguenta. Não morras. Não vás. Mas, ouvindo na distância essa parte de mim, tive medo de sujeitá-la à dor. Porque essa parte – sem dúvida, a melhor do meu coração – teria certamente ficado apenas para me dar o que eu pedia, como me deu tudo o resto, ao longo de uma vida inteira.

 

Sem pedido que a agarrasse a este plano, a melhor parte do meu coração parou. Com ela, levou a mulher que me fez gente. A mentora que me deu todos os princípios da vida. A amiga que nunca me abandonou. Levou a linha que separa o estar sozinha de ser só.

 

As pessoas odeiam as palavras. Principalmente as duras, sem eufemismos. Como doença. Morte. Fim. Eu não. Mas odeio que não haja palavras duras o suficiente para explicar o que sinto. E que me sobre silêncio, enterrado debaixo de muitas camadas de terra e algumas flores.

 

A melhor parte do meu coração parou.

 

Tenho o coração repartido. E partido também.





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