terça-feira, 6 de outubro de 2020

A melhor parte do meu coração

 



Para a minha avó


Há um órgão muscular em nós. Ele bombeia o sangue e retira do ar o oxigénio que nos permite a vida. Dizem que é uno. Dividido em quatro cavidades, é certo, mas uno. Insistem que é apenas num corpo que esse órgão cumpre funções. Mas eu discordo!

 

Eu, por exemplo, tenho o meu coração repartido. Ao longo da vida tenho cortado paredes coronárias, musculadas e inúteis, para as repartir noutros peitos. Escolho, usualmente, aqueles peitos aos quais gosto de me encostar, para receber bênçãos e abraços. Porque é assim que, por vezes, encaixo as peças dispersas, como legos cardíacos, encostando o meu peito a outro peito para sentir os batimentos coordenados do amor.

 

Aurículas e ventrículos aprenderam, em mim, a viver incompletos. Na verdade, reclamam, por vezes, daquelas partes mal empregues, deixadas em peitos que nunca mais se encostaram ao meu. Mas regozijam-se diariamente. Pelo menos duas vezes mas, na maioria, três. A primeira pela manhã, a segunda pelas cinco da tarde e a terceira às nove da noite. Nestas horas, a melhor parte do meu coração, se não se encosta a mim, costuma ligar. Um abraço distante mas que locomove as peças do meu peito, arranjando espaço para uma voz que completa, de alguma forma inusitada, os vazios que se formam naquele espaço intercostal onde a ponta cardíaca é mais forte.

 

Justificando plenamente a divisão muscular que, ao longo da vida, fui efetuando, essa parte do meu coração – que é, não duvido, a melhor delas – vai ensinando muito sobre a vida e os seus mistérios. Alguns dos conceitos que me deixa são tão preciosos que nenhum dicionário ousaria tê-los. Dá-me novos conceitos de amor, de família, de saudade e de perfeição.

 

Não duvidem. A melhor parte do meu coração é muito simples e totalmente perfeita. Mora num peito sem defeitos. Ali, onde bebés deitaram as cabeças de cheiro a caramelo e lágrimas se verteram e mãos crentes bateram levemente, ao Domingo, pedindo perdão sem ter pecado. A melhor parte do meu coração bebe do toque abnegado de uma mulher que é mãe de muitos filhos que não gerou, muitos dos quais nascidos da filha única, gerada e feita num amor que tudo tolerou.

 

Quando o telefone toca – pela manhã, às cinco e às nove – toca-me também essa plenitude de receber novamente o encaixe perfeito da melhor parte do meu coração. Um coração tão bom que não precisa de bater depressa para tocar uma sinfonia cantada na voz dos Deuses antigos.

 

Um dia – deixem que vos conte - esta parte do meu coração quase parou. 28 vezes por minuto, determinava um compasso assustador que me fez crer que, no dia seguinte, uma parte do meu coração pararia. Lento e fraco, sem capacidade para avigorar as células do corpo, esse coração, que mal batia, ainda dedicava 28 batimentos por minuto a todas as pessoas que amava. E ainda dizia, com voz débil, aos senhores de bata branca: a minha filha e as minhas netas estão lá fora. Como se dissesse: elas importam e eu não. A minha filha e as minhas netas estão lá fora.

 

Estávamos. Lá fora. Eu, com as sobras do meu coração partidas, num desvario de orações pagãs para que aquele pedaço de coração – a melhor parte do meu coração – encontrasse o ritmo do sonho do amanhã. E ela, tão cansada, podia facilmente ter adormecido o peito cadente nas horas dessa noite para descansar da vida e de todos os seus (muitos) desgostos. Mas, em vez disso, repetia aos senhores de bata branca: a minha filha e as minhas netas estão lá fora. E essa parte débil do meu coração acendeu-se novamente. Pelas filhas e as netas que aguardavam. Pelos outros. Como tinha feito – além de filha e dos netos - pelos pais, pelos irmãos, pelo marido, pelos estranhos, pelas pessoas que a maltratavam e pela ideia de Deus.

 

Encosto o meu peito ao dela. Dizem que há um órgão muscular em nós. Que é uno e vive apenas num corpo, cumprindo funções. Encosto o meu peito ao dela. E discordo. Ao longo da vida, tenho repartido o coração. Cortado paredes coronárias, musculadas e inúteis, para as repartir noutros peitos. Encosto o meu peito ao dela e sinto que completo o meu com a sua melhor parte.

 

Dentro desse peito que não é meu, hoje, uma parte do meu coração faz anos. A melhor parte do meu coração faz anos. E celebram-se os anos desse coração que bateu e bate ainda. Constantemente pelos outros.

 

Encostada a esse peito onde me mora a melhor parte do coração, ouço cantar nos ouvidos sentimentos e conceitos. Existem 90 anos de conselhos neste abraço. E a noção de plenitude. Aproveito os ensinamentos. Principalmente o conceito. Esse. Que não vem no dicionário e me faz celebrar, hoje, a vida. Esse. Perfeição: a grandiosidade escondida na simplicidade das coisas.




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