terça-feira, 13 de outubro de 2020

Morrer sem ti

 

Fotografia de Analua Zoé

Convido-te para a celebração do meu perecimento. Peço que, se guardas no teu peito réstia de amor por mim, possas reservar-me um momento e vir. Ver-me. Nesse dia. O do meu desaparecimento. Gostavas que lá estivesses quando eu morrer.

 

Perdoa este convite inesperado. Inusitado. Quebrando o silêncio-mãe que patenteaste e sobre o qual deténs todos os direitos de propriedade emocional. Perdoa o convite. Mas penso que seria triste morrer sem ti.

 

Pensa comigo. Nasci num dia de Verão e vivi sempre com frio. A regulação térmica do meu corpo e da minha alma sempre foi insuficiente para que eu conseguisse manter-me confortável. Ao longo dos anos, mal recordo calor nas noites senão aquele que bebi do teu corpo, quando me agarravas, puxando-me para ti como se abraçasses o mundo. Não era o corpo que me aquecia, embora aquecesse. Era algo que, internamente, se afogueava na ideia de um “para sempre” presunçoso e cheio de si, que nunca viria a ser. Então, nessa hora, a hora de arrefecer para sempre, gostava de ir com a sensação calorosa da tua presença. Por favor, se puderes, se conseguires, vem…

 

Seria triste morrer sem ti. Perpetuar essa rotina de todos os dias, que tem sido morrer, de-va-ga-rinho. Continuar a sentir as células na sua apoptose louca e desvairada. Senti-las a apagar, uma a uma, dizendo sempre, antes de se corromper, que foram felizes contigo.

 

É verdade. Morrer sempre foi um sonho. Até o sonho morrer. Mas descubro, a cada segundo, que não quero verdadeiramente morrer assim. Sem te ter por perto, para te olhar o rosto uma última vez. Não quero morrer sem ti. E, se te convido para a celebração do meu perecimento é tão só por isso: por querer encontrar novamente o desejo da morte. Uma morte melhor do que a vida. Como talvez todas as mortes sejam.

 

Vem. Peço-te. Penso que seria triste morrer sem ti. Tombar, por fim, no último suspiro, sem que lá estivesses. Sem poder olhar os teus olhos enquanto os meus perdem a luz, astros cadentes, carentes, de um sonho que nunca foi e sempre doeu.

 

Sim. Penso que seria triste morrer sem ti. Seria triste morrer como vivi. Olhando para o lado oco da cama, cheio de ecos. Mas a vida já não importa e nada te peço sobre ela. Mas penso que seria triste. Morrer sem ti. E peço que venhas.

 

Hoje, com tanto para contar, nesta narrativa de mil sóis postos na tela, eu imagino que todas as minhas mágoas tenham sido brandas ao lado desse destino. De todas as minhas sentenças, a pior seria essa. Morrer sem estares lá. Pior do que não te ter conhecido ou não poder encontrar-te nos recantos da vida ou não poder, contigo, partilhar o mundo. Morrer sem estares lá seria como nascer sem que a minha mãe lá estivesse. Vazio e inócuo e despropositado.

 

Penso que seria triste. O mais triste de todos os destinos. Morrer e não estares lá. Morrer no embalo da solidão. Morrer e não poder olhar-te nos olhos. Morrer e não estar lá quem nos matou.

 

    Marina Ferraz



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