terça-feira, 28 de maio de 2024

Amanhecer

 


Ela disse-me que, desta vez, tinha a certeza. Disse-o com tanta confiança que eu não quis recordar-lhe que já mo dissera antes. Uma vez. Duas. Três. Quatro. Até eu me perder na conta. Ela disse-me que, desta vez, tinha a certeza.

 

Comparou-o aos heróis dos romances que insiste em ler, que pululam no cinema e nas séries a que assiste. Mesmo sem conhecer muito bem o que lhe povoa a mente, no alvorar de um conhecimento ainda sem âncora, diz-me que é como se lhe lesse os olhos. Que encontra neles toda a bondade do universo e que não existe ciúme, rancor, violência nem agrura naqueles olhos. Mas não me diz a cor dos olhos dele. Assume que, de ver essa ausência de tantas coisas negras, esqueceu se são castanhos ou azuis. Ou verdes ou violeta. Também não sabe se vê bem ou usa lentes de contacto para curar miopias. Sabe que olham para ela. E a fazem sentir-se vista. E que isso lembra a janela sobre o rio quando a lua está cheia e ilumina a escuridão da noite.

 

Fala-me das mãos que se deram. Do suave do toque que depressa virou beijo. E confessa que fechou os olhos e viajou. Fala-me dessa viagem e diz-me que lhe mudou o fuso horário da vida. De repente, essa noite de lua a refletir no rio era alvorada. O amanhecer de todas as suas esperanças de menina, condensado num único espaço de encontro entre lábios. Mas diz-me mais. Não foram os lábios, mas as almas que se tocaram. E verte a palavra amor com graciosidade e ternura, dizendo-a outra vez aos meus ouvidos cínicos, de quem só a disse a uma pessoa e não sabe se, mesmo assim, não a gastou inutilmente.

 

Confessa que o amanhecer trouxe um calor que tornou a roupa dispensável, desnecessária, incomodativa. Largaram-na no chão de um quarto de hotel, com demasiada pressa para que pudessem chegar a casa dela. Ou dele. Mas ela não sabe se ele tem casa. Nem onde mora. Nem se a convidaria a entrar. Sabe que largou a roupa incomodativa no chão e que vestiu o corpo dele com o seu. E que juntos encontraram novas jornadas para o lugar onde nem todos vão.

 

Dispara tudo isto entre dois goles de chocolate quente. Ela, que pede sempre café, escolheu adoçar o encontro com a bebida dos deuses, alimentando o exército interior, à espera da minha combativa guerrilha, que a chamaria à razão.

 

E eu olhei para ela e disse: estou muito feliz por ti!

 

O que eu queria dizer-lhe era: estou muito feliz por existires e seres quem és. Por acreditares no amor que se cria, que se dá, que se faz, que se conta. Estou muito feliz porque estou aqui e tu estás na minha vida, confidenciando essa história que, como tantas outras, poderá culminar com as tuas lágrimas a ensoparem o meu colo.

 

Mas disse: estou muito feliz por ti!

 

E não me arrependo de lho ter dito assim. Dessa forma simples, que a fez corar e dar mais um gole suave no chocolate quente, com as mãos abraçando a chávena.

 

No amanhecer daquele romance, ela estava feliz e eu queria que ela estivesse feliz. E, se anoitecesse, estaria na mesma cadeira, com os mesmos ouvidos cínicos, para lhe aconchegar as mágoas.

 

 

Saio para uma rua fria, onde um sem abrigo dorme. Há tendas no jardim, de gente que ficou sem casa. Nas notícias falam de mais um bombardeamento em Gaza. Penso nas mães que deitaram os filhos sem jantar esta noite. E naqueles que se deitaram sozinhos, já sem mãe. E na desgraça que se planta, com armas e enredos. Guerra. Dor. Sofrimento. Atrocidade. Genocídio. Pobreza. Escravatura. Discriminação. Censura. Desprezo. Desigualdade. Tirania.

 

 Estou muito feliz por ti! – penso novamente, embora ela tenha partido. Estou muito feliz por ti porque, no meio de tudo isto, tu ainda falas de amor.

 

Pergunto-me se haverá, ainda, espaço para o mundo amanhecer.


Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Anónimo07:40

    Mais uma história que é um poema ... fiquei a pensar porque é que os ouvidos são cinicos. Depois pensei que pode ser porque cinico é (também) quem menospreza as normas sociais e os pensamentos e opiniões normalmente aceites pela sociedade. Então sim, são ouvidos que, apesar de todos os horrores, se deixam tocar pelo Amor, e o acolhem no aqui e agora, ficando feliz pela felicidade do outro. Tão bonito! Obrigada

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