Pelas pedras das ruas onde caminhei, poeta, dispo-me agora de mim. Palavras e fonemas, e esperanças e desejos. Vou-os perdendo a cada passo. Caem na calçada. Ressaltam. Tombam inevitavelmente nas poças de lama e nos bueiros que o lixo ainda não entupiu.
Às vezes, olhando para trás – olhar de relance e inspirado na cegueira – noto que alguém se baixa para apanhar um verso e lhe sacode o pó. Imagino, embora não veja, que percebam depressa que não tem valor e o reciclem algures, com as pilhas que já não geram energia.
Faço um caminho inverso ao verso. Em Lisboa, junto ao Tejo, deixo ficar os pulmões. Cidade-respiração que me deu frases livres, fazendo carma do Carmo. Em Coimbra, deixo o cérebro macerado em conhecimentos de outros, tão importantes para me fazerem quem sou, por exemplo ou negação. Em Braga, se ainda não o tinha feito, deixo o fígado e o agradecimento mudo pela ressaca que me fez chegar aos dias do pensamento e da respiração. No Alentejo, deposito o esqueleto, para que ornamente igrejas, cru e vazio.
Pelas pedras das ruas onde caminhei, poeta, dispo-me agora de mim. Repito. Vozes me questionam: E o coração?
História engraçada, a dos poetas. Conhecidos como são pelo uso. Pelo abuso. Da palavra amor. Imaginamos que tenham coração. Não é? Imaginamos que tenham um coração grande demais para o peito. Não sei sobre eles. Os outros. Eu não. Dentro do peito, no abraço do esterno e do diafragma, há uma dose acarinhada de vazio. E, à medida que me dou, órgão a órgão, osso a osso, poema a poema, por essas cidades que me foram casa e por essas que senti como se o fossem, descubro que o pulsar da urbe não me cabe dentro.
O meu coração. Que não é meu. Já não é meu. Anda por aí. Não pertence a uma cidade, mas leva consigo as cidades por onde passa. E, à medida que me dispo de mim, deixando de ser poeta, largando poemas na calçada imunda... e desencontrando-me dos espaços do antigo futuro improvável, eu sei que é bonito andar, despindo-me, sem coração.
Porque quando os órgãos doados forem pó, depois poesia, depois nada, o coração ainda contará a história plena de uma imensidão sem vida nem morte. Nómada. Itinerante. Livre. Sem amarra. Ninguém saberá que é meu. Ninguém saberá que é um coração. E é isso que me tornará, para sempre, mesmo quando já não o for… um desses poetas meio tontos, que usa, abusa, da palavra amor. É isso que me tornará, para sempre, mesmo quando já não o for… um dos poucos poetas que se recusou a dizê-la só para ornamentar frases.
Pelas pedras das ruas onde caminhei, poeta, dispo-me agora de mim. De mim. Órgão, osso e poema. Mas do amor? Nunca!
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Está tudo neste poema, que é um poema de amor!
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