quarta-feira, 12 de abril de 2023

Gente de Abril

 




Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças...

 

E ele tinha apontado porque tinha mãos.

E ela tinha olhado porque tinha olhos.

E tinham falado porque tinham voz.

 

O pássaro que voava chamava-se Liberdade.

Eles não tinham aprendido a celebrar a palavra Liberdade.

 

Então, celebravam os pássaros.

 

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Os meus avós não foram gente de Abril. Mas foram. Mesmo sem ser. Educados em famílias convencionais e que facilmente se tinham embrenhado na ideologia vigente, ambos tinham crescido sem ouvir falar de política e sem precisarem de falar dela, aceitando a realidade como a única forma de realidade, sem perceberem plenamente que aceitá-la era a estratégia para não morrer nas suas cordas de forca. Ambos tinham crescido nas normas e jeitos de uma Mocidade Portuguesa. Ele passou de moço a homem de família e ela de mulher a mãe da nova raça.

 

Quando veio Abril, a minha avó teve medo e o meu avô não agiu. Temeram mais os dias que se seguiram, com gentes apontando espingardas aos transeuntes que caminhavam para o trabalho, do que tinham temido os dias da censura e do exílio.

 

Os meus avós não foram defensores de Abril. Pelo contrário. Defendiam um Salazar em cada junta de freguesia e – piada privada nossa – cheguei a oferecer meia dúzia de espátulas, para eles terem salazares suficientes na cozinha. Que lhes bastassem aqueles, pensava eu...

 

Os meus avós, que não foram gente de Abril, mas criaram-me para o ser. Porque os meus avós, presos nas suas ideologias, tinham as palavras antigas, mas o pensamento novo. A palavra reservada, mas a atitude certa. Os meus avós criaram-me para que eu fosse justa e livre, para que eu contestasse e lutasse. Para que eu me defendesse e desconfiasse de todos os conceitos fechados. Os meus avós – que não foram defensores de Abril – criaram-me para ser o Abril que não tinham criado.

 

Penso neles, à medida que olho a agenda. Para mim todos os dias são a véspera do Abril que ainda não foi. Vou-me munindo de palavras e exércitos. Vou carregando as armas com poemas. Vou chamando corpos para entoarem em gesto o que não pode ser disparado com as palavras.

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro. A Natureza é muito bonita. São as coisas mais bonitas do mundo. A Natureza, a Música e as Crianças... e um dia, a nossa Cilita vai ter uma filha que vai ser assim.

 

Sintra

11 de Abril de 2023

 

Abril veio com flores.

Abril veio com fotos.

 

Agarro junto ao peito a minha gente. Lembro-lhes as palavras e os gestos. Escolho olhar os gestos como se fossem palavras. Tão retos, tão orientados na direção oposta das palavras que tinham plantado no jardim que devia ser dos cravos.

 

Não posso dar-lhes cravos vermelhos. O meu avô não gostava de cravos. A minha avó não gostava de vermelho.

 

Dou-lhes pensamentos e sussurro: obrigada por me plantarem Abril nas veias.

 

Eles são símbolo e motor desse exército que construo. Levo-os ao peito onde vou. Esta é a gente que me fez gente de Abril.

 

E grito Abril. Até ficar afónica. Literalmente.

 

 

Barragem da Aguieira

24 de Abril de 1976

 

Eu voava naquele céu.

 

Ele deu sombra aos olhos para olhar. Depois apontou. Olha, Graciosa. Imagina-se que tenha dito. Ali à frente, aquele pássaro voa. Não lhe cortaram as asas. Então voa. Vês?

 

E imagina-se que ela. Suavemente. Timidamente. Tenha olhado. Imagina-se que ela tenha sorrido. Vejo, Ramiro.

 

Eu voava naquele céu.

 

Imagino que tenha pensado. É aqui que quero nascer, na próxima vida.

 

 

Coimbra

23 de Junho de 1989

 

Nasci. Ali. Junto a eles. Neta deles.

 

Não me cortaram as asas.

 

É Abril e vou.

 

É Abril e voo.


Marina Ferraz











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quarta-feira, 5 de abril de 2023

Dos teus olhos

 


Ele diz que gosta da minha poesia. Mas detesta poesia moderna. Considera-a, como o seu pai antes dele, “prosa fragmentada e empilhada”. Sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, ele confessa: “não gosto deste tipo de poesia”. Sorrio. Lembro-me das almas que compararam aqueles poemas aos meus, tão pequeninos ao lado da maravilha da poesia da autora de renome cujo nome ornamenta o topo da capa. “Não é tão diferente da minha!”, observo. Ele sorri. “Eu acho diferente. Mas talvez sejam os meus olhos...”.

 

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos choraram pela primeira vez a 5 de Abril de 1950. Desse primeiro choro fizeram vitória. Vida conquistada, partiste em busca dos poemas. Até chegarmos aqui. Com um livro sobre a mesa do café e as tuas palavras sobre os meus poemas e o teu olhar enviesado.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Gosto tanto deles que, durante uma vida, quis que me vissem. Assim. Como sinto que agora veem. Adulta e senhora de mim. Artista. Penso que, durante muito tempo, olhaste para mim e viste o reflexo do sonho que me sonhaste. Penso que, talvez por medo de me veres cruzar caminhos de espinho, tenhas lutado um pouquinho contra a menina-recheada-de-sonhos. Mas eu cresci, pai. Nos teus olhos. E gosto deles a olharem para a pessoa que me tornei, reconhecendo-me.

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Há um brilhozinho neles quando eu chego. Questiono-me se é porque sabes que, além de todas as diferenças, ainda nos sobram traços comuns. Por exemplo... já notaste que duas das palavras que dizemos mais são “não” e “mas”? E que damos um saltinho em todos os degraus? Que contamos os degraus? E já reparaste que trazemos pormenores da História e da Física que não interessam a ninguém (e chateiam meio mundo!) em todas as conversas? Temos sempre a piada inconveniente certa... no momento errado. E dizemos a piada à mesma... Frequentemente olhando-nos a seguir, para, ao menos, sermos dois a rir. Gostamos dos grandes poetas e músicos. Da conversa com estranhos ocasionais. De nos metermos com os empregados dos restaurante... Até gostamos de achar que somos muito diferentes um do outro, vê lá...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Os teus olhos marejam ocasionalmente e não gostas disso. Mas eu gosto. Lembra-me o que aconteceu no começo da história de ti, quando choraste pela primeira vez. Lembra-me que nasceste. Gosto. Porque te sei humano. Dizes que é fragilidade, mas eu acho que é força. Aprendi com o tempo e com todos os “eu quero lá saber que queiram lá saber de mim”, que querer saber ao ponto da emoção é, afinal, muito bonito! E é por isso que quando me dizes: “Talvez sejam os meus olhos”, eu olho nos teus olhos.      Verdes.      Os meus, apetece-me dizer-te, também ficam verdes quando choro ou apanho demasiado sol.      Mas esqueço-me de to dizer, na busca pelo meu reflexo. Só que, quando olho nos teus olhos, não me encontro. Em vez disso, encontro poesia...

 

O que gosto mais em ti, pai, são os teus olhos.

 

Aninho-me na menina que fui. Não quero escrever-te dessa “prosa fragmentada e empilhada”, da qual dizes não gostar. Escrevo antes isto. Prosa-prosa. Demasiadamente pontuada e fragmentada. Talvez.

 

Podia ser um poema, todo tradicional e rimado, com a métrica contada, mas não é. É uma prosa sobre os teus olhos, dos quais eu gosto tanto. E, sentados à mesa, e com um livro maravilhoso ostentando a encadernação voltada para a luz amarela do café, confessas-me: “não gosto deste tipo de poesia”. Duas trocas de conversa e dizes-me que gostas da minha. Mas que talvez sejam os teus olhos. Porra! Eu quero lá saber se são os teus olhos! Gostas da minha poesia!

 

 Subo para os teus ombros para ser a criança que fui, segurando-me no teu pescoço. Repito que gosto de ti... do teu tamanho, ora! Ficas a pensar se gosto ou do que gosto ou do porque gosto... mas nada disso importa.

 

Importa que gosto. E o que gosto mais, pai, é dos teus olhos... dos mesmos que choraram além-mar. Pela primeira vez. A 5 de Abril de 1950.

 

Para um dia me dizeres que os teus olhos dão rima e métrica aos meus poemas desalinhados. Para me dizeres que tens neles um filtro especial para mim.


    Marina Ferraz




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terça-feira, 28 de março de 2023

A quinta estação

 


Fazemos assim. Quando a roda do ano terminar e se iniciar a quinta estação, dás-me um beijo no rosto. Dizes-me até já. Sais de mansinho. Não olhas por cima do ombro. Não hesitas. Não tropeças nos pés nem no choro. Levas os cravos que colhemos. Saberei.

 

 

A Primavera nasce. O alvorecer das flores e dos aromas de sol já convida para o mundo que abriga pássaros. Apaixono-me levemente. Pele vazia que se preenche, a pouco e pouco, do sensorial daqueles saltos leves na escada. Ruguinhas breves junto aos olhos que somam histórias do desconhecido. Tocas-me. Vento feito em brisa. E arrepias de mim todos os descontentamentos. Eu, que tinha caído no chão – folha caduca e amarelecida – verdejei. A Primavera nasce. Não preciso de ti na Primavera. Mas penso que seria muito triste essa experiência de haver trilhos lavados de pegadas e deixar neles só as minhas. Seria triste haver carpas e cães e ovelhas e bichos-pau e não haver um riso comum a fazer música. Seria triste haver uma violeta pousada na varanda e só eu lhe lembrar o nome. Haver uma semente de abacate a despontar e ninguém celebrar o rasgo do caroço e o começo da vida. Haver uma praia plantada à beira-Verão e luas crescentes e ninguém largar os grãos de areia para afagar cabelos soltos nas ondas de uma maré qualquer.

 

Talvez o Verão seja melhor para a solidão. Aguardemos.

 

O Verão. Corda na escarpa do tempo. Um aroma leve de erva-limão. Sal na pele e histórias de ilhas distantes. O atirar de memórias para dentro de malas cheias. Terminais de viagem e o começo da aventura. Convites para o nascer do sol, no pousar de um pássaro de ferro. Braços envoltos na procura pelas terras que ficam dentro. Desconhecer profundamente a órbita dos universos paralelos que se alinham. Celebrar o passar da vida com uma chamada à meia-noite e bailar até que o sapato de cristal e os tetos de vidro quebrem. Simultaneamente. Planos construídos no sonho bom do ser-se. O Verão virá. Não preciso de ti no Verão. Mas penso que seria muito triste que o calor viesse e ninguém dissesse que é bom passear pelas falésias. Transplantar um bonsai e não haver quem lhe afague as folhas, esperando que se adapte à terra nova. Passar pela árvore e arrancar um só fruto.

 

Talvez o Outono seja melhor para cair. Aguardemos.

 

O Outono. Serras repletas de vermelhos e amarelos e laranjas. Sabores torneados à roda do fogão. Filmes em telas grandes e sistema de som, no rolar dos créditos finais. O aroma das castanhas e o riso pendurado das frases. O marcar de mais um ano no calendário, com um poema a muitas mãos. Trincar salsa entre os dentes e lamber o chão com os pés, agora largos. Afundar raízes para agasalhar o corpo do frio. Um aproximar dos corpos e das almas. Chuvas torrenciais e um reflexo bom na janela. Fogueiras acesas com lenha-fruto. Fruto de horas de floresta e sol frio. Reconhecimento e orações feitas de cogumelo e abacate. Caldos e sopas quentes no escuro das horas. Não preciso de ti no Outono. Mas penso que seria muito triste o frio aproximar-se e encontrar-me desagasalhada de sonhos. Haver cogumelos nas lojas e ninguém que partilhe os segredos do cultivo da promoção. Haver poesia e ninguém para a transformar nas folhas perenes das árvores do eterno.

 

Talvez o Inverno seja melhor para arrefentar. Aguardemos.

 

O Inverno. Árvores caídas que são calor. Folhas que são alimento. Alimento que é terra. Romances que ardem. Canções feitas com as receitas que as avós deixaram ao partir. Viagens e palavras que são motor. Bombons nas badaladas. Copos de vinho especiados. Narrativas e planos para a roda do ano que gira. Risos. Naufrágios sobre a textura coelhada dos lençóis. Sestas vesperais. Línguas saciadas com promessas além-fronteiras. Palavras ditas com olhos ponteados de verde. Não preciso de ti no Inverno. Mas penso que seria muito triste que o cansaço viesse e não tivesse ombro para se encostar. Bons filmes lembrarem marmotas e relógios e ninguém se rir. Os pés precisarem de cuidado e ocuparem só o espaço basilar da desimportância, sem que ninguém os escalde. Amigos reunirem à mesa e ficar uma cadeira vazia.

 

Fazemos assim. Quando a roda do ano terminar e se iniciar a quinta estação, dás-me um beijo no rosto. Dizes-me até já. Sais de mansinho. Não olhas por cima do ombro. Não hesitas. Não tropeças nos pés nem no choro. Levas os cravos que colhemos. Saberei. Mas gostava que fosse só lá. Na quinta estação. Não preciso de ti em nenhuma das outras quatro. Mas seria triste que fosses na Primavera, no Verão, no Outono ou no Inverno. Há tantas coisas para fazermos nessa roda... Se puderes, vai na quinta estação. Dizes-me até já. E eu fecho os olhos, devagarinho, enquanto a minha melhor amiga vem. Me tapa com lençóis verdes. E cumpre a promessa.

 


    Marina Ferraz




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terça-feira, 21 de março de 2023

Breve nota sobre o português corrente

 


Digo-te que és uma pessoa de merda e respondes-me que há piores. Calo-me. Olhas-me vitorioso. Achas que ganhaste a discussão. Não ganhaste porra nenhuma. Mas, como se diz em bom português: leva a taça!

 

E por falar em bom português...

 

Quando eu te digo que és uma pessoa de merda, isto não é uma comparação. É uma afirmação. Uma constatação. Mero relato da pessoa que és e que serias, mesmo que não existissem os outros. A condição do outro não altera a minha certeza de que o sejas.

 

Eu poderia ter dito que és a pior pessoa do mundo. O que estabeleceria uma comparação. Tu contra o mundo. Mas estarias habituado, não é? É mais fácil olhar para fora, que os olhos, quando giram na órbita e olham para dentro veem só o buraco. Negro. Desse vazio emocional que compõe a tua ausência de dignidade e empatia.

 

Pensas que estou a comparar porque comparas. Vês sempre os outros por escala comparativa. Caixa etária, donatária, sectária, orçamentária, hereditária, tributária. Uma lógica sectária, um bocadinho otária, se queres que te diga... e cheia de áreas onde a pária... meu amigo, és tu. Porque colocas as pessoas em caixas étnicas, mas nunca nas éticas e te excluis da segunda, ainda que involuntariamente, com todas as palavras que dizes.

 

Tens o dom de ofender qualquer pessoa que, por destino ou bonança, não seja tu. Ofendes os pobres, os refugiados, os negros, os “monhés”, as mulheres, os homossexuais, os teus inimigos, os teus amigos, a tua mãe e os teus animais de estimação. Se tivesses uma quinta, aposto que ofendias a vaca, entre ruminar e ruminar. Orgulhas-te disso. Ganhaste um prémio por narcisismo... mas não foi a medalha de ouro, pelo que também devem existir narcisistas piores.

 

Digo-te que és uma pessoa de merda e respondes-me que há piores. Calo-me. Olhas-me vitorioso. Mas entende. Quando eu te digo que és uma pessoa de merda, isto não é uma comparação. É uma constatação.

 

Perdes aos pouquinhos o sorriso arrogante e tentas dizer-me todo o bem que trazes ao mundo. Ancoras a tua falta de quase tudo na falta de quase tudo dos outros. Há muita gente assim no mundo. Talvez. E é por isso que o mundo está como está.

 

Irrito-me um bocadinho. Despeço-me. Vou para casa e escrevo um texto sobre o português corrente. Essa diferença entre comparações e constatações.

 

Comparo este texto ao último e ao próximo (que ainda não está escrito). Concluo que é um texto de merda. Mas há textos piores.

 

Sorrio.

 

Às vezes não é constatação nem comparação. É desabafo.

 

Disse à minha gata que ela é uma boa gata.

Ela ronronou.

 

A melhor gata do mundo. Constato, comparando.

 

Eis uma frase que é uma constatação e uma comparação! Para um ser sem comparação possível, que já me acalmou depois de ter lidado com uma pessoa de merda, mas que sabe que, algures, por entre sete mil milhões de almas, alguém deve ser pior do que ela.


    Marina Ferraz




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terça-feira, 14 de março de 2023

Vaga de emprego: Deus

 


Procura-se Deus

 

Empresa global procura novo Deus para trabalho em full-time.

 

A MUNDO UNIVERSO & CIA está à procura de um novo Deus, para integrar uma Organização Global e assegurar a gestão, manutenção e atualização das infraestruturas internacionais.

 

Oferecemos integração numa empresa global, que opera no setor dos acontecimentos e é líder na sua área de intervenção e negócio. Como Deus, a sua missão será a de garantir o equilíbrio, de forma prática e sustentada, com a responsabilidade de otimizar e melhorar todos os sistemas sociais, naturais e astrais que garantem a continuidade dos regimes de nascimento, vida e morte de todos os seres vivos.

 

A nossa empresa tem sentido dificuldade em encontrar um trabalhador competente, capaz de gerir eficazmente todos os departamentos envolvidos na harmonia dos processos, nesta posição de liderança. Acreditamos que é possível encontrar um responsável que não leve a humanidade para a plena ruína e, como tal, o candidato deve ser dotado de uma omnisciência total sobre os dados históricos que compõem o nosso percurso pela indústria. Falamos, aqui, da gestão da tendência humana para atividades desautorizadas e que geram uma falha na produção de recursos e onde se incluem, entre outros: a criação de oferendas humanas e/ou animais virgens ou não em períodos de falta, a realização de demandas de evangelização ou conquista de território alheio, a demonização de outros seres humanos e sua eliminação por fins lúdicos, políticos ou económicos ou a sodomização de homens, mulheres e crianças.

 

Entendemos que a nossa reputação possa ter sido abalada pelos mais recentes escândalos sexuais, provocados pela subcontratação de representantes terrenos por parte de uma empresa de recursos humanos externa, com sede no Vaticano, e que vem promovendo, ao longo dos séculos, várias iniciativas alegadamente ligadas à sacralidade da nossa prática, mas sobre a qual não temos efetiva ação, representação ou responsabilidade, incluindo roubo, agressão, assassinato e obstrução de justiça. Infelizmente, por questões contratuais e longos períodos de lavagem cerebral humana, o vínculo à mesma terá de ser mantido e gerido pelo Deus contratado, sem, por nenhuma via, pôr em causa os termos secularmente definidos.

 

Na função de Deus será representante direto e máximo da nossa empresa, ficando essencialmente responsável por assegurar a gestão de todas as infraestruturas internacionais, identificando erros e potenciais pontos de melhoria, por forma a manter a eficácia, equidade e justiça em todo o tipo de processos relacionados com seres humanos, animais e vegetais. Guerras e destruição massiva deverão ser evitadas, o que pode implicar horas extra.

 

Entre as suas responsabilidades estará o apoio à EnergiaDiretora Suprema do Departamento Universal de Expansão e de Todas as Causas Descobertas ou Não – e a gestão de equipas internas e externas. A coordenação dos processos, gestão de sistemas e subsistemas, monitorização permanente de acontecimentos, cumprimento de normas de higiene e segurança, distribuição de recursos e resolução de problemas serão igualmente pontos fundamentais para quem ocupe o cargo.

 

Para ser bem-sucedido na carreira de Deus será importante que tenha uma formação superior em altruísmo e empatia, aliados a uma boa fluência no idioma do “que se foda”. Este conjunto atípico de capacidades garante a ação e a aceitação em momentos chave, sendo igualmente importante um mestrado ou doutoramento no setor do raciocínio lógico e discernimento para saber como utilizar os recursos da licenciatura nos momentos fundamentais. Experiência profissional em setores como Relações Humanas, Recursos Naturais, Novas Energias, Direito, Medicina, Comunicação, Economia e Escola da Vida poderão ser úteis para o desempenho da função. Os conhecimentos informáticos na ótica do utilizador são recomendados, mas não fundamentais para o seu exercício, embora vá passar muito tempo na cloud. Conhecimentos multidisciplinares e capacidade de multitasking são aptidões fulcrais para qualquer Deus.

Ao candidato eleito para o cargo de Deus será oferecida a oportunidade de integrar uma equipa dinâmica e motivada, que acredita na otimização e melhoria contínua dos processos e sistemas atuais, mantendo uma postura positiva mesmo quando claramente já deu merda. Oferecemos escritório climatizado e insonorizado para que possa organizar a sua atividade e as viagens para a aplicação prática das suas ideias. Salário abaixo da média (mas na medida do que sobra a um português comum depois de pagar a renda) e horários que não ultrapassarão as 23 horas e 56 minutos por dia, salvo alteração no horário de rotação da Terra.

Se pensa ter o perfil certo para cumprir funções e está interessado em ser Deus, carregue o seu currículo atualizado e envie uma candidatura e uma carta de motivação.



   Marina Ferraz




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terça-feira, 7 de março de 2023

Mil conceitos no íntimo do silêncio

 


“o que verdadeiramente me dói não são as palavras
que nestes anos todos ficaram por dizer
(...) o que verdadeiramente me dói são os silêncios
que nunca habitámos do mesmo lado
porque o silêncio só pode ser partilhado
com aqueles que amamos até à loucura”

 

(Alice Vieira in “Dois corpos tombando na água)

 

 

Perguntaram-me uma vez: acreditas no amor eterno? Sorri e respondi, com simplicidade: não acredito noutra forma de amor.

 

 

No tempo em que o meu avô me ensinou a gostar de torradas com demasiada manteiga para acompanhar Chocapic em leite quente, a minha ideia do amor era pequenina como eu. Chegada da piscina, ainda com o cheiro do cloro preso às narinas e uma fome de loba, deixava que ele me preparasse o lanche e esperava que a minha avó se sentasse à mesa branca, em silêncio, olhando para mim enquanto comia, em jeito de quem quer apressar-me para irmos fazer juntas os trabalhos de casa. O meu avô acendia um cigarro e olhava para a televisão, em silêncio, encostado aos azulejos azuis. E eu apresentava metodicamente a história do dia: a composição nova, a detestável ginástica e o modo como continuavam, ainda, a levantar-me a saia nos corredores. Fazia isto entre uma trinca na torrada e uma colher de cereais. E falava dele. Do meu melhor amigo de infância, por quem sempre tinha tido aquela paixoneta-miúda mas persistente, que já me acompanhava há uns dois anos e acompanharia por mais nove. Amar, dizia eu então, devia ser brincarmos juntos nos intervalos, onde eramos pretensamente tão diferentes do mundo e tão iguais um ao outro.

 

Crescemos, vejo hoje, trazendo por mais um bom tempo essa ideia louca de que ser feliz com alguém é partilhar riso e brincadeiras, momentos e coisas para fazer. Trazemos isso por tanto tempo que, de repente, falamos de amor outra vez, contando no carro, à mãe atenta, que a noite se pintara de jogos de bilhar e da corrida bar em bar. Entusiasmamo-nos com o facto de gostarmos ambos de caminhar pela serra, de lançar pedras ao mar, para que saltem uma, duas, três vezes. Por caminho, esta é uma noção que partilhamos também com os nossos irmãos mais velhos, estupefactos com a certeza de que sabemos, finalmente, que o amor não pode ser outra coisa. Todos eles ouvem. Em silêncio. Esta nova filosofia. Gostamos de fazer coisas juntos... amar deve ser isso.

 

Depois, um dia, descobrimos que existe alguém. Tão diferente de todos os conceitos. Tão longe de todas as realidades. Não contamos ao nosso avô, porque já morreu. Nem à nossa avó, porque não queremos incomodá-la com mais uma história que talvez não dê em nada. Nem à nossa mãe porque para contarmos à nossa mãe seria preciso contarmos a nós mesmos e ainda não estamos preparados para abrir um capítulo. Mas o capítulo abre-se. Porque, de repente, estamos num carro, debaixo das estrelas. Não estamos a fazer nada senão a ir do ponto A para o ponto B. Não sonhamos fazer nada além de ir do ponto A para o ponto B. E, no entanto, as palavras escorregam-nos da boca e a conversa é fácil como se os temas não pudessem acabar e nunca fossemos cansar-nos da voz um do outro. As palavras escorregam com tanta facilidade que, de repente, quando vamos falar desse novo conceito de amor, que é alguém com quem podemos falar, sem fazer nada... já nos caiu dos lábios o primeiro “amo-te”. Entre “amo-te” e “amo-te”, que o mal é sempre dizê-lo pela primeira vez, percebemos que amar alguém não é partilhar recreios e momentos. Talvez devêssemos aprender, aí, que ainda estamos a descobrir o mundo. Mas não o fazemos. Em vez disso, insistimos, amar é ter espaço de conversa e nunca ficar sem tema. Pendurar riso nas frases e ser feliz, mesmo sem mover um músculo. Só para isso. Para conversar...

 

Quando os temas intermináveis terminam e os tempos do infinito tocam, como o despertador, o simples das conversas leva-nos a uma estrada onde palavras também são mágoa. E, de repente, esse amor-palavra é insuficiente. Porque permanece, mas se gasta em si mesmo, sem nos dar tempo e espaço.

 

 

Choramos no colo da nossa mãe e da nossa avó. Outra vez. E elas afagam-nos o cabelo, em silêncio. Mas, depois, a nossa avó morre. Morre, mas fica. Um alerta claro para a inevitabilidade do fim e a sua impossibilidade. E, acordando, percebemos que o amor é outra coisa. Mais forte do que todas as coisas que podíamos fazer. Mais forte do que todas as conversas que podíamos ter. Algo tão sem-justificação que permanece nos silêncios que não são emudecimento e na falta que não é ausência. Simplesmente eterno.

 

Aprender a eternidade do amor e aceitá-la. Saber que não há portas fechadas e janelas abertas, mas apenas campos sem limites. Perceber a plenitude de não fazer nada, de não dizer nada. Amar, entendemos então, é também encontrar quem sabe simplesmente estar, em silêncio. É muito difícil essa coisa de estar em silêncio. E haver paz no silêncio. E haver tantas coisas dispersas no silêncio que o próprio tempo não avança com as leis dos homens. O silêncio, entendemos então, é o mais íntimo dos atos.

 

Perguntaram-me uma vez: acreditas no amor eterno? Sorri e respondi, com simplicidade: não acredito noutra forma de amor.

 

Trago em mim todas as pessoas que amei. É um amor, sentada a olhar o mar, sem palavras, quando te dou a mão com os sentidos e não te toco. É um amor, trincando uma torrada com demasiada manteiga e comendo chocapic. É um amor, de chamadas intermináveis no meio do trânsito. É um amor de já não estares e não mudar nada...

 

Há várias formas de amar. Uma para cada pessoa que amamos. Mas é o mesmo amor. Um que existe sempre. Para sempre. Que se perpetua depois do fim. Que não depende de palavras. Que não morre com a morte.

 

Mudei muitas vezes a minha opinião sobre o local onde encontramos o amor...

... mas da sua eternidade, eu não nunca duvidei.

 

Trago em mim todas as pessoas que amei. É um amor eterno. E, por favor, se eu estiver enganada, não me digam...

 

   Marina Ferraz




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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Réguas e níveis

 


 

Réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. A conquista. O quadro está direito. Mas não basta que esteja direito. Havemos, entendam, de o acertar novamente. Sempre que passarmos por ele. Até que a solidez da sua orientação deixe orgulhosos o chão e o teto, com as linhas paralelas. As linhas paralelas estão na moda. É o que dizem.

 

Cabe-me dizer. Esta não sou eu. Os únicos pregos que preguei na vida foram batidos a martelo na tábua velha e meio comida que o meu avô tinha na loja. A loja era uma garagem-adega-pau-para-todo-o-serviço. E o meu avô, que gostava de me fazer as vontades, alertava só. Cuidado com os dedos. E deixava-me em paz, para terror da minha mãe, com a tábua e os pregos.

Nas minhas paredes há poucos quadros. Dos que foram pendurados, existem aqueles que beberam do perfeccionismo do meu pai. Postos com réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. Tudo isso (e mais um par de botas...). Depois há aqueles que colei com fita dupla, sem muito cuidado. E aquele velho quadro de cortiça, com apliques que insistem em cair, que já arrancou mais estuque do que serviu função.

Não me importa muito que os quadros estejam direitos. Não é que o TOC não me afete às vezes, como a toda a gente. Mas sou mais daquelas que gosta de garantir dez vezes que trancou a porta, fechou o gás do fogão e desligou as luzes. Felizmente, nunca liguei muito a esses paralelos e perpendiculares das linhas cimeiras e laterais dos quadros. E ainda bem, porque a casa, como eu, parece gostar de ir torta pelos caminhos da vida e, juro, ou o chão não é direito, ou o teto não é. Parece uma empreitada, eu sei. Mas o empreiteiro foi o primeiro a dizer-mo, quando tirava medidas durante as obras intermináveis: isto não é direito.

As linhas meio tortas da casa são espelho. Creio que algo no meu cérebro se apercebeu disso quando entrou pela porta a primeira vez. É mesmo esta. Lembro-me de pensar, apesar da mancha de humidade no quarto gritar que, provavelmente, era muito má ideia. É mesmo esta. Acho que moro numa casa que é minha além do papel. Temos ambas problemas com a medida que une as pontas e não sabemos muito bem para que lado nos tende a infinitude. Temos ambas a noção de que, de qualquer forma, ninguém nos verá além dos 70 metros quadrados e do 1,63 metros de altura. Para gente tão preocupada com o alinhamento das coisas, deixem-me que vos diga que acho as pessoas extremamente superficiais quando se trata de entender o alinhamento da alma.

Não gosto muito do que é – ou tem de ser – certo. Quadros colados com fita dupla e como calha. Dias a correrem como os Deuses quiserem. Bolos feitos a olho, como me ensinou a minha mãe, mulher sábia e também não muito alinhada com a sociedade de hoje. Não gosto dessa solidez do certo, que é tão procurada e dignificada. Gosto do que nasce dos pequenos incertos e das nuvens nos dias de sol, que nunca têm uma forma muito concreta, mas vão andando, ao ritmo do vento que vier.

 

Dizem-me frequentemente que a pintura deve ser assim. E que, depois de enquadrada na moldura do que é socialmente aceite, deve ser pendurada com réguas e níveis. Pregos colocados, equidistantes. Um olhar de perto. Um olhar a dois passos. Um olhar do outro lado da sala. Até à perfeição.

Eu sou o quadro de cortiça, que já caiu mil vezes e arrancou o estuque da parede. Quem nasce torto, dizem, tarde ou nunca se endireita. Mas eu não faço questão de direitas. Gosto de coisas tortas e irregulares. Sou mais fã, entendam, de direitos, mas com isso parece que o mundo se preocupa cada vez menos (ou só da boca para fora).

Não quero o que é sólido, reto, feito a peso e medida. Vou continuar a ter paredes com o estuque arrancado e bolos que ficam densos demais. Paciência.

Há quem goste da solidez do que é certo, esquecendo que quem muito se agarra ao chão passa a vida vergado. Com licença. Eu vou com as nuvens.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

163 minutos ou a pseudo-psicoterapia de bolso

 

Fotografia de Raul Pinto

  

Redes de malha fina. É isso que são. E vamos todos de arrasto na pseudo-psicoterapia de bolso. Porque o smartphone cabe no bolso. Mas nunca está nele. Está sempre na mão. Debaixo de dedos hiperativos. Saltando do simples para o simples. Evitando, assim, o complexo da vida fora do pequeno-ecrã.

 

O simples. Deus primordial da era do 0 e do 1. Gente simples. Imagem simples. Frase simples. Texto simples. Mas é curioso. Cada vez mais sinto que a simplicidade evidente das frases que preenchem essas redes é muito complexa. Uma máquina digital bem oleada de lugares comuns e clichés. Uma espécie de máquina de fazer acéfalos. Não se enganem. Não aponto dedos. Ou aponto, ao ecrã, dando-me conta de que, de repente, o acéfalo sou eu. No olhar que corre o feed. Que se identifica com uma ou outra citação. E que mergulha na esmeralda que, neste caso, é o discernimento perdido.

 

Paro. Para pensar. Se estou a pensar.

Surpresa das surpresas: às vezes não estou!

 

 

Hoje cruzei-me com esta citação – seja ela de quem for, já que na web tudo é de todos e de ninguém e se atribuem alusões a Buda, a Gandhi, a Einstein e a Marilyn Monroe de coisas que estou quase certa que eles nunca chegaram a pensar, quanto mais a dizer – “não corra atrás, quem ama fica”. Esta frase – aparentemente inocente – é irmã de outras que li numa só corrida de olhar pelo feed – “vai embora se ele não está a tentar, um homem que se importa tenta” ou a minha favorita “não é quem te chama de princesa, é quem te trata como uma”. Minha nossa! Parece simples. Parece evidente. Por momentos, se desligarmos um ou dois neurónios funcionais, até é verdade.

 

Mas paramos. Para pensar. Se estamos a pensar. Estamos?

 

Primeiro: muitas vezes quem ama, vai embora. E muitas vezes vai embora porque ama. Amar o outro é, muitas vezes, saber que não estar é o que dará ao outro o espaço para feliz. Muitas vezes quem ama vai embora. E muitas vezes vai embora porque estar magoa, porque existe violência, porque às vezes a escolha é sobreviver. Sim... quem ama vai embora. E concordo com a parte do não correr atrás, porque, vocês sabem, o impacto no chão faz mal às costas e o impacto na alma faz mal ao ego. Mas porra. Quem ama pode ir embora. E isso não significa que não ame.

 

Segundo: o segredo que ninguém nos conta sobre a vida é que ela não deve ser um martírio. Sabemos que os dias nos exigem esforços. Sair da cama quando o despertador toca. Trabalhar. Cumprir aquelas tarefas de rotina. Roupa. Louça. Limpar a casa. Cozinhar. Aguentar as filas de trânsito e todos os extraordinários seres que encontraram a carta de condução como brinde dos pacotes de cereais. Mas a amizade, o amor, as relações familiares... esse é o conforto. O abraço no final do dia. O ouvido que se propõe a escutar as reclamações sobre o idiota que quase nos fez ter um acidente na curva da IC19 ao pé do Palácio de Queluz ou do patrão que implicou connosco à frente do escritório inteiro. O braço sobre o ombro enquanto vemos o filme. A mão que limpa a lágrima que insiste em cair quando algo corre mal. A gente que sorri quando sopramos as velas do aniversário. As pessoas que nos chamam à razão quando estamos a exagerar ou a ver as coisas pelo avesso, porque não, nem tudo são rosas... Mas mesmo quando não é simples, não é um esforço e não implica que se tente. Por isso, quando nos dizem “vai embora se ele não está a tentar, um homem que se importa tenta”, pode ser hora de ir sim... mas porque não devia ser uma questão de tentativa...

 

Por fim: a princesa. A princesa que anda dois passos atrás do companheiro, que não usa decotes nem saias acima do joelho, que sorri e acena. Se chamarem-nos “princesas” já acarreta uma dose provinciana de estereótipos, tratarem-nos como uma então...

 

Quando paramos. Para pensar. Se estamos a pensar. O que vemos? Redes de malha fina. Pseudo-psicoterapia de bolso. Dedos hiperativos. Falácias. Lugares comuns e clichés. Uma espécie de máquina de fazer acéfalos.

 

Na época das corridas desenfreadas, encontramos 163 minutos, em média, por dia, para estar presos a essa realidade de ilusões. Podem verificar. É o que dizem as pesquisas. 163 minutos nos quais nos entram, olhos adentro, centenas de frases. Juro que estas três apareceram a correr o feed em menos de 2 minutos. Quantas cabem em 163 minutos? O que estamos a aprender? E quantos minutos paramos para pensar sobre tudo isto?

 

Não se enganem. Não aponto dedos. A prova é esta. Este texto. Publicado num blog e promovido na rede fina que nos leva de arrastão e que vou promover mais abaixo. Mas, vocês sabem, como dizia Viriato, esse eterno herói das guerras lusitanas, “larguem as redes sociais e vão viver a vida, que o melhor acontece em off”.

  Marina Ferraz




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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A forma de vos amar

 


Não é sempre, entendam. Não sou perfeita. Mas, na maioria dos dias, tento beber do que aprendi, sentada de pernas “à chinês” no chão de um templo budista. Amar – disseram-me lá – só tem valor assim, quando o Amor é Universal.

 

 

Acordo de manhã. O espaço que ocupo tem, muitas vezes, limites físicos e quentes. Toque de pelo e toque de pele. Carne, calor, afeição. Respirações mais ou menos pesadas. Acordo de manhã. Deposito festas e beijos e abraços, distribuindo-os e recebendo deles o retorno. Sorrio. Nem sempre por fora, já que o embalo da manhã nunca me é suave. Mas sorrio. Onde importa. Dentro. E penso: que boa maneira de acordar, que boa maneira de viver, que boa maneira de morrer um dia. Digo muitas palavras de Amor na minha cabeça. Não as digo porque – mulher de palavras – sei que elas cabem no silêncio dos gestos. Mas aproveito que elas me ocupem a mente e desejo. Fechando os olhos antes de me levantar. Que toda a gente possa conhecer a plenitude de acordar no espaço confinado entre corpo-de-gato e corpo-de-gente e sentir o calor da perfeição no peito.

 

Levanto-me. Faço uma espécie de romaria até à máquina. Vou com fé. Ao café. A luzinha amarela que pisca até dar origem ao verde é um cumprimento matinal que aprecio. O som da cápsula que rompe. O cheiro quente do líquido escuro. E o caminho que faz, na minha mão, até aos meus lábios. Há aquele momento. Aquele em que o café toca a língua. Aquele em que o café toca a alma. Aquele em que fecho os olhos e desejo. Novamente. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do conforto dos pequenos rituais perfeitos.

 

Vou trabalhar. Ligo a Internet. Descubro que o emaranhado da véspera se soma a uma nova lista de prazos. Reclamo levemente de tudo o que é “para ontem”. Mas, depois de meia dúzia de impropérios ditos em surdina, lembro o caminho. Eu fui uma menina de 6 anos a desejar vir a ser o eu que eu sou aos 33. Agradeço brevemente. Essa possibilidade de o ser e todo o papel que cada uma das solicitações dos clientes tem para que eu possa sê-lo. Lanço-me ao teclado para escrever. Nos espaços entre as palavras, um desejo. Outro e o mesmo. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do encontro consigo mesmo e com a concretização do sonho, mesmo que ele venha sob as formas mais estranhas.

 

Como. Faz parte dessa coisa de ser humana. Comer. Cozinho os pratos de que mais gosto ou peço Uber Eats. Não importa o que é a comida. É, quase sempre, algo de que gosto. Mas poderia não ser. Importa que, quando tenho fome, como. Parece evidente. Mas eu sei que não o é para uma grande parte do mundo. E, retirando o prazer (e a nutrição) essenciais dos alimentos, eu desejo. O mesmo desejo. E outro. Que toda a gente possa conhecer a plenitude de ter acesso a comida quando a fome adensa.

 

Falo com a minha família e os meus amigos. Nem sempre os mesmos. Sinto o carinho e a proximidade, mesmo quando a distância é muita e os desencontros se somam. Por vezes, apenas um emoji na caixa de entrada, que até fica por responder. Outras vezes, conversas longas em videochamada. Sinto-me parte de algo. E, quando essa emoção me preenche até os poros, eu agradeço a quem me faz feliz no contacto e desejo. Um desejo. Que também é o mesmo, mas é mais. Que toda a gente possa conhecer a plenitude desse aconchego de ter companhia no caminho.

 

Tomo banho. A água quente na pele desperta-me os sentidos. Lava-me o frio e a pele. Conforta-me e acalma-me. Prepara-me para que me vá deitar, tranquila e deixando o dia atrás de mim. Nesse aguaceiro de poliban, fecho os meus olhos. Desejo. Que toda a gente possa conhecer a plenitude do bem-estar e do prazer ao final do dia.

 

Não é sempre, entendam. Não sou perfeita. Mas, na maioria dos dias, tento beber do que aprendi, sentada de pernas “à chinês” no chão de um templo budista. Na maioria dos momentos, tento lembrar-me de que o Amor – esse capital e não o de uso corrente - não é um combustível fóssil, que se esgote. É energia branca. Limpa. Boa para a Natureza. Para a alma... Amar – disseram-me lá – é amar toda a gente. Amar – disseram-me lá – é amar sem exceções. Amar – disseram-me lá – só tem valor assim, quando o Amor é Universal.

 

Sempre tive amores universalmente grandes. E poucos. Esgotava a universalidade do Amor em poucas pessoas. Usualmente aquelas com quem partilhava os afetos. Aquelas com quem queria partilhar afetos. Mas, entendo agora, nunca poderia amá-las verdadeiramente se, nelas, depositasse o dever de me aceitar esse Amor de exceção.

 

Então, esta é a minha forma de amar. Amando as pessoas dos meus afetos. E aquelas que conheço, mas que não fazem parte da minha rotina de afeições. E aquelas que não conheço. E, imaginem, aquelas que me feriram e ferem e irão ferir. Esta é a minha forma de vos amar. Universal como o Amor é. Recusando-me a reduzi-lo aos lugares-comuns que nos ensinam a desaprender o Amor, dizendo que ele é só uma vez ou só para uma pessoa.

 

Amo assim.

 

E deito-me. Depressa fico entre corpo-de-gato e corpo-de-gente. Penso: que boa maneira de adormecer, que boa maneira de viver, que boa maneira de morrer um dia. Digo muitas palavras de Amor na minha cabeça. Não as digo porque – mulher de palavras – sei que elas cabem no silêncio dos gestos. Mas aproveito que elas me ocupem a mente. Desejo. Fechando os olhos para dormir. Desejo. Ser capaz de continuar amanhã. A amar. Esse Amor capital. Desejo-o porque sei que não é garantido. Não é sempre. Entendam. Eu amo. Muito. Mas não sou perfeita.

 

Desejar é – a cada dia - a minha forma de vos amar.

 

 Marina Ferraz




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