quarta-feira, 12 de março de 2025

Moção de Loucura

Imagem gerada por I.A.


Venho por este meio apresentar uma Moção de Loucura.

 

Reconheço, oficialmente, que a Sanidade foi uma das jovens promissoras que emigrou para o estrangeiro à procura de uma vida melhor e sem intenção de retorno. Na sua partida, deixou dentro de fronteiras apenas o já conhecido desespero, a corrupção e alguns laivos de demência, que atingem também (mas não só) a classe política portuguesa.

 

Consciente de que conversas e discursos inflamados já pouco adiantam face à situação atual, e cansada da desordem nacional – tão comum e tradicional como Pastel de Belém e o café com cheirinho – declaro, com a mesma indignação com que o fariam os doutos comentadores políticos dos tascos e cafés, que é hora de rirmos para não chorar.

 

Ressaltando que, de cada vez que o governo cai, quem se aleija é Portugal, espero que esta moção possa ser apoiada pelos que, como eu, estão a ficar roucos de gritar verdades tão ignoradas como os sucessivos líderes governamentais têm ignorado os cidadãos.

 

Mais asseguro que compreendo a inércia dos portugueses no momento de votar e de lutar pelos seus direitos, sabendo que é mais fácil pôr as mãos nos bolsos e assobiar para o lado. Na verdade, até recomendo que sigam de mãos nos bolsos, já que, se não o fizerem, é expectável que alguém tire de lá a pastilha elástica que tem sobrado depois de pagas as contas e acumuladas as dívidas.

 

Aproveito este momento para abordar também uma questão pertinente sobre a queda a pique e os danos provocados ao país, lembrando que antes que sejam curadas as feridas será necessário aguardar, já que as urgências apenas podem ser acedidas após contacto telefónico com o SNS24. Mediante triagem e depois de alguns dias, meses, anos, a desfalecer, talvez o país tenha finalmente consulta de especialidade para iniciar um tratamento que, com sorte, não irá funcionar por erro de diagnóstico. Claro que podemos sempre desejar que o próximo primeiro-ministro tenha menos avenças de casinos e mais avenças de serviços privados de saúde... e que isso, de algum modo, sirva o enfermo país no leito de morte da sua dignidade...

 

 Proponho a presente Moção de Loucura com a intenção de reafirmar a importância do voto e pedir aos portugueses que abracem a essência louca do espírito cívico e cometam a insanidade de levar o cérebro juntamente com o cartão de cidadão, quando forem às urnas.

 

Sem mais,

A pessoa que está aqui a pensar “eu avisei”, mas que não vai dizer isso para não ferir susceptibilidades.


Marina Ferraz




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terça-feira, 4 de março de 2025

Cordão umbilical

Imagem retirada da web | Pixabay


Hoje estou vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar...

 

A voz da minha mãe interrompeu o sinal de chamada poucos segundos depois de ter clicado no ícone verde do ecrã. Foi casualmente que me cumprimentou. Casualmente, porque a rotina é essa. Porque falamos todos os dias. Porque o cordão umbilical foi mal cortado, e nenhuma das duas quis confessá-lo ao médico. Deixámos que ficasse assim. Ligando-nos, invisivelmente, de uma forma tão profunda que, ainda que tentássemos explicar, não seria entendida. Mas também não queremos explicar... Na nossa fala de meias palavras entendemo-nos plenamente. Um trejeito é uma resposta de três páginas. E a conversa avança depressa, por isso, para coisas menos importantes, já que o importante fica dito no que nem é dito.

 

“Então o Carnaval?”, pergunta-me.

“Um dia igual aos outros...”, respondo. Ouço-a sorrir e não espanto que não se espante.

“Eu também não ligo, mas há pessoas que ligam mesmo muito.” – Breve silêncio. – “Acabo de ouvir numa reportagem pessoas que dizem que é o único dia em que se podem sentir elas próprias...”

 

Sou acometida por um profundo sentimento de tristeza. Há pessoas que dizem que o Carnaval é o único dia em que podem ser quem são, quem sentem que são. Engulo em seco. Sem saber se quero apontar dedos ao mundo que subjuga as pessoas ou às pessoas que se deixam subjugar pelo mundo.

 

“É muito triste...”, digo. Ela concorda.

“É mesmo”.

 

Despedimo-nos. Iguais a nós mesmas. Ela, mulher que já largou a menina que se deixava vergar, mas nunca a convenção aprendida. Eu, mulher que apimentou a menina que já não se deixava vergar, e que se está a cagar para a convenção. Mas, no fim da chamada, eu que raramente me costumo mascarar pelo Carnaval, estava vestida de tristeza. Logo eu, imaginem, que sou tão inapta para ser triste, ainda que tenha passado a vida inteira a treinar para o ser...

 


Tenho a sorte. A honra. (A ousadia?) Essa. De ser eu. De ser quem sinto que sou. Tanto, que não tenho a certeza se o meu eu amanhã será o eu de hoje. Habituei-me a não me negar. Faço sentido para poucos. Sou a miúda dos textos, que às vezes não escreve. A mulher que anda de fato de treino ou de saltos altos. A fadinha. O monstro. A pessoa que treina todos os dias. A sedentária. A pessoa que come saudável. A pessoa que enfarda fritos. Sou, a cada momento, precisamente o que me apetece. (E o médico já me avisou que, provavelmente, vou morrer disso. Altura em que fui a pessoa que o informou que é bom saber, porque toda a gente sabe que morre e poucos sabem de quê...)

 

Por entre o meu eu a ser eu acho que me desabituei da ideia do ajuste. E, de algum modo, foi como se a constatação do óbvio fosse uma novidade muito amarga, que trinquei a seco. As pessoas não sentem que podem ser quem são.

 

É Carnaval. Vestida de tristeza, mergulho em mim para escrever este texto. Nele, crio agora um universo de utopia, onde as pessoas pudessem, todos os dias, ser homem, ou mulher, ou cowboy, ou coelhinha da playboy, ou figura de ação. Principalmente figura de ação, agindo contra o socialmente correto e o politicamente aceitável que lhes rouba a vida.

 

“As pessoas têm medo.” Dizem-me.

 

Eu também tenho. Não do mesmo, obviamente... porque tenho muito medo de só poder ser eu mesma um dia por ano...

 

Sei que não há nada que diga que faça alguém entender.

 

Exceto à minha mãe. A quem não preciso de dizer nada. Porque entende...

 

Calha bem não ter de dizer nada... porque hoje é Carnaval. Estou vestida de tristeza.


Marina Ferraz




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terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Pergunta de rasteira

 

Imagem gerada por I.A.

Há uma pergunta de rasteira para escritores. Qualquer entrevista de cinco minutos e lá está ela... Resplandecente. Quais são as suas referências literárias? Pergunta aparentemente simples e que deveria ser de resposta igualmente natural. Só que não é! Nunca é!

 

A pergunta surge. Reviro mentalmente os olhos, tentando fisicamente mantê-los presos no meu interlocutor. Tento não lhe dizer que eu sei que é a pergunta da praxe. Se eu estivesse ali por causa do stand up perguntaria certamente quais os limites do humor. É o bê-á-bá das entrevistas. Parece que, com ou sem curso, todos estudam pela mesma cartilha.

 

A pergunta surge. É também mentalmente que movo com desconforto o corpo inerte. E é mentalmente que estalo os dedos quietos. E, talvez por estar mentalmente a espancar o jornalista, enquanto permaneço tranquila e serena na cadeira, o meu cérebro recusa-se a lembrar-se de referências válidas para apresentar como resposta.

 

É um fenómeno incrível. Li vários clássicos da literatura portuguesa e estrangeira, assim como alguns nomes contemporâneos que certamente ficarão para o cânone. E, naquele momento, o meu pensamento povoa-se de vazio, como se listar alguns autores fosse, de súbito, uma prova de física quântica.

 

Sabendo que a pergunta viria, seria bom ter preparado uma resposta eloquente, mas despretensiosa, que não me fizesse parecer uma idiota iletrada. Mas perdoo-me a falha de acreditar – de todas as santas vezes – que a pessoa que fará as perguntas terá a sanidade e bom senso de não repetir a mesma pergunta que toda a gente faz a toda a gente que escreve.

 

Passam-me pela cabeça, finalmente, alguns nomes que marcaram a minha jornada como leitora. Tento identificar, de entre eles, aqueles que me foram referência. E filosofo durante alguns segundos sobre o que raio querem as pessoas dizer com referência. Querem saber o que eu li? Quem me influenciou? Quem são as fontes de inspiração da minha escrita? Parece simples, mas não é. Porque gostar de um autor e ser influenciado por ele é muito diferente. No rescaldo destes pensamentos, sobra a enumeração do costume.

 

Florbela. Saramago. Pessoa. Eça. Sophia. Penso que poderia estar a fazer a listagem do óbvio, à medida que o menos óbvio começa a sair. Roger Wolfe. Bohumil Hrabal. E sei, no meu âmago, que cada leitura me ajudou a construir o eu que eu sou. Mas não sei se alguma delas influenciou o meu trajeto na escrita. Não sei se estas leituras incentivaram mais a minha escrita do que a mão da minha avó ajudando-me a traçar as primeiras letras, ou do que a paciência da minha mãe que inventava histórias com coelhinhos que andavam, andavam, andavam...

 

Tento explicar isto. Com humildade e despindo-me da temida presunção de nomes que me suplantam: Eu sou fruto das minhas leituras e da minha história de vida. Dos meus encontros. Das minhas perdas. Do meu caminho... A minha literatura também.

 

Há o risinho polido no fim da explicação. A felicidade da vitória com a pergunta de rasteira do costume. Como se colocar-me no lugar de ser eu fosse, de algum modo, uma forma de me baixar a um patamar feito para autores de segunda. Logo eu que sou, como sabe e bem quem segue o meu blog, mais autora de terça, de adega, de quando calha...

 

Sou quem sou e recuso-me a considerar que isso determine o meu valor. Não é isto que digo. Digo antes que me considero uma contadora de histórias. Que cada pessoa é uma história. Que toda a gente me inspira. Que gosto de romancear a vida, de a ficcionar...

 

Olha-me, condescendente e diz:  A Marina é a Marina. Essa é que é essa...

 

Sorrio. Ainda bem que não me sabe humorista, porque literalmente não me interessa qual o limite do humor... Respondo:

 

É! Eça é que é Eça! Eu certamente não escreverei “Os Maias”!..


Marina Ferraz




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terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Apólice

 

Imagem gerada por I.A.

O senhor olhou para mim. O senhor explicou-me os termos do seguro. O senhor fez-me perguntas sobre as fechaduras e a área e o tipo de janelas e perguntou se a porta era blindada. Ergueu o sobrolho quando lhe disse que não a esta última e continuou, categoricamente, a inserir dados no computador.

 

Explicou-me tudo o que um seguro de casa – esse que é obrigatório por lei – teria de conter e tudo o que podia acrescentar, sob a forma de extra, para estar mais protegida. Danos de água, responsabilidade civil, risco de incêndio, ocorrências sísmicas (e aqui aproveita-se os eventos recentes para criar um duplo sentido de necessidade) e ainda quebras de vidros, danos em bens, serviços de emergência, danos em jardins, mais um sem fim de coisas, nunca esquecendo os temíveis – literalmente houve um ar compungido e repleto de todos os tons negros da angústia nos seus olhos azuis - atos de vandalismo ou roubo de bens.

 

Atentamente, ouvi a descrição. Senti-me engolir em seco, pensando na minha casa como a câmara dos horrores e obrigando-me a voltar a mim, para me recordar que a única razão real de eu estar alapada numa sucursal do banco era porque precisava – legalmente – de ter o papelinho da apólice para entregar ao condomínio. Aceitei o pacote mais básico, onde – não se apoquentem! - já se incluía a proteção sísmica, os danos por água, incêndio e a responsabilidade civil.

 

O senhor perguntou-me três vezes se queria assegurar os bens para o caso de furto. Três vezes. Eu devia ter percebido que havia algo inerente à sua pergunta! Mas quis mesmo o pacote básico, cujo valor era mais reduzido.

 

Nisto, por débito direto, eis que o valor anual do seguro é sugado por uma palhinha – de plástico e tudo, porque agora o Trump deixa.

 

Engoli em seco novamente. Pensei para comigo que devia ter feito o seguro com a proteção antifurto... porque foi ali, à luz do dia, em pleno balcão bancário, que aconteceu. Fui roubada! Legalmente roubada! Consta que serei roubada todos os anos, com esta finalidade, pelo menos uma vez.

 

Em perspetiva, os outros bens não precisam mesmo de estar assegurados!

 

Vou ter de os vender – e a um rim – para pagar mais esta despesa...


 

(Há algum seguro em caso de capitalismo exacerbado? Estou a perguntar para um amigo!)


Marina Ferraz




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quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A história do Botânico

 


Para o meu tio-avô Zé 
(pelos seus bonitos 87 anos)


Acreditem ou não. Ninguém pedirá, em momento algum, a vossa opinião. Mas, numa manhã fria de inverno, aproveitei a ausência de chuva e sentei-me num dos bancos do jardim. Cheirava a terra húmida e ouvia-se o silêncio que os bichos fazem quando rastejam por debaixo da folhagem carcomida do outono, há muito caída das nuvens-copa de mil árvores.

O silêncio recortava arestas na memória e correu uma jovem de tranças negras na minha direção, saltando um longo ramo de hera que arrancara algures como se fora uma corda de saltar. Teria, talvez, 13 anos. Quando me viu, retraiu-se e parou, escondeu-a atrás das costas e pediu-me infantilmente:

Não contes à mãezinha.

Ri-me das suas palavras e cruzei os dedos por de sobre os lábios, numa promessa que a fez sorrir de forma aberta e harmoniosa, ao mesmo tempo que lhe enrubesciam as maçãs do rosto. Vestia um vestido gasto de chita, de um verde velho com bolinhas brancas. Sentou-se ao meu lado e perguntou-me o que estava a fazer.

A ver passar a vida. Respondi. Ela não pareceu achar que o passar da vida fosse interessante, porque roubou a conversa, mudando-lhe o tema.

Vim buscar folhinhas de amoreira ao senhor Tomé. Levantei o sobrolho. Não era a amoreira uma árvore de folha caduca? Não estariam essas folhas velhas e gastas, no chão, sendo comidas por minhocas, larvas e cupins...?

E para que as queres? Ela sorriu.

Essa é uma longa história!

Eu tinha tempo...

*

No dia 12 de Fevereiro de 1938, Ciosinha vinha da escola. Vinha cantando os seus 7 anos de vida. Cumprimentando aqui e ali senhoras cujo primeiro nome sempre era Dona e que algures tinham também Maria. E alguém lhe disse: tens um maninho novo lá em casa. Isto é importante: ela não corria. Não corria porque uma menina não devia correr. Já a repreendiam o bastante quando roubava hastes de plantas para saltar à corda na ladeira. Mas correu. Correu porque não tinha notado a gravidez da mãe. Correu porque lhe tinham falado de amor. Porque a frase do amor era aquela: tens um maninho novo lá em casa.

O nome do maninho foi António José. Nascera no dia de santa Eulália. Tinha olhos castanhos. Deixara derreada a mãe, que já não ia para nova. Tomara de primeiro nome o nome do pai, cacheiro viajante, que regozijou o nascimento do segundo menino, depois de um primeiro varão e três moças.

António José ficou conhecido por Zé. Mentiu à mãe uma vez. Só uma. E serviu-lhe de emenda a lição dada com a mão firme. Ainda assim, a irmã vestia uma capa protetora de amor. E, quando as caixinhas de bichinhos da seda começaram a ganhar espaço debaixo da cama, era ela que se escapulia até ao Jardim Botânico e interpelava o jardineiro. Senhor Tomé, não tem por aí umas folhinhas de amoreira?

O Zé jogava futebol. O Zé cresceu. O Zé casou. O Zé divorciou-se. Arranjou trabalho no Porto, largando depois o curso de Direito, que por direito nunca foi o seu e lançando-se na área da Medicina que tanto amava. Vendeu ideias. Apaixonou-se. Foi trabalhar para África. Regressou. E houve sempre amor. Aquele de quando disseram à Ciosinha: tens um maninho novo lá em casa. E ouvi a voz dela completar a história. E ele já tem 87 anos...

*

Olhei para os ramos despidos das árvores acima de mim. E caiu uma gota de água no meu rosto. Pensei dizer à menina que era impossível que o irmão mais novo tivesse 87 anos e que ela se lembrasse daquela história. Mas, quando olhei o banco, ela já não estava.

 

No chão, mantinha-se um ramo recurvado. Sobre ele, folhas verdes e primaveris de amoreira.

 

E o Botânico falou. Usou a voz da menina das tranças e disse-me: agora vai celebrar o maninho que nasceu, porque dele, um dia, trarás o legado. É que a amoreira tem folhas caducas. Mas o amor tem folhas perenes.

 

Hoje estou aqui. A celebrar. Nasceu o maninho da Ciosinha. Esse que, como eu, "é o que é, mas quando deixa de ser o que é nunca mais é o que é".

 

Brindo com um Monte Velho a sua eterna juventude.

 

Venho a sorrir, saltando na corda de hera da memória.

 

O amor tem folhas perenes.


Marina Ferraz




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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

A última mensagem

 

Imagem retirada de Renascença 

Para o Renato Júnior


Ligo-te para a semana. Disseste.

 

Eu era, sempre fui, esse espetro que não entendias bem. Descrevias-me como “dark” e insistias, com um sorriso que te fazia rir os olhos: letras menos negras, Marina... querias o mundano, o simples, aquilo que faz as pessoas parar, globalmente, com uma identificação direta. E eu sempre fui de escavar as emoções para ir onde dói. De dizer o que as pessoas não querem ouvir. De falar sobre a morte.

 

Insististe comigo várias vezes. Dizendo-me que as pessoas não querem ouvir falar da morte. E eu insistia em encaixá-la nos versos. E tu sorrias aos versos com os olhos, sem entender. Guardando-os na mesma pasta, esperando que os dedos se envolvessem no piano para que nascesse algo tão denso quanto as minhas palavras. Mas não encontravas canção para a morte. Ou não encontraste até ao dia em que te enviei o “Quando morre o amor”, canção que escreveste de um fôlego e que entregaste à Kátia, para que ganhasse vida. Deste vida à minha morte. À morte do meu amor. E eu não sei se te agradeci o suficiente por todas as canções que criaste com palavras que deixei cair no papel.

 

Lançaste-me um sem fim de desafios. Escrever para teatro. Escrever para álbuns temáticos. Escrever para televisão. Alguns concretizámos... mas também deixámos muitos projetos a meio. E, permeados de silêncio, eu acompanhava as tuas múltiplas vitórias e tu as minhas. E ia-te pedindo, a cada evento, “guarda-me um bilhete”. E íamos dizendo, meio de fugida, a cada encontro “depois ligo-te”.

 

Ligo-te para a semana. Disseste. Na última mensagem. Isto foi há um mês. Sorrio porque, de algum modo, eras tu a ser tu... com tudo o que tinha de bom e mau, com tudo o que tinha de humano...

 

Sei que lançaste um álbum inteiro com a ideia de que “uma mulher não chora”. Mas também nunca fui de fazer o que me dizias! E hoje choro, desculpa. Porque, se tivesses ligado, talvez me tivesse esquecido de dizer que tenho saudades tuas. Mesmo tendo. E, hoje, tenho mais.

 

Digo-to agora. E volto a agradecer-te cada oportunidade e conversa.

 

Sabes que mais, hoje sou eu que não quero falar de morte.

 

Cantaremos novamente lá no outro plano. Guarda-me um bilhete!


Marina Ferraz


"Quando morre o amor"
Música: Renato Júnior | Letra: Marina Ferraz | Voz: Kátia Guerreiro




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quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Tumores

 


 

É um tumor estranho, o luto.

Nasce da morte e é irmão gémeo – mas falso - da saudade. Não cresce. Ele não. A saudade sim. Cresce como se, mais do que irmã, fosse metástase. E, por vezes, numa onda, embate contra nós. E ri-se. Com ela, traz fotografias e momentos que não voltam. Por segundos, sente-se nos braços um calor que já não há. E ouve-se o andar pela casa de patas que não estão. Arranca lágrimas atrás de sorrisos de pedra. Faz chorar o chão, que se diz forte. E não se conforma.

O luto é um tumor estranho.

E a saudade, sua irmã, é raiz a envolver um coração que dói.

 

Mas ainda olho para a fotografia com o mesmo sorriso. A memória também é tumor. Benigno, para todos os efeitos. E quero tê-la comigo. Porque, embora doa um pouquinho no roçar dos dedos da ausência, pensar em ti faz-me bem...

 

(e... um segredo... escrever sobre isso... também!)


Marina Ferraz




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quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Esta casa

 


Há uma casa. Essa casa já não é minha. Mas há uma casa. E será sempre a casa na qual a minha avó nunca entrou.

 

Quando a comprei, lembro-me de escolher cautelosamente alguns detalhes. Sempre a pensar nela. A janela para o verde. O elevador. A luz de presença.

E lembro-me de mudar o que não se adaptava. De transformar a varanda em marquise, de comprar o sofá-cama estável. De pôr o ar condicionado. De tirar a banheira e a trocar pelo chuveiro, tão mais fácil de entrar... Cada detalhe dessa casa – que hoje já não é minha – foi pensado para lhe dar um espaço onde se sentisse bem.

 

Sobre a casa tivemos conversas. Contei com detalhe cada pormenor. Entusiasmo na minha voz. Entusiasmo no rosto dela. Entusiasmo pela casa. Essa casa que já não é minha. E na qual ela nunca entrou.

 

Nessa casa entraram os meus pais. Entraram, literalmente, centenas de artistas. Entraram amigos. Entraram amantes. Entraram alunos. Entraram esperanças. Entraram sonhos. Entraram contrariedades. Entraram desesperos. Entraram mágoas. Entraram ocasionais moscas varejeiras e egos (e eu nunca soube por onde, mas encontraram depressa a saída...). E entrou o luto. Por ela. Que nunca entrou.

 

Deixando para trás a casa, descubro que era só isso que não gostava nela. A ausência tinha presença naquelas paredes. A ausência arrastava-se pelo chão e chorava. Talvez por isso a casa fosse um pouco húmida... talvez por isso eu sentisse frio, mesmo que o aquecimento estivesse ligado no máximo.

 

 

Foi com reticência que vendi esta casa, onde a minha avó nunca entrou. Parte de mim sabia que a ausência dela ainda era alguma coisa dela. Que o vazio ainda era feito da matéria da esperança que motivara a escolha. Que a memória da falta era ainda memória...

 

Largando a casa – essa casa já não é minha e que será sempre a casa na qual a minha avó nunca entrou – e entrando na casa na qual nunca imaginei que entrasse, espantei-me. Da janela do quarto, ao pôr-do-sol, olhei longamente a serra e o seu palácio. Nuances de todas as cores dispensavam filtros ou adjetivos insuficientes.

 

Sussurrei baixinho: que bonito.

 

E juro que ela respondeu, com a voz toda sorrindo: é mesmo. Já não pensei que visse isto.

 

 

Há uma casa. Esta é, agora, a minha casa. E... como é estranho... eu juro que ela entrou comigo.


Marina Ferraz




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terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Grande amor

 

Imagem retirada do Pixabay

Perguntaram-me. O grande amor da tua vida é ele, não é? E a minha vontade foi dizer que não. Que o grande amor da minha vida sou eu. Mas mordi a língua. Porque sei, no meu âmago, o quanto já me odiei. Porque sei que faço escolhas – ainda! – que não são grandes provas de amor para comigo mesma. Porque sei que as faço, muitas vezes, por amor... então respondi apenas “não”.

 

Todas as manhãs me levanto. Por ela. Todos os dias enfrento dificuldades que poderia evitar. Por ela. Todas as noites me deito e agradeço. Por ela. É o nome dela que trago sempre nas pontas dos dedos e na ponta da língua. É ela que tenho, qual órgão vital, determinando-me os passos. Sei eu, sabe ela, sabem eventuais deuses... já perdi tanto por ela, para me dar apenas a ela...


Se ela me diz: muda-te... eu mudo-me. Se ela me diz: abandona... eu abandono. Se ela me diz: perde... eu perco. Tenho-a na minha vida como uma ditatorial forma de estar. Foi com ela que ergui todos os muros. Foi com ela que derrubei todos os muros. Andei com ela por estradas e trilhos cheios de silvas... e só eu sangrei, porque a levei dentro, para a proteger.

 

Vivo por ela, morreria por ela. Recuso-me a usar a palavra amor como fazem os pobres de espírito. Mas amo-a. E sinto que ela me ama. E sinto que ela é a forma mais pura de amar o mundo e as pessoas do mundo, nascidas, vivas, mortas ou ainda por nascer. O seu nome soa-me ao mesmo que o amor. E define o amor. E é amor.

 

 

Então, a vontade da mentira passa. Não me apetece dizer que eu sou o grande amor da minha vida. Porque eu só me amo na medida em que a amo. E porque a tenho em mim. E porque vivo com ela até na solidão dos dias.

 

Perguntaram-me. O grande amor da tua vida é ele, não é? Respondi apenas “não”.

 

Porque ela me disse: não precisas de dizer mais. Mas foi também ela que me permitiu escrever este texto. Que me sussurrou. Diz o que quiseres, sem reservas e sem medos. Fala-lhes de mim, outra vez... e nem te importes que venham dizer que te estás a repetir, porque tens esse direito.

 

Aqui estou. Eu e este amor. O grande amor da minha vida é a Liberdade. Porque é só amando a Liberdade que consigo amar-me. Porque é só amando a Liberdade que consigo amar os outros. Não falo de amor facilmente, mas é fácil dizer que a amo e que, sem ela, não quereria sequer estar viva.

 

Por isso não. O grande amor da minha vida não é ele. O grande amor da minha vida é ela. E estou grata. Porque há quem escolha amá-la comigo. Porque há quem escolha amá-la em mim... Porque ela me ensinou a amar... no âmago do amor, além do amor, apesar do amor...


Marina Ferraz




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terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Do 80 ao 8: uma tese sobre comprar casa em Lisboa

 

Imagem gerada por I.A.

Realidade da compra de uma casa na região da grande Lisboa.


Tens um sonho. Queres um pequeno T2, como o que o João Só fala na canção, mas para morares sozinha com a tua gata. Também conta como “onde podemos morar os dois”. No caso, as duas. Idealizas o prédio cuidado, com um andar alto e elevador. Um espacinho – que se tiver 80 m2 já chega e sobra – bem dividido, sem precisar de obras estruturais e nem te importas que tenha acabamentos que não sejam a teu gosto, desde que não sejam a festa do azulejo. Preferes um quarto que seja suite com closet e uma casa que tenha marquise. Gostas de cozinhas com fogão e esquentador a gás. Gostavas que a cozinha tivesse dispensa, porque já viveste sem uma e sabes que é difícil quando o único buraco para enfiar o aspirador é um orifício no teu corpo, onde ele não cabe...


Ao fim de veres 10 apartamentos e respetivos preços, percebes que talvez nem faça mal não ter dispensa. Na verdade, resignas-te com casas sem instalação de gás, mesmo odiando cozinhar sem fogo e tomar banhos com água quente que acaba ao fim de 3 minutos. Começas a tolerar os azulejos. Alguns, pensas para ti, não são assim tão feios. De repente, 50 m2 já não te parecem criar um espaço encafuado... mas acolhedor e saudável. E, se não tiver elevador, sobes as escadas. Na verdade, podem ser rés-do-chão e caves e subcaves, que assim nem precisas de elevador... Alguns estão em mau estado. Mas, raios, se precisar de obras, com o tempo podes ir tratando disso... e um T1 começa a parecer melhor ideia. Ou um T0. Ou um anexo, mesmo que não tenha licença de habitação. E se não tiver janelas, ao menos não entram mosquitos...


Pedes alguns orçamentos de obras. Quando dás por ti, fechaste o Idealista e estás no site da Decathlon a ver tendas da Quechua e a ver quais os jardins com melhores condições de preço por metro quadrado.


E é quando vês que algumas tendas custam 1500 euros... e que não abate nas mais valias que vais ter de pagar ao Estado, que fazes o único telefonema que faz sentido: ligas aos teus pais e perguntas se ainda têm o teu quarto disponível...


Marina Ferraz




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