terça-feira, 14 de outubro de 2014

Mataste-me a poesia



Às vezes, olhando o enquadramento azul e perfeito do papel, as linhas delineadas, o branco imaculado, penso assim. Mataste-me a poesia.
Não é um pensamento solto. Não é um pensamento raro. É um pensamento que teima em esgueirar-se, por entre as muitas felicidades da vida, derramando o negro de si sobre tudo o que eu sei ser bom. E insiste, nessa constante de agarrar e pousar a caneta. Insiste em fazer com que pense em ti, em tudo o que és para mim e na forma como arrancaste de mim as mágoas que me serviam a arte.
Se os poetas são tristes, mataste-me a poesia. Pergunto-me com que direito vieste afugentar os meus fantasmas. Pergunto-me se saberias que a mágoa, a dor, a solidão me cantavam cantigas de embalar, no tom dos deuses antigos, qual prece eterna. Era delas que bebia a inspiração. E, sem elas, fiquei perdida no enquadramento perfeito do papel em branco.
Por entre o bloqueio constante de não encontrar dor em mim e de ter esbatido, já, a memória do sofrimento, perco-me nos arco-íris, sem que eles me digam com que palavras pintar estrofes. Se há versos, eles não rimam. Andam soltos. Soltos por aí, num lugar que não o meu. Não me vêm ter à mente, ou às mãos, ou à alma. Ensinaste-me a sorrir e mataste-me a poesia.
Um dia, deste-me a mão. Noutro, um beijo. Disseste que me amavas. E eu dei-te a mão, um beijo, disse que também te amava. Digo que te amo muitas vezes. Mas já não sei falar de amor. Não sei falar do amor que fere, que magoa, que arranca do peito a sanidade. Não sei falar do amor sofrido, da espera intemporal, do adeus perpétuo e da condenação a uma morte de respirações forçadas. E não sei falar desse amor, justamente porque falar de amor me faz sorrir, na memória das mãos, dos beijos, das palavras que trocámos. Mataste-me a poesia.
Ando por aí, no desassossego de já não saber se sou poeta. E, se não o for, ando também no desassossego de não saber quem sou. Na realidade eu sei: sou feliz. É isso que sou. E é por isso que as palavras que antes vinham beijar-me as lágrimas e se entregavam por compaixão, fogem agora de mim e não se dão. Apagaste-me a dor. Arrancaste-me a mágoa. Mataste-me a poesia.
Foi assim. Sorriso a sorriso. Beijo a beijo. Mataste-me a poesia. Penso-o, de sorriso no rosto e por não saber não o pensar. Não escrevo, contemplo o papel, lançando também à minha vida perfeita esse olhar de contemplação.
E, de sorriso indolente no rosto, sem saber chorar, sem querer chorar, sem sentir o choro, eu olho as linhas intocadas do papel em branco. E, de alguma forma, olhando o enquadramento azul e perfeito do papel, as linhas delineadas, o branco imaculado, penso assim: Mataste-me a poesia. Não é um pensamento solto. Não é um pensamento raro. É um pensamento que teima surgir, nessa forma insensata. Digo isto: mataste-me a poesia. Na verdade, salvaste-me a vida.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


2 comentários:

  1. O texto é profundamente tocante,é tão sentimental e bonito,gostei de lê-lo.
    Muito bom mesmo :)
    Parabéns querida
    Beijinhos Jenny ♥ ♥

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