terça-feira, 24 de março de 2020

Tradução



As palavras que digo. Será que as entendes? Às vezes não sei. Talvez porque sinto a pressão das paredes farpadas da pele a impedir os dedos de escrever concretos. Falo uma língua nova. Para ti. Não é por mal.

Peço que entendas. Sou fã das palavras e do seu poder. Mas, por lhes conhecer o poder, também tenho medo delas. E, por isso, eufemismos não me são raros. Digo pouco e quero que leias muito. Vivo de contrassenso. Por favor. Deixa-me traduzir as frases soltas que te digo.

Às vezes, digo-te “olá” pela manhã. O que quero dizer é que acordei contigo no pensamento e o desejo, mais do que meramente leve, de que pudesse estender o braço e encontrar-te na cama. O que quero dizer é que, se estendesse a mão e estivesses ali, teria outras formas de cumprimento, feitas entre a simplicidade de um beijo e a criatividade do que viesse depois. Então, quando te digo “olá” pela manhã, esse “olá” transporta o mundo do desejo cativo na noite dentro e todos os pensamentos feitos de ti pela madrugada.

Nem sempre te digo “olá” pela manhã. Às vezes, troco-o por um “boa tarde”, depois de algumas horas de trabalho. O “boa tarde” significa o mesmo que o “olá” matinal. Mas significa, também, que tenho medo que me julgues chata ou maçadora, nas minhas repetições rotineiras. Então, quando digo “boa tarde”, estou a dizer que me lembrei de ti pela manhã e que te mantive no pensamento latente, até chegar um horário mais apropriado para poder dizer-te que pensei em ti, sem que seja tão óbvia e evidente a urgência que me faz dizer-to.

Falo do meu dia. Não importa as palavras que eu uso. A tradução é simples. Quero saber do teu. Não por mera curiosidade ou porque tenha algum tipo de direito a investigar os acontecimentos da tua rotina. Simplesmente porque quero saber se estás bem. Porque quero saber se, algures, entre o ponto A, B e C dos teus trajetos aconteceu algo que te fizesse sorrir ou ficar triste. Gosto de te imaginar a sorrir. Também é isso que dizem os bonequinhos prefabricados das janelinhas de conversação. Gosto de te imaginar a sorrir. Ficas com um jeito menino que me leva, também, a um tempo livre de preocupações. A um tempo livre. A uma liberdade sem tempo.

Digo que “vai ficar tudo bem”. Muitas vezes. Traduzir isto seria dizer que não faço a mínima ideia de como tudo vai ficar mas que desejo, mais do que a minha própria felicidade, que o dia e o mundo e a vida promovam a tua. E sei que não acreditas nas minhas previsões, baseadas em coisa nenhuma senão na esperança. Mas repito. Porque quero que, ausente de fé, possas agarrar com o canto do olho um pouquinho da minha.

Às vezes não digo nada. Mas também os silêncios têm tradução. Nunca significam, contrariamente a más interpretações, desapego ou desinteresse… e muito menos que não ponteaste o meu pensamento. Às vezes, os silêncios significam que tudo o que tenho para dizer não cabe em palavras. Às vezes, significam que não quero ser aborrecida ou inoportuna. Às vezes, significam que estou a precisar que sejas tu a dizer algo porque preciso, num momento de puro egoísmo, de saber que te lembraste de mim, mesmo sem o estímulo da minha primeira palavra.

Interrompo o silêncio. Tantas vezes. Só para dizer que gosto de ti. “Gosto de ti”. Talvez me escape, sei lá, que te adoro. Aqui e ali. Sem contexto nem razão. Frases loucas e versos soltos. Comprometidamente largados, como se me queimassem na alma, se não fossem escritos. A sua tradução é simples. Estou a apaixonar-me por ti. Estou apaixonada por ti. Tenho um medo terrível de que saibas que estou apaixonada por ti. Tenho ainda mais medo de que não o saibas. Cabem tantos medos dentro desse “Gosto de ti” que ele parece uma espécie de roteiro pela floresta negra do meu peito. Essa na qual só tu te aventuras e só tu te entendes.

Digo que tenho saudades. “Tenho saudades tuas”. Diria que tenho saudades nem que tivesses saído há meio segundo. “Tenho saudades”. As saudades não precisam de tradução. Na verdade, nem existe tradução que se dê. É uma palavra intraduzível. Mas, se tivesse de explicar, diria que é um sentimento de falta com uma pitada de amor.

Amor. Essa é uma palavra que não se diz. Mas, se um dia a traduzir, há de ser em gestos.





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2 comentários:

  1. Obrigado por trazeres à luz o que sentimos e pensamos. És uma tradutora de almas.

    Este texto é um pessoal favorito. Voltarei várias vezes a ele no decorrer da minha vida.

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