terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Colisão

 



 Fotografia de Analua Zoé


Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase dita, no rescaldo do dia que tinha passado, enquanto despia a pele e se deixava ser somente alma, no centro da sala fria.

 

Havia muitas histórias nas impressões digitais da pele que despia. Todas essas histórias, criadas pelo excesso, pareciam vazias quando o dia terminava e sobrava solidão. O excesso de amor, de desejo, de vontade de sorver o ar… tudo se transfigurava em vazio.

 

Por um lado, admitia: era bom ser alma! Chegar a casa, descalçar as normas sociais, despir a pele, atirar os órgãos para a cadeira da desarrumação… e deixar o silêncio inebriante regar as arestas tortas do pensamento. Por uns momentos. Antes de o silêncio gritar. Um grito agudo, cortante, compulsivo. Um grito que trazia vozes ancestrais dos tempos remotos do mundo, acordando ossos despidos que forram as capelas ermas e o chão das metrópoles.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que deixava de fazer sentido quando a pele, despida e largada num canto, servia apenas de brinquedo solto ao gato irrequieto, que preferia sempre mordiscar o mindinho da mão direita, vá-se lá saber porquê.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, ela fitava a cadeira e todos os seus órgãos vitais. O coração, meio apodrecido dos desgostos, era o eterno guerreiro que contava histórias aos outros, enquanto ela aproveitava a condição de ser livre. Nessa noite, a história que ele contava era bonita. Efémera. Mas bonita. Sobre copos de vinho quentes no Inverno quedado e olhos fechados no sentir de outras formas de calor. Nessa noite, a história que ele contava, fazia o cérebro contrafeito e irrequieto saltar da cadeira e correr de um lado para o outro, querendo encontrar a linha da meta para ter uma resposta concreta para todos os seus equívocos. E o fígado arrotava, levando a mão à boca e pedindo perdão pelo incómodo. E os pulmões bebiam das palavras do coração como se fossem ar. E um sistema digestivo inteiro revolvia, com fome de voltar ao passado.

 

Debaixo da água quente do chuveiro, a alma sabia que despir-se de corpo era atroz. Os órgãos pareciam sempre meio perdidos, ainda que a pele se divertisse, estendendo o mindinho direito ao gato, que só parava de roê-lo quando a inquietude do cérebro chamava a sua atenção.

 

Estou cansada de tentar ser perfeita.

 

Uma frase que, enquanto se secava, a alma repetia na sua cabeça e que a levava até ao tempo em que descobrira que a perfeição é tão imperfeita quanto a imperfeição é perfeita. Dependia das perguntas essenciais. Quem? Quando? Onde? Porquê?

 

Mas ela estava cansada. Cansada dos ponteiros. Cansada da solidão. Cansada do silêncio. Cansada do grito que ainda soava, desse silêncio só, todo cheio de promessas e de memórias.

 

Agarrou os órgãos um a um e vestiu a pele. Olhou ao espelho. Vestida de corpo não parecia uma alma que queria ser perfeita mas apenas humana. Uma camuflagem grosseira que lhe permitia sair à rua e fingir que era como os outros.

 

Despediu-se dos órgãos, para que adormecessem. E da pele, para que se acalmasse. E do gato, que continuava a tentar roer o mindinho direito, agora vestido e carnudo.

 

Com os vasos lacrimais perfeitamente encaixados nos olhos, culminando no espaço onde as pálpebras se encontram, chorou. Estava cansada. Tão, tão cansada. Da perfeição e do resto. Deixou a morte colidir com a vida. Deixou a vida colidir com a morte. Da colisão nasceu o caos imperfeito da noite.

 

Depositou-se, assim vestida de corpo, na alcova. Sonhou que era imperfeita e que, ainda assim, lhe queriam bem.

 

Acordaria na manhã seguinte. Para tentar ser perfeita. Outra vez.

 

Marina Ferraz



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